25/11/2010

Paul Krugman, China e a natureza do actual capitalismo financiarizado ocidental

Michael Hudson. Artigo tirado de aqui e traduzido por nós. Recomendamos também a leitura do último artigo publicado por Xosé Manuel Beiras Torrado, ao que podedes acceder aqui. Boa leitura e ainda melhores pensares na porta dum mês de dezembro que junto aos primeiros meses do vindouro ano será chave para a classe trabalhadora do Reino de Espanha e no que se insirirá a III Assembleia Nacional do Encontro Irmandinho, que aguardamos poda contrinuir para umha reconstruçom da esquerda transformadora e revolucionária na Galiza.
Michael Hudson
trabalhou como economista em Wall Street e actualmente é Distinguished Professor na University of Misoury, Kansas City, e presidente do Institute for the Study of Long-Term Economic Trends (ISLET). A sua dedicação aos problemas das economias pos-soviéticas, e especialmente a letona, levou-lhe a ser comisionado recentemente, por parte da coalizão de esquerda letona Centro da Harmonia, como economista chefe da Reform Task Force Latvia, um think tank encarregado de elaborar uma política económica alternativa para esse país báltico. É autor de vários livros, entre os que destacam: Super Imperialism:The Economic Strategy of American Empire (nova ed., Pluto Press, 2003) e Trade, Development and Foreign Debt: How Trade and Development Concentrate Economic Power in the Hands of Dominant Nations (ISLET, 2009).
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"Os actuais ataques a China parecem-se muito aos ataques a Japão e outros países asiáticos no final dos 80, que conseguiram demonizar a economias exitosas por ter evitado ser vítimas das práticas predatórias que corroeram à indústria norte-americana, que 'financiarizaram' e pós-industrializaram a sua economia. A piramidalização da dívida estadounidense que arrancou nos 80 desembocou numa guerra de classes sem mal justificativa económica. Por conseguinte, culpar aos estrangeiros -por enriquecer-se do mesmo modo que fizeram os EEUU desde que o Norte ganhou a Guerra Civil em 1865- equivale simplesmente a proporcionar uma coartada política para um statu quo economicamente estéril."

Tenho aqui o dilema em que se acha a economia estadounidense: a política de flexibilização quantitativa da Fed -criar mais liquidez para que os bancos possam prestar mais- pretende ajudar à economia a "tomar prestado o caminho para sair da dívida". Mas os bancos não estão a prestar mais pela singela razão de que um terço dos bens raízes estadounidenses se acham já em situação de quebra técnica [negative equity: devem mais do que valem os activos hipotecados; T. cast.], enquanto a pequena e média empresa, que criou o grosso dos postos de trabalho novos em Norte-américa nas últimas décadas, viu como o seu colateral preferido (os bens raízes e os pedidos de venda) se encolhe mais e mais. Como pode esperares que os bancos prestem mais e contribuam a reinflar os preços dos activos na economia, se os salários e os preços ao consumidor seguem seu deriva baixista? Por conseguinte, o conjunto da economia "real" não pode senão seguir encolhendo-se.



O que deu centralidade ao argumento a favor da política da Fed nesta semana passada foram os intercâmbios entre Republicanos e Democratas. O deterioro da situação levou a um grupo de economistas e estrategas políticos republicanos a publicar uma carta aberta ao presidente da Reserva Federal, Ben Bernanke, criticando a política de flexibilização quantitativa (QE2) da Fed, política consistente em inundar a economia com liquidez, o que tem que repercutir nos mercados exteriores de divisas ao empurrar à baixa a taxa de mudança do dólar. Até aqui, não deixa essa crítica de ser atinada. Mas mal ranha a superfície.

Pense-se em Paul Krugman, um dos defensores mais progressistas da política do Partido Democrata. Suas colunas no New York Times recusam o papel dos republicanos como advogados dos interesses de Wall Street e dos grandes empresários. Mas também desculpa e ainda se acrescenta ao vapuleu a China. "Culpar ao estrangeiro", e não ao sistema, costuma ser uma resposta da direita, mas Krugman culpa a China simplesmente porque os chineses tratam de se salvar evitando ser as vítimas das políticas de Wall Street que o próprio Krugman critica quando a vítima são os trabalhadores norte-americanos. Ao culpar a China, não só deixa fora de foco ao comité directivo da Reserva Federal e aos amigos wallstreetenses desta, senão que, na prática, culpa ao mundo inteiro; um mundo que, em formação de frente unido, propinou faz duas semanas em Seul uma sonora e unânime labaçada ao nacionalismo financeiro de Obama nas reuniões do G20.

É triste que na coluna de Krugman da passada sexta-feira, 19 de novembro, no New York Times, intitulada "O eixo da depresão", se mostrasse às claras que as soluções preferidas de Krugman não vão para além do que permite conceber o superficial e manoseado instrumental intelectual do pensamento económico marginalista. A sua coluna vinha a aceitar a tentativa da Fed de reinflar, mediante a flexibilização quantitativa, a borbulha imobiliária inundando os mercados com crédito suficiente para rebaixar as taxas de interesse. Pretende que o que a Fed pretende com isso é "a criação de postos de trabalho", e não, principalmente, como é o caso, resgatar aos bancos tedores de hipotecas sobre propriedades em situação de quebra técnica.

O verdadeiro é que reinflar os preços dos bens raízes não facilitará aos perceptores de salários e aos compradores de moradia a conseguição dos seus objectivos. Rebaixar as taxas de juro reinflará os preços dos bens raízes ("criação de riqueza", ao estilo de Alan Greenspan), o que aumentará o nível da dívida em que devem incorrer os compradores de moradia para a adquirir. E quanto maior é o serviço a pagar da dívida, tanto menos disponível fica para gastar em bens e serviços (a "economia real"). O emprego encolherá numa espiral financeira de austeridade económica.

Desgraçadamente, a maioria de economistas estão obnubilados com a trivializante fórmula DV=PT. A ideia é que mais dinheiro (D) leva ao incremento dos "preços" (P), provavelmente, preços do consumo e dos salários. (Pode-se ignorar a velocidade, "V", que é simplesmente um resíduo tautológico.) "T" são "transacções", e vale pelo PIB, às vezes também chamado output, produto. (1)

Aproximadamente 99,9% do dinheiro e do crédito não se gasta em bens de consumo (o "T" em DV=PT). A cada dia, um volume maior que todo o PIB anual passa pela New York Clearing House e pelo Chicago Mercantile Exchange para empréstimos bancários, acções e bonos, hipotecas empacotadas, derivados financeiros e outros activos e apostas financeiras. De modo que o efeito da flexibilização quantitativa da Fed "a inflação monetária" será inflar os preços dos activos, não os preços dos bens de consumo e de outras mercadorias.

A dinâmica chave do capitalismo financeiro de nossos dias

Essa é a dinâmica chave do capitalismo financeiro de nossos dias. Lastra às economias com dívida, e quando o serviço da dívida sobrepassa o excedente a partir do qual essa dívida é pagadeira, o banco central procura "reinflar para sair da dívida", criando crédito novo "dinheiro" suficiente como para revalorizar bens raízes, acções e bonos (suficiente, isto é, para que os dividores possam seguir pagando os interesses devidos). Tal é o deus ex machina, o fluxo de crédito, de fora a dentro, capaz de permitir que as economias financiarizadas operem como esquemas Ponzi piramidais a grande escala. Essa dinâmica é estimulada mediante a gravação fiscal dos ganhos especulativos (de "capital") a tipos marginais inferiores aos impostas a salários e a benefícios empresariais. Assim as coisas, por que deveriam financiar os investidores investimentos em capital tangível, se podem cavalgar alegremente a onda da inflação de preços de activos? A economia da borbulha troca em "criação de riqueza" especulativa.

Pode funcionar isso? Até quando seguirão uns investidores crédulos investindo num esquema piramidal desenvolvido a ritmos exponenciais impossíveis e desfrutando de uma fictícia "criação de riqueza", enquanto os banqueiros carregam à economia com dívida? Até quando crerá a gente do comum que a economia está a crescer realmente quando os banqueiros prestam a uma economia supervisionada por agências regulatórias pilotadas por ideologizados desreguladores?

O ideal dos banqueiros é que todo o excedente que se ache acima da mera subsistência seja pago em forma de interesses e honorários: todo o rendimento pessoal, todo o fluxo de caixa empresarial e toda procedente dos bens raízes. Assim que quando a política de flexibilização quantitativa da Fed rebaixa as taxas de juro hipotecário, o que consegue não é que os proprietários de moradia terminem pagando menos, senão que o que faz é simplesmente permitir o incremento da taxa de capitalização do valor da renda existente.

A coartada da Fed é que a flexibilização quantitativa beneficia aos compradores de moradia reduzindo a dívida em que têm de incorrer. Mas se isso fosse verdade, seu ganho significaria uma perda para os bancos, e os bancos são a principal base da Fed. Para a reserva federal, o "problema" económico radica em que uns preços da moradia à baixa (isto é, mais accessíveis) estão a matar os balanços contáveis dos bancos. De maneira que o objectivo real da Fed é reinflar a borbulha imobiliária, ao mesmo tempo em que, de passagem e se pode, espolear uma borbulha no mercado de valores.

Uma coluna de Andy Kessler no Wall Street Journal (sexta-feira, 19 de novembro, a mesma data em que apareceu a coluna dantes mencionada de Paul Krugman) apontava a isso, mas reconhecendo que a Fed naufragaria desastrosamente na opinião pública se ia de cara e explicava que a motivação de sua nova rodada de flexibilização quantitativa era reverter a queda dos preços das propriedades imobiliárias. "Bernanke provocaria o pânico, se dissesse publicamente que, de não ser pela polvareda mágica levantada com o dólar, os bens raízes cairiam ao abismo", e se admitisse que, em tal caso, os balanços contáveis dos bancos seguiriam sofrendo com "os créditos imobiliários e os derivados financeiros tóxicos". Mas o carácter em boa medida fictício da solvência bancária oficialmente reconhecida reflete-se no facto de que o valor na carteira do Bank of America (que comprou Countrywide Finance) é só a metade do que figura nos seus livros, enquanto o de Citibank está exagerado num 20%.

As execuções hipotecárias, nem que dizer tem, são má coisa para os proprietários de moradia, mas são ainda piores para os bancos, por causa da pirámide financeira de crédito erguida sobre o valor das hipotecas lixo da década passada. O problema com a análise de Krugman é sua aceitação, de partida, de que a flexibilização quantitativa -pensada para reinflar a borbulha imobiliária- é boa para o emprego e ainda para a renovação da competitividade estadounidense, e não, como é o caso, todo o contrário. Ao centrar-se no comércio e o trabalho, concede já por envolvimento que o dólar se está a debilitar só por causa do déficit comercial, ¡não por causa do déficit militar e da fuga de capitais! E parte do suposto de que reinflar a borbulha imobiliária -objectivo explícito da Fed- fará mais competitivas as exportações norte-americanas, ¡e não menos! Com toda seriedade, afirma em sua coluna do 19 de novembro que "a razão essencial do ataque à Fed é o egoísmo puro e simples. China e Alemanha querem que Norte-américa segua sendo pouco competitiva".

Não é isso o que eu ouvi em China e em Alemanha. Chineses e alemães querem simplesmente evitar disrupçoes e instabilidades no seu comércio e na sua produção nacional, e evitar sofrer perdas em suas reservas internacionais (reservas, dito seja de passagem, mantidas em boa parte por uma inércia que vem da I e da II Guerras Mundiais, quando os EEUU incrementaram até o 80% dos anos 50 a sua participação nas reservas de ouro no mundo). O Tesouro norte-americano quereria que os bancos e os especuladores estadounidenses ganhassem facilmente 500 mil milhões de dólares a costa do Banco Central chinês, especulando astutamente com o comércio de divisas. A Fed quereria ver reviver a economia estadounidense pela via de saquear outras economias.

Não terá tal. O padrão de um dólar em desplome para as finanças internacionais ficará gravemente tocado tão cedo como outros países sejam capazes de substituir ao dólar por uma moeda mutuamente aceitada em seus intercâmbios, um processo que agora mesmo encabeçam os países BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). África do Sul acaba de somar-se a esses países como quinto membro, e os exportadores de petróleo, desde Nigéria até Venezuela e Irã, se estão a associar entre si para fazer que o sistema monetário internacional seja menos injusto e menos explorador. Joseph Stiglitz, colega de Nóbel Paul Krugman, advertiu (de modo aparentemente irónico, porque o fez numa coluna reproduzida no Wall Street Journal): "Supõe-se que esse dinheiro [da flexibilização quantitativa] revitalizará à economia norte-americana, mas, longe disso, o que fará é percorrer o planeta em procura de economias que parecem funcionar bem, provocando uma catástrofe aqui."

A Fed e o Congresso instaram a China a reevaluar a sua moeda, o renminbi, um 20%. Isso obrigaria ao governo chinês e a seu banco central a absorver uma perda de médio bilião de dólares dos 2,6 biliões de reservas que foi acumulando. Essas reservas não procedem somente das exportações, muito menos das exportações aos EEUU. São fugas de capitais realizadas por gestores financeiros estadounidenses, arbitrajistas de Wall Street, especuladores internacionais e outras gentes que procuram comprar activos chineses. E são o resultado do gasto militar estadounidense nas suas bases em Ásia e em outros lugares, dólares que os países receptores movem e gastam em China.

As autoridades chinesas trataram de deixar claro que o que lhes resulta objectável é a política estadounidense de criação de "crédito electrónico na tela de computador" a um 0,25% para comprar depois por onde quer que seja activos de alto rendimento (e quase qualquer activo estrangeiro é de maior rendimento). A reunião do G20 na passada semana em Coréia do Sur acusou aos EEUU de depreciaçO padrão de um dólar em desplome para as finanças internacionais ficará gravemente tocado tão cedo como outros países sejam capazes de substituir ao dólar por uma moeda mutuamente aceitada em seus intercâmbios, um processo que agora mesmo encabeçam os países BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). África do Sul acaba de somar-se a esses países como quinto membro, e os exportadores de petróleo, desde Nigéria até Venezuela e Irã, se estão a associar entre si para fazer que o sistema monetário internacional seja menos injusto e menos explorador. Joseph Stiglitz, colega de Nóbel Paul Krugman, advertiu (de modo aparentemente irónico, porque o fez numa coluna reproduzida no Wall Street Journal): "Supõe-se que esse dinheiro [da flexibilização quantitativa] revitalizará à economia norte-americana, mas, longe disso, o que fará é percorrer o planeta em procura de economias que parecem funcionar bem, provocando uma catástrofe aqui."

A Fed e o Congresso instaram a China a reevaluar sua moeda, o renminbi, um 20%. Isso obrigaria ao governo chinês e a seu banco central a absorver uma perda de médio bilião de dólares dos 2,6 biliões de reservas que foi acumulando. Essas reservas não procedem somente das exportações, muito menos das exportações aos EEUU. São fugas de capitais realizadas por gestores financeiros estadounidenses, arbitrajistas de Wall Street, especuladores internacionais e outras gentes que procuram comprar activos chineses. E são o resultado do gasto militar estadounidense em suas bases em Ásia e em outros lugares, dólares que os países receptores movem e gastam em China.

As autoridades chinesas trataram de deixar claro que o que lhes resulta objectável é a política estadounidense de criação de "crédito electrónico na tela de computador" a um 0,25% para comprar depois por toda a parteactivos de alto rendimento (e quase qualquer activo estrangeiro é de maior rendimento). A reunião do G20 na passada semana em Coréia do Sur acusou aos EEUU de depreciação competitiva da moeda e de agressão financeira, e os países começaram a recusar o dólar e ainda a evitar incurrer em excedentes comerciais e de pagamento como tais.


O essencial é que não há maneira de que os EUA possam defender a depreciação do dólar em termos que obriguem a outros países a aceitar perdas em seus valores. Os investidores de todo mundo perderam a fé no dólar e em outras moedas papel, e se estão movimento para o ouro ou, simplesmente, fecham as suas economias. No curso do passado ano -desde as reuniões dos BRIC em Ecaterimburgo, Rússia, em verão de 2009- a sua resposta foi evitar o uso do dólar para proteger-se da agressivas fugas de capital estadounidense que procuram atacar por surpresa a seus bancos centrais e comprar suas empresas, suas matérias primas e seus activos com "papel crédito" (e em realidade, possibilitar também o aumento do gasto militar).

Em vez de apoiar essa tentativa -um movimento com consequências positivas para a paz no mundo, porque tende a limitar o aventureirismo militar estadounidense (como a Guerra de Vietnã obrigou ao dólar a soltar as amarras do ouro em 1971)-, Krugman serve-se da crise para atacar a China como se o sucesso desta fosse o que está a prejudicar aos trabalhadores norte-americanos, e não as políticas estadounidenses pos-industriais e profinancieras que inflaram a borbulha imobiliária, privatizado a assistência sanitária sem opção pública -sem sequer um desconto para a compra de fármacos públicos norte-americanos- nem a incapacidade para depreçar as dívidas hipotecárias e outras dívida bancárias e acercá-las à capacidade de pagamento.

Os actuais ataques a China parecem-se muito aos ataques a Japão e outros países asiáticos no final dos 80, que conseguiramdemonizar a economias exitosas por ter evitado ser vítimas das práticas predatórias que corroeram à indústria norte-americana, que "financiarizaram" e pós-industrializarm a sua economia. A piramidalização da dívida estadounidense que arrancou nos 80 desembocou numa guerra de classes sem apenas justificação económica. Por conseguinte, culpar aos estrangeiros -por enriquecer-se do mesmo modo que fizeram os EEUU desde que o Norte ganhou a Guerra Civil em 1865- equivale simplesmente a proporcionar uma coartada política para um statu quo economicamente estéril.

Aos dois partidos norte-americanos e aos seus porta-vozes políticos resulta-lhes mais fácil demonizar políticas que vão para além do meramente marginal (e que, pelo mesmo e em nenhum caso, pode enfrentar a solução de problemas estruturais centrais). O debate político termina assim alzaprimando diferenças políticas insignificantes. Dificilmente ter-se-á consciência por essa via de que o problema que tem ante sim o desemprego industrial norte-americano é que os perceptores de salário têm que ganhar o suficiente para pagar a moradia mais cara do mundo (a FDIC [corporação federal de seguros de depósitos, por suas siglas em inglês] está a tratar de limitar as hipotecas para que não absorvam mais de 32% do orçamento do prestatário hipotecado), a assistência sanitária e a Segurança Social mais caras do mundo (com um 12,4% de deduções, conforme ao disposto pela FICA [Lei federal de seguro das contribuições, por suas siglas em inglês], elevadíssimos níveis de endividamento pessoal com os bancos e as rapinhentas empresas dos cartões de crédito (cerca de um 15%) e um deslocamento da carga fiscal desde a propriedade e os mais ricos para os rendimentos procedentes do trabalho e para os bens de consumo (outro 15%, mais ou menos). O propósito dos banqueiros passa por calcular quanto podem pagar os seus clientes, o que se define como qualquer quantidade que sobrepasse os custos básicos de subsistência e os gastos "não-discrecionais" que vão parar ao sector FIRE [Finanças, Asseguradoras e Bens Raízes, por suas siglas em inglês].

Isso é suicídio pós-industrial, e é a via à servidão por dívidas para os assalariados e os consumidores norte-americanos. China criou uma economia que conseguiu -até agora- evitar a financiarização das suas empresas. O Estado possui mais da metade das acções de seus bancos comerciais. De acordo com o Ministério de Finanças chinês, os activos de todas as empresas estatais em 2008 representavam cerca de 6 biliões de dólares (o que equivale a um 133% do produto económico anual). O que traz consigo que, quando se fazem empréstimos às empresas nacionais -especialmente às que são de propriedade parcial ou totalmente estatal-, os interesses e os réditos financeiros fluem para o sector público, o que faz inecesária a gravação fiscal do trabalho.

Como se pode compreender, China está a tratar de defender este sistema. No entanto, a administração Obama (imitada pelos fundamentalistas republicanos do livre mercado) critica isso, particularmente seu subsídio público da energia solar, um investimento destinado a desacelerar a poluição e o esquentamento global. O Wall Street Journal da passada quarta-feira proporcionava um exemplo quase cómico deste ataque hipócrita (Jason Dean, Andrew Browne e Shai Oster: "Chinês's 'State Capitalism' Sparks a Global Backlash" ["O capitalismo de Estado chinês desencadeia uma reacção global"]), denunciando a aceleração dos investimentos chineses em energia solar para emancipar a sua economia (e a sua atmosfera) das importações de petróleo e das emissões de carbono. "Aproveita o controle estatal do sistema financeiro para canalizar capital de baixo custo para as indústrias nacionais (e para nações estrangeiras ricas em recursos combustíveis fósseis e em minerais que China precisa para manter seu rápido ritmo de crescimento)".

Essa política chinesa levou a Charlene Barshefsky, representante do comércio exterior norte-americano baixo Bill Clinton (e quem ajudou a negociar a entrada de China na OMC em 2001), a queixar-se de que "economias vigorosamente dirigidas pelo Estado, como a chinesa ou a russa (...), possam decidir que 'ramos industriais inteiros sejam criadas pelo Estado', (...) o que desequilibra o campo de jogo, penalizando ao sector privado". Isso é precisamente o que fez Japão para fomentar a sua industrialização: fornecer crédito público, a fim de promover o investimento em capital tangível, não o latrocínio das exacçoes financeiras. "Vastas faixas industriais seguem controladas por empresas estatais, estritamente restringidas para os estrangeiros", queixam-se os autores do artigo no Wall Street *Journal. "O Estado possui os principais bancos em China, as suas três maiores companhias petroleiras, os seus três servidores de telecomunicações e suas principais empresas de meios de comunicação".

Há duas ideias muito diferentes sobre qual deve ser o papel desempenhado pelo sistema financeiro. Em Occidente, nos últimos trinta anos, os bancos comerciais criaram o grosso do crédito para a especulação e a inflação dos preços dos activos, não para financiar a formação de capital e a indústria. Cria-a directriz de uma banca pública é promover o investimento em longo prazo para aumentar a productividad,e a produção e o emprego. E isso é o que permitiu a China triunfar com tanta rapidez, enquanto as economias ocidentais se financiarizavam e degradavam. Os países bálticos, Islândia e agora Irlanda são exemplos do desastre que o ultraliberalismo financeiro causa quando tem as mãos livres.

A moraleja é que o sucesso bancário chinês -e seu propósito de defender-se do assalto da moeda estadounidense e da especulação arbitrajista que procura saquear suas reservas estrangeiras-, longe de merecer a acusação de promover a guerra económica, mereceria ser emulado. Emulá-lo é, precisamente, o que os países BRIC declaram agora querer. A administração Obama e os políticos europeus tocam, desde depois, certeiramente nervo quando urgen a China a se centrar mais em seu próprio mercado interior e a acelerar o aumento de seus próprios níveis de vida. É claro que os mercados interiores de EEUU e Europa se estão a encolher, à medida que avança a deflação por dívida.

China não é tão autosuficiente como os EEUU em recursos naturais e água. Isso significa que um incremento de seus níveis de vida exigirá gastar boa parte das poupanças internacionais que chegaram a atesourar. Mas ao menos acha-se na senda adequada. Pode dizer-se o mesmo de Norte-américa? Em que ajuda denunciar a China? Não deveríamos mais bem perguntar-nos por que a sua productividade, o seu investimento de capital e seus níveis de vida estão a crescer, enquanto declinam os nossos?

A mesma pergunta sugere a resposta: o sistema financeiro chinês está concebido para promover um crescimento do excedente, não para chuchar o excedente existente. Um produto lateral disso é o aumento dos preços nos bens raízes e nos mercados de valores, mas esse aumento reflete aqui incrementos de investimento de capital e progresso, não uma diversão do investimento para alimentar o esvaziamiento de activos [asset stripping], como ocorreu nos EEUU da cobiça arrogante imperante nos últimos 30 anos.

O que deveria preocupar a Krugman e outros economistas que advogan pelos assalariados e pelo conjunto da economia é o perigo de que a Fed empreenda outro resgate camuflado de seus amigos de Wall Street. Pois bem; Kessler sugere que a Fed deveria fazer precisamente isso: "transladar a dívida tóxica aos livros contáveis da FDIC [Corporação federal de seguros de depósitos, por suas siglas em inglês] e da Fed, e reflotar os bancos com capital fresco para abrir na próxima segunda-feira pela manhã".

¡Não pode se criticar a China por fazer o que faz!

* Notas do tradutor galego:

(1) A fórmula é o velho esquema de Milton Fredman, um dos pais do ultraliberalismo. M x V = P x Q. Onde M é o dinheiro andante, V a velocidade, P os preços e Q os gastos. A fórmula de Fredman tenta defender assim que se o dinheiro sobe os preços também o fam como aconteceu no Reino de Espanha na mudança da peseta ao euro, mas como nom acontece sempre e quando há oscilaçons no valor da moeda, no nosso caso - e veremos por quanto tempo- o euro. Este esquema e as teorias de Fredman aplicaram-se com énfase neoconversa no regime de Pinochet, onde o actual presidente de Chile, Piñera, tinha um familiar que era o economista do regime advogando por desmantelar o welfare state chileno que criou fundíssimas desigualdades sociais, intrincadas no ADN do ultraliberalismo e ainda do capitalismo, seja qual for o seu estádio.

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