Antoni Aguiló. Artigo tirado de Outras Palavras (aqui). Tradução: Gabriela Leite | Imagem: Jacques Tardi, Le cri du peuple. O negrito é de nosso.
Há 143 anos, começava insurreição que estabeleceu formas inéditas de autonomia popular. Quais foram e como podem inspirar movimentos contemporâneos
Acaba de completar 143 anos (em 26 de março) a proclamação da Comuna
de Paris, uma das experiências de democracia popular participativa mais
iluminadoras da história contemporânea do Ocidente, mas também, e ao
mesmo tempo, uma das mais trágicas que já se conheceu.
Ao final da guerra
franco-prussiana, com a França derrotada, seu primeiro ministro, Adolphe
Thiers, destacou a importância de desarmar imediatamente Paris para
impor o armistício humilhante assinado com a Prússia. Em 18 de março de
1871, sob o pretexto de que as armas eram propriedade do Estado, Thiers
ordenou ao exército a retirada dos canhões que a Guarda Nacional tinha
nas colinas Montmartre. Então, uma multidão indignada de mulheres e
homens da classe operária se opôs ao desarmamento, que deixaria a cidade
indefesa. Uma parte das tropas enviadas pelo governo negou-se a
disparar contra o povo e muitos dos soldados acabaram confraternizando
com o movimento de resistência. Este levantou-se em armas contra a
Assembleia Nacional, desencadeando um processo revolucionário que
colocava o proletariado parisiense em choque com a grande classe dos
proprietários de terras, rentistas e camponeses ricos que dominava a
Assembleia francesa.
Após a tentativa fracassada de
desarmamento, o gabinete de Thiers fugiu para Versalhes. Os rebeldes
instituíram um governo municipal provisório que, depois das eleições de
26 de março, transformou-se na Comuna de Paris. Constituía-se, assim,
uma prefeitura rebelde de forte base entre os trabalhadores. O exemplo
de Paris estendeu-se por outras cidades e povoados provinciais, como
Lyon e Marselha, onde proclamaram-se comunas insurgentes, rapidamente
esmagadas por Versalhes.
Mais além de seus tropeços, a
Comuna de Paris nos deixou um legado: os exercícios de construção de
poder popular vindos de baixo mais relevantes da história recente. Que
aprendizagens da Comuna, em matéria de democracia, podem contribuir para
iluminar as atuais lutas por democracias reais? Em que medida essas
lutas passam por uma prática política revolucionária que amplia o poder
efetivo das classes populares e outros coletivos historicamente afetados
pela discriminação? Ao meu juizo, como embrião de democracia
revolucionária, a Comuna de Paris proporciona alguns ensinamentos chave,
que abrem caminhos pouco explorados para o avanço das democracias a
serviço da emancipação social:
Democracia de base: a pretensão era
a criação de um Estado desde a base, formado por autogovernos
municipais federados entre si, com um governo central que tivesse
escassas funções de coordenação. Um Estado novo, que contribuísse para
desfazer a relação entre governantes e governados e assegurar melhores
condições de vida e trabalho; no qual as pessoas se sentissem
reconhecidas e, portanto, dispostas a defendê-lo.
Democracia operária de inspiração
socialista. Os comuneiros tinham consciência da necessidade de romper
com as velhas formas de dominação política (o parlamentarismo liberal e o
Estado capitalista burguês), o que os levou a experimentar formas
alternativas de política e sociedade. Mesmo que a Comuna não tenha
acabado com o Estado capitalista, seu grande mérito foi arrebatar
completamente seu controle da burguesia, transformando-o em um organismo
novo, que permitia o acesso ao poder a quem tradicionalmente havia sido
apartado dele. Já não era o governo das classes elitistas dominantes,
mas o das maioria populares não representadas, os operários, cuja
bandeira vermelha, símbolo da fraternidade internacional dos
trabalhadores, tremulava pela primeira vez na sede do Governo, o Hôtel de Ville.
Neste ponto, adquire especial
relevância o componente socialista da Comuna, presente no tipo de
democracia que se estabeleceu: uma democracia não meramente formal, mas
substantiva, participativa, que combinava democracia representativa com
democracia direta. Uma democracia que representava um processo mais além
da tomada conjuntural do poder, já que aspirava substituir o aparato
burguês do Estado por outro, em correspondência com os interesses da
classe trabalhadora. Em outras palavras, a democracia operária da Comuna
permitiu a inversão do poder, deslocando o poder político classista e
elitista monopolizado por proprietários para colocar nas mãos da classe
trabalhadora a capacidade efetiva de deliberar, decidir e organizar a
sociedade.
A democracia da Comuna
articulava-se em torno de cinco princípios: 1) Eleição por sufrágio
universal de todos os funcionários públicos. 2) Limitação do salário dos
membros e funcionários comunais, que não podiam exceder o salário médio
de um operário qualificado, e em nenhum caso superar os 6 mil francos
anuais. 3) Os representantes políticos estavam ligados umbilicalmente
aos eleitores por delegação e mandato imperativo. 4) Qualquer
representante podia perder a confiança dos eleitores e ser deposto de
imediato; ou seja, a Comuna instituiu a revogabilidade do mandato,
acabando com a perversidade de um sistema representativo liberal que,
como na atualidade, permitia suplantar a vontade dos representados e
promovia a profissionalização da política. A Comuna cuidou, deste modo,
de fazer um uso contra-hegemônico da democracia representativa, em que
os representantes obedecem — e não um sistema como o atual, em que os
que mandam não obedecem, e os que obedecem não mandam. Este tipo de
democracia representativa consagrava o direito popular a pedir contas,
exigir responsabilidades e controlar os representantes, o que
representou um duro golpe à (hoje tão em voga…) compreensão parasitária
da política, vista como um trampolim para obter privilégios, fazer
carreira profissional e esquecer-se do eleitorado. 5) Transferência de
tarefas do Estados aos trabalhadores organizados, como a promoção da
autogestão operária mediante a socialização das fábricas abandonadas
pelos patrões.
Novas medidas emancipadoras. As
iniciativas para socializar o poder político não foram as únicas. Também
foram acompanhadas de medidas atrevidas de caráter social, entre as
quais cabe destacar a separação entre Igreja e Estado, garantindo o
caráter laico, obrigatório e gratuito da educação pública; a
expropriação dos bens das igrejas; a supressão do serviço militar
obrigatório; a aprovação de uma moratória sobre as rendas de habitação,
que abolia as leis anteriores nesta matéria, confiscava as residências
vazias e cancelava as dívidas por aluguel, pondo a moradia a serviço das
necessidades sociais e ao bem estar geral; a supressão do trabalho
noturno das padarias e a proibição da prática patronal de multar os
empregados, uma estratégia habitual para reduzir seus salários.
Contudo, a burguesia francesa não
permitiu que o novo sistema político prosperasse. Com a colaboração das
tropas prussianas que cercavam Paris, o governo de Versalhes enviou mais
de 130 mil soldados que, em 28 e maio de 1871, depois de 72 dias
intensos e fugazes de autogoverno popular, aniquilaram a Comuna.
Estima-se que na batalha tenham morrido mais de 20 mil parisienses, e
que uns 43 mil combatentes tenham sido capturados; 13 mil condenados à
prisão, 7 mil deles deportados para a Nova Caledônia.
A Comuna de Paris representa não
apenas a última das grandes revoluções populares do século XIX, mas
também o primeiro dos democraticídios da era moderna, algo mencionado
apenas de passagem na história “oficial” da democracia. Lamentavelmente,
hoje também são tempos de democraticídio, de extermínio de saberes e
práticas democráticas. O capitalismo fulminou a democracia
representativa em boa parte da Europa, onde os Parlamentos e as eleições
tornaram-se praticamente dispensáveis. Mas também são, entre outras
coisas, tempos de experimentalismo político, de rachaduras no poder
constituído, de protestos populares, de organização coletiva e de lutas
por um poder popular constituinte. Como nos recorda a Comuna de Paris,
ele nasce nas ruas, como exigência de mudança das velhas estruturas
políticas e econômicas que oprimem a gente e restringem a construção de
outras democracias possíveis.
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