25/03/2014

Porque é que se estabilizou o mercado de bónus da Eurozona?

Yanis Varoufakis. Artigo tirado de Sin Permiso (aqui). Tradução para o castelhano de Casiopea Altisench e desde ela para o galego por À Revolta entre a mocidade.

 

Em junho de 2012, em um momento em que os bancos centrais tinham rebaixado quase a zero as taxas de juro, Itália tinha que refinanciar a 8% a sua gigantesca dívida de 3 biliões de dólares. Espanha acha-se em situação ainda mais apressada. Com um rendimento nacional que caía 2% anual, essas taxas de juro entranhavam um crescimento anual de 10% da montanha de dívidas. Em uma palavra: insolvência! Esse era o fantasma que sobrevoava acima de grandes nações europeias no verão de 2012: a Eurozona parecia liquidada. Hoje, as taxas de juro pagas por Itália e Espanha caíram a um 3%-4%, assaz mais manejável, e o rendimento nacional estabilizou-se. Observam-se até rápidos fluxos de dinheiro que vão parar aos paralisados bancos europeus, inclusive ao desatarraxado mercado de valores grego, em procura de umas danadíssimas ações negociáveis a preços presenteados. Esses dados poderiam facilmente mal-interpretar-se como signos de luz ao final do túnel. Mas "mal-interpretar-se" é a palavra oportuna.

As finanças públicas estabilizadas, prossegue a desintegração económica e social

A aparente "estabilização" da Europa pode atribuir-se a dois fatores. O primeiro e mais crucial foi a intervenção do BCE no verão de 2012. Instantes antes de que a Eurozona voasse pelos ares -com uma detonação devastadora para o resto do mundo-, o BCE decidiu-se a usar a sua particular bomba atómica, também conhecida Programa Fantasma OMT: "OMT", por Outright Monetary Transactions [compras diretas e em massa de dívida]; e "fantasma", porque nunca chegou ativar-se, até agora. O Presidente do BCE, o senhor Mario Draghi, antigo garoto de ouro da Goldman Sachs e do Banco da Itália, lançou um aviso para navegantes aos comerciantes de bónus do mundo inteiro:
Apostem contra Itália e Espanha, e afundar-vos-ei. Imprimirei tantos euros como seja necessário para comprar tantos bonos espanhóis e italianos como seja necessário para vos enterrar baixo os escombros das vossas sujas apostas.

Não foram essas exatamente as palavras, claro está. Mas foram palavras que os comerciantes de bónus souberam entender perfeitamente. Também sabiam que o senhor Draghi lançava esta ameaça violando a Carta do BCE. Poderiam ter pensado que se tratava de um farol; mas preferiram dar marcha atrás e deixar as suas vendas a curto dos bónus públicos (muito provavelmente, porque a Chanceler Merkel respaldou ao senhor Draghi através do senhor Asmussen). Até agora, os mercados de bónus parecem felizmente contidos pela bravata de Super Mário e não teve que pôr a prova a ameaça do programa OMT.

O segundo fator demorou mais em materializar-se. Trata-se de uma grande transferência de riqueza dos contribuintes aos bancos e dos cidadãos mais débeis às arcas públicas: uma transferência realizada com imensos recortes em salários, remunerações, postos de trabalho públicos, inauditos incrementos fiscais e a efetiva demolição das redes de segurança social. Em outras palavras: com uma austeridade de tal magnitude, que pôs ao paciente em estado de coma induzido. Em 2012, uma Eurozona que se achava na terça recaída recessiva consecutiva, que reduzia o crescimento esperado e gerado expectativas deflacionárias (agora confirmadas), fazia mais atraentes os bónus de alto rendimento, especialmente baixo a batuta do programa OMT do senhor Draghi.

Com esses dois movimentos, a Eurozona em queda foi forçada a entrar em um atolhadeiro temporariamente estável. O grosso dos governos converteram-se em pálidas sombras do que era, enquanto Europa olhava a insolvência dos bancos que seguiam operando sem oferecer realmente crédito a ninguém. À medida que contraía-se a despesa pública -e consequentemente, os serviços aos cidadãos- e se incrementavam os impostos, os investidores especulativos (por exemplo, os fundos de risco ávidos de voltas uma miga acima das taxas de juro mal superiores a zero que se ofereciam por todos os lados) decidiram de repente reconsiderar a possibilidade de meter o seu efetivo ocioso na dívida pública europeia. Após tudo, não prometia o senhor Draghi manter na solvência aos Estados membros?

Junto da tardia declaração do Chanceler alemã -em outono de 2012- de que até a patética Grécia seria mantida a flete, a jogada do BCE e o coma europeu induzido provocaram a maré alta: o dinheiro privado começou a derramar-se de novo por Europa em forma de empréstimos baratos aos Estados europeus e de apostas nos seus mercados de valores. Estabeleceu-se uma ilusão de recuperação. Se não na economia real, ao menos no domínio das finanças públicas e no âmbito do capital especulativo.

A aparência de um auge viu-se ulteriormente reforçada pelo simples facto de que a Comissão Europeia e os diferentes governos nacionais, que entrava em pânico com as consequências políticas do seu impulso austeritário, jogaram mão ao travão. Ainda que nunca chegaram a admitir o fiasco da austeridade, e embora nunca fizeram nada por reverter as suas devastadores efeitos, abandonaram os seus planos iniciais de impor uma austeridade ainda mais profunda em 2013.

Em soma: os mercados europeus de bónus estabilizaram-se a resultas do anúncio do programa OMT do BCE, do auge das expectativas deflacionárias dimanantes da recessão induzida pela austeridade, do frenado na radicalidade das políticas de austeridade depois de 2012 e, finalmente, a resultas da decisão de manter a Grécia na Eurozona.


Os afluxos de capital para os mercados de bónus e a mudança de comportamento dos comerciantes de bónus

Embora está claro que a ameaça OMT do senhor Draghi funcionou porque os mercados de bónus não a puseram a prova, não está tão claro por que os mercados de bónus não a puseram a prova. As suas expectativas deflacionárias (que lhes fizeram mais atraentes os bónus públicos) jogaram um papel importante, o mesmo que a comum crença de que o BCE não permitiria que a Periferia voltasse a avariar (depois do envolvimento do setor privado no acordo de resgate da Grécia). No entanto, há ainda uma lagoa à hora de explicar a nula vontade de desafiar ao senhor Draghi mostrada pelos comerciantes de bónus. Sustentarei no que segue que essa lagoa explicativa desaparece quando jogamos uma mirada mais ampla ao funcionamento dos mercados globais de bónus.

Morningstar, o grupo de investimentos radicado nos EEUU, informou recentemente de que, desde 2009, só os investidores estadounidenses colocaram fundos adicionais por um monto de 700 mil milhões de dólares em bónus do Tesouro estadounidense. Essa montanha de dinheiro, que ultrapassava inclusive o afluxo de capital derivado para a economia da borbulha ponto.com no final dos 90, tem-se revalorizado desde então -os preços dos bónus subiram- até atingir os quase 2 biliões de dólares. Paralelamente a essa evolução do fenómeno nos EEUU, e talvez por causa disso, outros 1,2 biliões de dólares foram prestos aos fundos de bónus fora dos EEUU, especialmente em 2012. (Para pôr isto em perspetiva de contraste: durante esse mesmo período, só se investiram 132 mil milhões de dólares netos nos mercados de valores de todo mundo.) O grosso desse dinheiro foi a parar à Eurozona depois do anúncio do programa OMT realizado pelo senhor Draghi.

Um recente trabalho de investigação da Chicago Booth Business School propõe inquietantes questões sobre esses 3,2 biliões de dólares sem raízes e extraterritorialmente derramados nos  mercados de bónus estadounidenses e europeus. Vem a concluir que o mais plausível é esperar uma volatilidade assaz maior que antes e um comportamento ainda mais gregario por parte desses fundos de bónus. "Os agentes investidores têm aversão a ser os últimos em entrar em um negócio [que] pode desencadear potencialmente uma carreira entre os investidores para somar a uma venda em uma carreira para evitar ser o último", sugere o trabalho. Talvez não ocorre isso com todos os gestores de fundos? Não: segundo sustentam os pesquisadores da Escola de Negócios de Chicago, os gestores de fundos de bónus são agora mais inconstantes que os agentes de saca e comerciantes de valores de renda variável. "Os investidores delegados, como os gestores de fundos, estão preocupados pelo sucesso relativo em comparação com os seus pares, porque isso afeta às suas capacidades para reunir ativos...".

Analisando a reação dos fundos de bónus à notícia de que a FED ia frenar a sua política monetária, o trabalho de Chicago sugere que os gestores dos fundos de bónus estão mais prestos a apertar o botão de "venda" do que jamais o estiveram os bancos (que costumavam ser os tedores da maior parte dos bónus públicos). Uma das razões da sua impulsividade é que os fundos hedge de risco se viram recentemente alterados pelo falhanço das estratégias de que costumavam se servir para recompensar generosamente aos seus clientes. Os fundos costumavam dar por certo que as taxas de juro e a taxa de mudança seguiam certas pautas previsíveis dependentes das tendências do capitalismo global. Desde 2011, essas pautas têm-se desdebuxado e os fundos hedge sofreram as consequências. A sua reação ao colapso das "certezas" dos seus modelos foi um regresso às estratégias simples, como encabeçar o movimento gregário para os altos rendimentos (em termos reais) da dívida pública espanhola, italiana e ainda portuguesa e irlandesa: sempre dispostos a assumir que, ainda sendo esses países da Eurozona de todo o ponto insolventes, os seus bónus são o melhor investimento possível em um menu de maus investimentos.

Michael Hintze, presidente executivo e fundador dos fundos hedge europeus CQS, sustentou, segundo o Financial Times, que as desesperadas políticas levadas a cabo pelos bancos centrais (como o BCE) o que fizeram em realidade é aumentar o risco do mercado. Aumentaram-no ao provocar que flua demasiado dinheiro para os mesmos ativos, com o resultado, em substância, de "distorcer o mercado". Quando isso ocorre, um pequeno movimento em uma determinada classe de ativos pode levar a quedas catastróficas. No caso da Eurozona, em onde a "classe de ativos" e o "mercado distorcido" em questão têm que ver nada menos que com os bónus de países soberanos fiscalmente em apuros, uma queda abrupta significaria para a Europa voltar à situação anterior a junho de 2012. Só que quando isto ocorra, as economias reais europeias serão ainda mais frágeis e o BCE estará castrado (especialmente depois de que a recente decisão do Tribunal Constitucional alemão assinale ao programa OMT e o tenha remetido ao Tribunal Europeu de Justiça).

Epílogo

As proporções da dívida pública em relacionamento com o PIB são hoje muito maiores que em junho de 2012, enquanto o rendimento nacional nominal é, mais ou menos, o mesmo e carece de genuíno potencial de crescimento. Por que, então, caíram tanto desde então os rendimentos dos bónus dos Estados membros periféricos?

Resposta sumaria: caíram por causa de:

1)     o anúncio do programa OMT por parte do BCE;

2)     o auge das expectativas deflacionárias dimanantes da recessão induzida pela austeridade;

3)     o travão às políticas de austeridade radical depois de 2012;

4)     a decisão de manter a Grécia na Eurozona; e

5)    um enorme afluxo de capitais para os mercados de bónus, e em forma tal, que faz muito provável um não menos enorme e inopinado refluxo.

Tomadas de consumo, essas cinco causas apontam a uma predição turbadora: Europa não se estabilizou. Embora os seus mercados de bónus acalmaram-se, a euro-crise apenas se tomou um pequeno respiro para voltar a regressar com mais força.

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