Depois de décadas, governo federal prepara-se para restituir território aos xavantes no norte do Estado. Ruralistas reagem e tentam desencadear campanha nacional contra demarcações
Por Felipe Milanez na Carta Capital
(Título original: “No Mato Grosso, tensão aumenta entre xavantes e latifundiários em terra cobiçada por agronegócio”)
No norte do Mato Grosso, um conflito entre índios e fazendeiros por uma terra homologada como indígena há 14 anos, porém quase toda invadida pos latifundiários, tem ganhado proporções que perpassam a disputa local. Nas últimas semanas, especialmente após a Rio+20 e seguida de um acórdão do Tribunal Reginal Federal que garante a posse aos índios, os ânimos foram acirrados e a iminência de violência física aumenta à medida que começa a se esgotar o prazo para o governo federal promover a retirada de não-índios da área.
O território xavante, chamado Marãiwatséde, está no centro de um eixo de escoamento de soja e gado, onde o governo federal quer asfalta a BR-158. O traçado ficaria fora da reserva, e da Ferrovia Centro-Oeste, que liga as cidades de Campinorte (GO) e Lucas do Rio Verde (MT).
A disputa por este território expõe a dificuldade do governo em controlar os conflitos fundiários na Amazônia. Os pequenos posseiros, tradicionais inimigos dos índios na região, deram lugares aos grandes ruralistas – que se negam a deixar o território. A pressão externa tem provocado divisões internas dos Xavantes, que colocam em risco a vida das principais lideranças. “Nós vamos conseguir, tenho certeza”, diz o advogado dos fazendeiros, Luiz Alfredo Abreu, irmão da senadora Kátia Abreu (PSD-TO), uma das principais líderes dos agropecuaristas no Congresso Nacional. “Eu não tenho medo. Eu quero a terra. Eu morro pela terra”, rebate o cacique Damião Paridzané.
Liderados por Damião, os Xavante realizaram uma série de protestos durante a Rio+20, no Rio de Janeiro, no fim de junho. Auxiliados pela Operação Amazônia Nativa (Opan), foram recebidos pelo Greenpeace no navio da ONG atracado na cidade durante o encontro internacional. O ato simbólico acabou ganhando visibilidade internacional, o que irritou profundamente os fazendeiros.
Problema surgiu nos anos 60
A diáspora de Maraiwatsede é decorrente da expulsão dos índios da região em 1966, e um dos problemas mais constrangedores do indigenismo no Brasil. Os Xavante foram levados em aviões da FAB para um outro território Xavante localizado 400 quilômetros ao sul, um aldeamento organizado por uma missão católica. Nos primeiros quinze dias, uma epidemia de sarampo matou 150 índios, e os sobreviventes fugiram para outras áreas Xavante, vivendo em uma espécie de exílio interno no País.
Após ser adquirido por uma empresa colonizadora paulista, de Ariosto da Riva, o território Marãiwatséde passou para as mãos do Grupo Ometto e se transformou no latifúndio Suiá-Missu, com 1,8 milhão de hectares. Depois foi adquirido pela Liquigás e, em seguida, passou para as mãos da empresa italiana Agip Petrolli.
Nessa sucessão jurídica de posse, o esbulho dos Xavante passou em silêncio. Foi na Eco-92 que a situação mudou. O encontro internacional serviu para dar visibilidade, e a Agip foi constrangida, na Itália, por seus atos contrários aos direitos indígenas no Brasil. A sede da empresa decidiu devolver as terras aos índios, mas, no Brasil, o latifúndio foi invadido. Os posseiros e os fazendeiros que hoje ocupam ilegalmente a área chegaram durante esse período.
Cizânia interna faz parte dos Xavante aliar-se aos fazendeiros
Há alguns anos, os fazendeiros invasores ganharam aliados inesperados: alguns guerreiros xavantes, pintados e armados com bordunas, que há alguns anos estavam do outro lado do front. Chamados de “mercenários” pelo grupo indígena, envolve uma questão bem mais profunda de conflitos de poder dos Xavante. Visto de fora, no entanto, esse grupo de dissidentes tem sido considerado parte da “estratégia de Cortéz”, em referência ao “conquistador” espanhol do México, que fomentava divisões internas e alianças com índios rivais para a conquista dos territórios.
No caso, a briga interna acirrada nos últimos anos é entre o cacique Damião e seu irmão, Rufino, expulso da aldeia. Damião, segundo alguns sertanistas da Funai, teria ganho demasiado poder em uma má atuação do órgão indígenista para dirimir as divergências, como acumulando um cargo no órgão e o poder interno. Rufino, uma liderança também importante e que lutou, por anos, pelo retorno ao território, estaria sofrendo graves problemas de saúde – ele já teve uma perna amputada em razão de diabetes. A fragilidade física, junto da falta de espaço na aldeia, e com o território ocupado, teria sido o estopim para a aliança improvável com os posseiros.
Rufino, que também é uma liderança importante, procurou aliados xavante em outras terras indígenas, como Parabubure, São Marcos, e na aldeia Água Branca, fundada por Damião no território Pimentel Barbosa. Alguns desses índios, segundo informações de fontes do local, estariam recebendo 300 reais para participar da mobilização e teriam sido levados em ônibus fretados pelos fazendeiros. “Esses índios estão sendo usados, eles não sabem de nada, só ganharam dinheiro de fazendeiro. Eles não querem trabalhar na área”, acusa Damião.
As reivindicações de Rufino, que não foi localizado pela reportagem, não são claras. Algumas fontes afirmam que ele reivindica as terras do Parque Estadual que está sendo oferecido pelo estado do Mato Grosso, e outras que ele reivindica as terras dos cemitérios antigos.
Acirramento recente
A disputa local entre posseiros, sem terra e fazendeiro contra os índios ganhou, a partir de 2011, ares nacionais. A Confederação Nacional da Agricultura (CNA), junto da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (Famato), passaram a ver a área como prioritária na defesa dos interesses ruralistas. Denúncias do Greenpeace sobre produção ilegal de carne na área indígena, e que seria vendida ao frigorifico JBS, numa campanha em que a ONG não levou adiante, serviu para aumentar a animosidade com os ruralistas. E houve o encontro dos Xavante com o Greenpeace durante a Rio+20.
Enquanto, no Mato Grosso, fazendeiros, posseiros e xavante aliados reunia-se com o governador do estado, em Brasília, a Funai organizava um encontro na Casa Civil com a Polícia Federal e o Incra para definir as estratégias para promover a desintrusão da área. O órgão deve cumprir a decisão do Tribunal Regional Federal de devolver a terra aos índios em 20 dias a partir da publicação do acórdão. No entanto, o advogado Abreu, dos ruralistas, diz que vai recorrer aos tribunais superiores (STJ e o STF). A favor do interesse de seus clientes ele aponta fatos novos, como a recente aliança com a divergência indígena, a tentativa de impugnação de laudo de uma antropóloga e um mapa onde a Funai aponta a existência de aldeias e cemitérios fora da área.
Evocando um costumaz argumento da “pressão internacional”, os ruralistas miram seus argumentos contra o apoio do Greenpeace e as decisões favoráveis aos índios na Justiça Federal: “Esses tribunais regionais e de primeira instancia sofrem pressão de ONGs, desse encontro internacional que foi a Rio+20, sofre a pressão e não estão isentos para julgar. Penso que só os tribunais superiores vão ter a possibilidade de julgar com isenção sem que se sintam pressionados, por esse momento historico que vive o Brasil que é a Rio+20″, afirma o advogado Luiz Alfredo Abreu, que entrou no processo ano passado, após dois desastres de aviões que mataram os advogados do caso.
Ainda em 2011, na tribuna do Senado, o senador Jayme Campos (DEM) disse estar preocupado com o “aumento exacerbado” na ampliação e criação de novas reservas indígenas em Mato Grosso: “Meu Deus, onde nós vamos parar? O Mato Grosso vai acabar.” O argumento tenta restringir a capacidade da Funai de demarcar terras. “Sem o controle do Legislativo, áreas indígenas são hoje determinadas, na maioria das vezes, de acordo com a conveniência isolada de militantes sociais e antropólogos, amparados por resoluções, portarias e instruções normativas, não raro arbitrárias ou a partir de critérios dúbios, que trazem como resultado final uma reconfiguração do território brasileiro que nem sempre corresponde à realidade dos interesses nacionais”, avaliou.
“Marãiwatséde é área indígena, homologada e garantida judicialmente”, afirma o assessor da presidência da Funai, Aluízio Azanha. “O governo vai cumprir a desintrusão. Primeiro, retirando os grandes fazendeiros que estão lá ilegalmente. Em seguida, os pequenos posseiros que possuem direito a reforma agrária”. A Funai também estaria se mobilizando para desarticular a divisão interna dos Xavante, que estaria sendo utilizada pelos ruralistas. “Marãiwatséde é terra indígena mais desmatada do país. Não é possível falar em produção quando não se respeita a legislação. Isso é insustentável”, afirma Azanha.
“Os xavante são os maiores latnfndiários do mundo”, afirma Abreu. “Eles têm 1,5 milhão de hectares no Mato Grosso, isso dá 26 mil hectares por família”. Afirmando que a terra está demarcada irregularmente, diz que os índios, junto dos proprietários, vão entrar com recurso no Supremo. “Xavante é uma etnia que não vive na mata, só no cerrado. As plantas medicinais, as iniciações sexuais, são tudo feito através de plantas medicinais do cerrado”, explica.
Damião, o líder xavante, rebate. “Nós não vamos desistir do que é nosso. Eu quero é que saia fazendeiro e posseiro. Isso é que a comunidade quer”, diz Damião. “Eles usam os índios, mas a cabeça é dos fazendeiros. Aqui tá difícil, queimaram ponte, fizeram buraco na estrada para ninguém passar.” Damião tinha em torno de 8 anos quando foi transferido, junto de seu povo, e aparece nas fotografias da época, ao lado do avião da FAB. “Eu nasci e cresci em Marãiwatséde”, diz ele. “E quero morrer em Marãiwatséde”.
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