14/06/2013

Rafel Poch: sobre Coreia

Rafael Poch. Extractos duma muito mais ampla e recomendável entrevista publicada em Rebelión (aqui) e traduzida por À revolta entre a mocidade


Durante a tua corresponsalía em Pequim viajaste a Coreia do Norte. Como valorizas a informação que se está a dar nos meios da crise atual?

Apresenta-se o conflito nuclear restringido unicamente a que Coreia do Norte tem, ou parece ser que tem, uma bomba atómica. O tema é bem mais complicado, como todo mundo mediamente informado sabe. Desde os anos 50, desde a guerra, Coreia do Norte tem estado ameaçada pela arma nuclear. Até os anos 90, com a dissolução da URSS, essa ameaça estava contrarrestada pelo guarda-chuva soviético. Quando desapareceu, os coreanos se propuseram fazer com a bomba porque a ameaça se manteve nos mesmos termos, há armas nucleares na Coreia do Sul, há recursos nucleares em Guam a efeitos de bombarderos estratégicos, de mísseis preparados para ser utilizados. Por tanto, isto, somado ao que ocorreu nos últimos anos, que uma série de nações foram atacadas por não ter bombas nucleares, Jugoslávia, Iraque, é o que levou à direção da Coreia do Norte à conclusão de sentido comum de que tinha que fazer com a bomba, que é supostamente o que fizeram.

Agora nesta crise ocorre o de sempre. Enfatiza-se a resposta histérica da Coreia do Norte, regime absolutamente impresentável, mas esquece-se que são reações a uma série de manobras com o aumento da capacidade misilística da Coreia do Sul e aumento da capacidade militar americana na região. Por isso respondem desta maneira.

Esta tensão militar, aumentada pelo Sul e Estados Unidos, é o que impede o degelo do regime?

A direção norcoreana tem muito claro desde Kim Il Sung, desde o avô, que tinha que mudar o sistema económico, que tinha que fazer reformas e se abrir. Mas também têm muito claro que isso não seria possível enquanto não tivesse uma mudança na situação geopolítica. Se não cessava a ameaça nuclear estratégica contra eles, não podiam fazer a reforma económica. E como conseguir que mudasse, pois com a bomba atómica como carta de negociação. Os líderes norcoreanos, os governantes asiáticos em general, costumam ser muito inteligentes. Não são repúblicas bananeiras, podem ser tiranias tremendas, mas são gente que pensa as coisas. Viram todo o que ocorreu na Ásia oriental, o que passou na China. Do mesmo modo que os chineses viram o que passava em Hong Kong ou Singapura; viram como mudava a economia global e após Mao fizeram o que fizeram. Os norcoreanos não são diferentes nisso. Sabem que devem mudar e, de facto, levaram a cabo tentativas, mas não podem os realizar enquanto a situação geopolítica não mude.

Foram incluídos no Eixo do Mau de Bush Jr.

Quando se acaba o guarda-chuva soviético já era muito claro que estavam expostos. E se depois o império adversário inclui-lhes em uma lista de possíveis ataques preventivos, pois na Coreia do Norte, como eu digo, o mistério da bomba atómica é o menos misterioso.

Mas por que particularmente Coreia do Norte sofre esse assédio militar e não os vietnamitas?

Boa pergunta. A analogia é pertinente? É um tema interessante para o que não tenho agora mesmo uma resposta. Teria que o pensar.

Na tua viagem a Coreia do Norte encontraste norcoreanos ricos.

Faz muitos anos que começaram novos canais de comércio e de possibilidades de enriquecer para a gente do regime. Não é muito diferente ao ocorrido na China ou na Rússia, de uma forma mais discreta talvez. Mas para mim, o sinal que o evidenciou foi que em uma localidade fronteiriça com Coreia do Norte, no hotel da cidade, tinha uma loja de Salvatore Ferragano. Perguntei-lhe à dependenta quem comprava aí, quem podia, e contestou-me que os coreanos do Norte, naturalmente. Aí um traje podia custar 2000 euros. Porque estes gajos manejam muito dinheiro. Há muita produção da Coreia do Sul que se faz no Norte e há muitos executivos e homens de negócios norcoreanos que se encarregam da exportação industrial a China, onde fazem cambalaches em zonas cinsentas... É a típica configuração de negócios de Estado, de setores da nomenclatura que são os proprietários desse Estado e o gerem. Uma burguesía vermelha, como se disse sempre. Outra feição é que também, nos anos 90, teve uma certa reforma, mas desde abaixo. A gente singela saltou-se à toreira toda uma série de normas e proibições, como não mudar de distrito, por exemplo. Criou-se um mercado que não se podia controlar e que o Estado não podia reprimir, nada mais que o aceitar. Isso transformou muitas coisas.

Tanto a população chinocoreana, que leva na China desde antes da guerra, como os próprios chineses, têm fortes laços com a população da Coreia do Norte.

Há uma rede de solidariedade muito grande e muito clara entre ambas populações. A fronteira está pouco vigiada, é permeável, bem mais do que se pensa, e percebi a sensação de que os norcoreanos não temiam surpresas de parte da sua fronteira chinesa: não têm despregue militar, tudo o têm focado à fronteira com o Sul. Como a população dessa zona chinesa é etnicamente coreana, há muito contacto e faltam mulheres, as tomam da Coreia do Norte para casais amanhados. Prostituição das mulheres norcoreanas, não sei, suponho que um pouco de tudo. Mas nestas sociedades pobres e tradicionais vês coisas que te ofendem muito, ou te surpreendem, mas se o pensas, no teu país eram moeda de mudança corrente faz em uns anos. A mim o que me chamou a atenção daquela fronteira era a estreita cumplicidade que tinha entre ambos lados.

Disseste que para os chineses "ser prepotentes com os norcoreanos seria como o ser com a sua própria biografia".

A gente da China maior de 50 anos de idade, essa geração, recorda a época de Mao, da que foram participes. E quando vêem a Coreia do Norte a percebem como o seu maoísmo. Como são parentes étnicos e parentes políticos, há certa propensão e condescendência. Vêem-lhes e pensam que as estão a passar canutas, mas pensando "como eu quando era jovem", quando aquela colectividade forçada, aquelas penúrias. Isso o vêem refletido agora no outro lado.

Olha, a uma beira do rio está Dandong, com as ruínas de uma ponte que os americanos bombardearam na guerra da Coreia. Como outras cidades chinesas de fronteira, Dandong é um escaparate, com uma silhueta luminosa de edifícios altos e modernos, um skyline cheio de luzes, para ser contemplada desde o outro lado do rio. No passeio fluvial organizam-se bailongos, gente maior que dança ao redor de um aparelho de música. Parece que o façam para ser vistos desde o outro lado. Passa o mesmo na fronteira com Vietname, há um verdadeiro exhibicionismo da prosperidade chinesa. Ao outro lado, Sinuiju, a cidade norcoreana é pobre e cinsenta, está muito decaída, com grandes estreitezas, no entanto é uma cidade privilegiada porque é porta de saída e entrada de certa atividade económica que deixa dinheiro, o facto de que seja fronteiriça e grande parte da exportação de matérias primas passe por aí lhe dá grandes vantagens antes que a outras zonas da Coreia do Norte que são paupérrimas.

Aí visitei umas zonas em circunstâncias bastante extraordinárias, porque não deixavam ir a estrangeiros, onde se via o Estado socialista pobre que ainda constrói casas e moradas, mas que estão muito mau. As casas estão vazias, são de um austero extraordinário, não há praticamente decoração, só um televisor. Há uma penúria alimentária importante. Lembrança ter visto um camião que era alimentado com lenha, tinha um reboque cheio de madeiros e uns gajos jogando na caldeira, isso era o que movia o veículo. Vi muita gente pescando nos rios, caminhando pelas vias do comboio; vias férreas nas que não tinha circulação e a gente estava a caminhar com toda a naturalidade sobre elas. Também encontrei à população muito delgada, muito magra, magros, que não lhes sobra nem uma grama de gordura. Os que escapam, quando chegam a China, têm diarreias, porque a sopa de gachas é a alimentação básica desta gente.

Mas ao mesmo tempo, encontrei gente com, não sê como o dizer, certa dignidade. Estavam muito preocupados pelo ensaio nuclear, que se tinha sentido como um terramoto. Os norcoreanos não são esses autómatos que saem nos desfiles militares, sempre em imagens de arquivo dos telejornais, gritando de forma fanática a consigna aos seus queridos dirigentes. É gente como todo mundo, normais, que quisesse viver melhor. Que sofrem opressão, a falta de liberdade. Ganharam liberdade de movimentos, mas têm uma população reclusa importante, não tanto como a dos Estados Unidos, por certo (risos), mas importante. E que têm o seu corazonzinho, gente normal. Com a sua família e a sua vida quotidiana, que vive em um contexto de grande opressão e constantes serviços e deveres para o Estado, como as mobilizações, os exercícios coletivos, o trabalho comunitário, todo isso que deve ser enormemente engorroso e servil. Ao mesmo tempo, há algo muito digno no seu ascética austeridade e pobreza. As casas, inclusive no campo, estão cuidadas, em zonas montanhosas vês que se cultivam as ladeiras mais inverosimilhantes, que se tenta aproveitar todo, todo isso exuda uma vontade muito asiática, contra a que sempre é difícil lutar e contra a que os ocidentais costumam estrellarse militarmente, seja no Vietname, Laos, no Japão, que ofereceu uma resistência numantina aos americanos na guerra do Pacífico. Vi casos de agricultores que lhes constroem a casa a uns vizinhos porque se lhes tem derrubado a sua, algo habitual dentro da cultura camponesa, que em cima dentro do seu regime é obrigatório. Depois Pyongyang recordou-me à Minsk dos anos 80. No sentido de grandes avenidas, sem carros, mas em general muito cuidadas, como costumam estar este tipo de cidades destes regimes.

Há um alcoholismo excessivo como na URSS?

Não acho que nada que signifique excesso esteja ao alcance da população geral por uma questão de pobreza. Agora, entre os quadros dirigentes e tal, há muita gente que lhe dá ao álcool, como ocorria na URSS. Embora eu lhe fiz uma entrevista em uma cidade de províncias a um cargo do partido, um dirigente local, que me pareceu o típico tio honesto, preocupado pela gente. Em China passa o mesmo, há gajos dirigentes absolutamente despreciáveis, que só pensam em si próprios, que se aproveitam da corrupção e a falta de pluralismo, e depois, ao menos eu vi, gente completamente comprometida com a comunidade, honesta, e que realmente são os melhores.

Explica a tua teoria de que Coreia do Norte é um "canário global".

Tem que ver com a analogia dos submarinos nucleares soviéticos, que entre tantos indicadores e medidores, tinham um canário, e se a palmava queria dizer que estava a passar algo mau aí dentro. Isto tem uma leitura realmente universal no caso da Coreia do Norte, porque é um país que sofreu o afundimento geral de quase tudo, dos seus intercâmbios comerciais, sofreu a incapacidade de se alimentar e se teve que replantar outro modelo económico após o afundimento do bloco do Leste. Esse exercício titánico poderia ser o que a humanidade se veja forçada a realizar se realmente se afundam uma série de coisas, de intercâmbios, ou condições, que hoje sustentam o desenvolvimento normal da nossa economia. Refiro-me a combustíveis fósseis, à rede de intercâmbios que está unida precisamente ao uso desmesurado destes combustíveis. E todo isso em cima em umas condições geopolíticas sumamente difíceis onde o império mais importante do mundo está aí achuchando. É um caso paradigmático desde esse ponto de vista.

Por que Coreia do Norte se sentiu sempre como a legítima Coreia?

Há uma continuidade. A princípios de século Japão invadiu a Coreia e fez-se com uma série de colaboracionistas. Quando acabou a guerra os americanos fizeram o mesmo que na Alemanha com os exnazis, empregaram a esses colaboracionistas para reconstruir o novo Estado. Puseram a uma série de senhores na direção, como Park Chung Hee, que tinha inclusive um nome japonês, Masao Takagi. Durante ocupação estava bem visto adotar nomes japoneses. Esta gente foram os encarregados de garantir o statu quo. Daí a perceção que tinham os coreanos do Norte, como de que o Sul era um Estado de "brincadeira". A diferença deles, que conquistava a sua soberania com as armas e nunca tinha um papel tão subsidiario com respeito a China e a União Soviética como o que o Sul tinha com Estados Unidos e Japão.

Este regime do Sul cometeu massacres.

Antes da guerra, no Sul teve tremendos massacres a cargo deste Governo; massacres contra movimentos que simplesmente pediam transformação, que nem sequer eram comunistas, eram simplesmente movimentos sociais.

Então Kim Il Sung termina envolvendo à URSS e China em um jogo diplomático para lançar-se a por o Sul, campanha que a Estaline não lhe fazia muita graça.

Acho que os dois regimes, o do Norte e o do Sul, tinham vontade de zurrar-se. As grandes potências não estavam nessa longitude de onda. Acabou em uma dinâmica de acontecimentos bastante confusa, ainda se discute quem e quando começou a guerra. Teve muitas escaramuças prévias, teve multidão de incidentes fronteiriços antes. Não está do todo claro. A versão ocidental pôs a ênfase em uma ofensiva do Norte sobre o Sul, mas a coisa era mais complicada. As responsabilidades eu diria que estão repartidas e as potências foram um pouco o brinquedo.

Na guerra, o Norte terminou arrasado pelos bombardeios, inclusive com armas biológicas.

Isto também se desconhece, mas ajuda a compreender a situação atual. Era um país devastado. Todas as cidades foram assoladas a níveis de 70% ou 80%, com uma população que sofreu muitíssimo. Também foram norma as crueldades sobre a população civil. Alguns estudos assinalam que teve mais atrocidades nas forças do Sul que nas do Norte, inclusive os americanos tiveram factos conhecidos de massacres de civis. Isto na iconografia da Coreia do Norte, por suposto, está sobre-dimensionado. Põe-se a ênfase nas feições que a eles lhes convém, como é natural e como faz todo mundo. Mas qualquer que examine os factos vê que foi um conflito tremendo e que marcou a toda uma geração que está ainda mandando na Coreia do Norte. E, curiosamente, também é importantíssimo para compreender a situação que os filhos dos imperialistas japoneses estão no poder em Tóquio. Textual, filhos e netos dos mandamais da etapa imperial. Como na Coreia do Sul, onde grande parte dos descendentes dos colaboracionistas também são os que mandam. Há um grande fenómeno biográfico.

Depois da guerra, nos 70, Coreia do Norte chegou a ter um grande desenvolvimento industrial, com uma renda per capita maior que a do Sul. Até era doador de ajuda ao desenvolvimento.

Estavam localizados nos intercâmbios comerciais do bloco do Leste, e fizeram-no com verdadeiro sucesso porque são muito capazes, muito trabalhadores. Assim tiveram um relativo equilíbrio nos 70 com o que acontecia no Sul até que a partir daí a coisa se disparou. O Sul foi um dos raros estados do mundo que conseguiu ascender de categoria, chegar a ser um país do primeiro mundo em poucos anos, e o Norte ficou muito atrás. Então, quando todo este esquema de intercâmbios se afunda, eles têm que desenvolver a agricultura para poder comer. Uma "reagrarização" para conseguir a auto-suficiência.

Até chegar à fome.

No 94 teve lugar uma fome tremenda. Uma mistura de desastres estruturais, naturais e de erros políticos, claramente. Também, do próprio isolamento do país, o qual pode fazer parte do erro político. Porque se o preço da auto-suficiência e a independência é que a tua população se morra, igual tens que começar a mudar isso e vender um pouco da tua soberania a China, ou a Rússia. Bom, nos 90 Rússia estava out. Quiçá sim a China para ter um pouco mais de prosperidade, um pouco menos de mortandade ao menos!

Essa resistência delirante é no que consiste a filosofia do Amado Líder, o Juche.

Todos os Estados comunistas estabeleceram certa continuidade dinástica com os pais fundadores do socialismo. Temos o exemplo mais claro na União Soviética, com os cartazes de Marx, Engels e depois Lenine, e depois Estaline. China fez o mesmo com Mao, o marxismo-leninismo pensamento Mao Tse-tung. Todos emendaram a ideologia inspiradora. Mas os coreanos do Norte foram para além e criaram uma ideologia nova, alternativa ao marxismo, que se considerava mais importante e melhor. Isso foi o Juche, cuja profundidade não é pouca coisa, a defesa da soberania nacional antes de mais nada, o "nós somos os melhores". Uma ideologia de auto-suficiência que vem inseparavelmente unida ao exemplo do confucionismo, onde o pai da nação, o pai fundador, é considerado um deus e os seus filhos e netos queridos dirigentes ou amados líderes. É um rasgo de sociedade tradicional e oriental, para as quais a continuidade é muito importante. Esses senhores que a nós nos parecem tão ridículos, sobretudo o filho e o neto, desde o ponto de vista patrimonial do Estado dão certa segurança. E depois na Constituição têm o lema dos três mosqueteiros, o todos para um e um para todos, pelo colectivismo, etcétera.

Do filho, Kim Jong Il, lemos muitas caricaturas sobre as suas excentricidades, mas também era um líder que levou a cabo uma partilha de poder e depois há depoimentos, como o de Madeleine Allbright, que lhe definiam como alguém "sensato, resolutivo".

É uma opinião generalizada entre a gente que o conheceu. Depois criou-se a lenda de que se levava saltos, que se gostava dos filmes, que se os peiteados. A caricatura fomentou-se, mas a realidade era outra. Com respeito às reformas que ele fez, como símbolo de um establishment -que são os ex-companheiros do seu pai na guerrilha-, para proteger-se do afundimento do Leste, criou uma configuração absolutamente atípica. Consideravam que a urgência derivada da ameaça estratégica era o prioritário. Para isso mudaram a estrutura típica do comunismo e puseram ao exército por adiante do partido. Nisso consistiu a partilha de poder.

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