Entrevista a David Harvey tirada de Outras Palavras (aqui). Entrevista a Vince Emanuele | Tradução: Sônia Scala Padalino.
Se vivemos
em cidades que nos infernizam e aprisionam, qual a causa de sua
desumanidade? E, mais importante: que caminhos permitirão
transformá-las? As respostas, para esta questão crucial, raramente
coincidem. Às vezes, são genéricas demais e paralisam: núcleos urbanos
insuportáveis seriam consequência necessária de um sistema que coloca o
lucro acima dos seres humanos. Só o fim do capitalismo abriria espaço
para novas cidades. Em outros casos, as respostas são muito pouco
ambiciosas. Diante de adversários poderosíssimos – o poder econômico e
uma política institucional cada vez mais impermeável às aspirações
sociais – deveríamos nos concentrar em humanizar espaços restritos. Uma
bairro, uma praça, uma horta comunitária.
Acaba de percorrer três cidades brasileiras – Rio, Florianópolis e São Paulo – David Harvey,
um pensador que busca, há décadas, soluções para este impasse.
Geógrafo, Harvey é também marxista. Para ele, portanto, o degradação das
cidades está associada ao capitalismo.
Mas este
britânico de 77 anos não se satisfaz com conclusões fáceis. Seu desafio
intelectual tem sido, desde que se dedicou ao estudo da urbanização,
localizar os mecanismos precisos por meio dos quais as relações
capitalistas deterioram a cidade. Harvey sabe que identificar tais
mecanismos ajudará a revertê-los; ao passo que repetir chavões poderá,
no máximo, satisfazer egos.
Sua
investigação o tem levado a conclusões importantes. Por trás de
movimentos aparentemente contraditórios – em certos momentos, o centro
das metrópoles esvazia-se, para se supervalorizar e aburguesar, no
período seguinte –, há necessidades específicas relacionadas à
acumulação de capital. Nos EUA, por exemplo, os centros foram
abandonados a partir da década de 1950 (morar em Manhattan era
baratíssimo…), quando esgotou-se o esforço de guerra e o sistema
precisou recolocar recursos na indústria automobilística, abertura de
estradas e construção imobiliária intensa nos subúrbios. Trinta anos
depois, uma nova supremacia (a dos mercados financeiros) estimulou uma
volta às Velhas Cidades. Na primeira fase, agrediu-se a natureza. Na
segunda, expulsaram-se os pobres…
Em certos
momentos, prossegue Harvey, torna-se possível romper esta lógica. Para o
geógrafo, a Comuna de Paris (1871) não foi apenas uma tentativa de
expropriar a burguesia, mas a busca de “uma nova vida cotidiana, em
reação ao desenvolvimento especulativo e consumista da classe alta”. Mas
não é preciso esperar por estas rupturas, para começar a reinventar a
cidade.
Harvey
sabe que “o replanejamento é algo de longo prazo”. Por isso, valoriza
também processos aparentemente menos radicais. Por exemplo, a invenção
dos Orçamentos Participativos, que foram mantidos em Porto Alegre por
cerca de dez anos, na virada do século. O decisivo é negar a lógica que
reduz a cidade a um mero território de valorização capitalista e começar
a fazer perguntas: “Como deve ser nossa relação com a natureza? Que
tipo de urbanização queremos”?
Em sua passagem pelo Brasil, David Harvey fez palestras e lançou a primeira versão em português de uma obra antiga: Os limites do capital, publicado em 1982. A entrevista a seguir foi feita há alguns meses, por uma rádio alternativa dos EUA (Veterans’ Unplugged) e debate uma obra mais recente: Rebel Cities (2012), ainda sem tradução em português (embora tenha inspirado a coletânea brasileira Cidades Rebeldes,
sobre os protestos de junho). É abordando este tipo de mobilização,
aliás, que o geógrafo encerra sua conversa. “O conselho que dou a todos é
ir para as ruas o mais possível, enfrentar a desigualdade social e a
degradação ambiental. (…) Gostaria que as pessoas se tornassem ativas,
avançassem. Esse momento é crucial. O grande capital não cedeu em nada
até agora. Precisamos produzir um impulso enorme se quisermos ver algo
diferente em nossa sociedade”.
Por sua extensão (quase um ensaio), a entrevista será publicada, por Outras Palavras em duas partes. Boa leitura! (A.M.)
No prefácio de Cidades Rebeldes,
você descreve sua experiência em Paris nos anos 1970: “Edifícios
gigantescos, ruas, construções da administração pública desprovidas de
alma; mercantilização monopolizada das ruas que ameaçavam anular a velha
Paris… O que era velho não podia durar”. Além disso, em 1967, Henri
Lefèbvre escreveu seu ensaio fundamental, O direito à cidade [publicado em português pela Saraiva]. Pode nos falar sobre o período?
O mundo inteiro considera os anos 1960,
como um período de crise urbana. Nos Estados Unidos, por exemplo, muitas
cidades importantes se incendiaram. Houve revoltas e revoluções em Los
Angeles, Detroit e, depois do assassinato de Martin Luther King em 1968,
aproximadamente 120 cidades daquele país viveram inquietações sociais e
ações rebeldes mais ou menos maciças. Ocorre que as cidades estavam
modernizando-se, com base no automóvel e nas zonas residenciais. A Velha
Cidade, aquilo que fora o centro político, econômico e cultural
durantes os anos 40 e 50, estava desaparecendo.
Essa era a tendência em todo o mundo
capitalista avançado, não apenas nos EUA. Havia sérios problemas na
Grã-Bretanha e na França, onde um antigo modo de vida estava sendo
desmantelado – um modo de vida do qual, acredito, ninguém devia ter
saudades. Esse velho modo de vida foi descartado e substituído por um
novo, baseado na comercialização, propriedade, especulação imobiliária,
construção de estradas, automóveis, suburbanização. Com todas essas
mudanças, houve um aumento da desigualdade e das tensões sociais.
A depender do lugar em que estivéssemos, a
desigualdade ou era de classe, ou se concentrava em minorias
específicas. Nos EUA, é claro que a comunidade afro-americana tinha as
menores oportunidades de trabalho e menos recursos. Se olharmos para
trás, veremos que havia programas governamentais na Grã-Bretanha, França
e Estados Unidos para tentar enfrentar a “crise urbana”, sempre do
mesmo modo. É fascinante estudar essa questão, mas traumático vivê-la
como experiência. A crise dos anos 60 foi crucial, e acredito que
Lefèbvre tenha compreendido isso muito bem. Ele acreditava que os
moradores deviam ter voz ativa nas decisões sobre como as áreas deviam
ser, o tipo de urbanização que devia ser adotado. Ao mesmo tempo, os que
resistiam queriam inverter a maré da especulação imobiliária que
começava a absorver as áreas urbanas em todos os países capitalistas
industrializados.
Você escreveu, no primeiro capítulo: “A
questão de que tipo de cidade queremos não pode ser separada da questão
de que tipo de pessoas queremos ser, quais relações sociais procuramos,
que relação temos com a natureza, que estilo de vida desejamos e quais
valores estéticos temos”. Mais à frente, você cita a Comuna de Paris
como evento histórico que deve ser analisado, pois talvez nos ajude a
conceituar o que é o “direito à cidade”. Existem outros exemplos
históricos, além deste, sobre os quais podemos refletir? Que desafios
temos pela frente, especialmente no contexto neoliberal?
Penso que a ideia de que a cidade que
queremos construir deva refletir nossos desejos e exigências pessoais é
muito importante. Quem vive num lugar como Nova York precisa se deslocar
pela cidade, precisa se relacionar com os outros de um modo bem
específico. Como todos sabem, os nova-iorquinos tendem a ser frios e
ríspidos. Isso não significa que não se ajudem uns aos outros, mas, para
enfrentar a rotina cotidiana e a enorme quantidade de pessoas nas ruas e
no metrô, você precisa negociar com a cidade de certa maneira. Da mesma
forma, viver em zonas residenciais privadas leva a outros modos de
pensar como deveria ser a vida cotidiana. Estas coisas evoluem para
posições políticas diferentes, que quase sempre implicam a manutenção de
certas urbanizações privadas e exclusivas, à custa do que se passa na
periferia. Essas posições sociais e políticas são fruto do tipo de
contexto que criamos.
Para mim, esse é um conceito muito
importante: as respostas revolucionárias ao ambiente urbano têm muitos
precedentes históricos. Por exemplo, em Paris, em 1871, as pessoas
queriam um tipo diferente de urbanização; queriam que um tipo diferente
de gente vivesse ali. Era uma reação ao desenvolvimento especulativo e
consumista da classe alta. A revolta que exigia um tipo diferente de
relações sociais, de gênero e de classe.
Poderíamos citar muitos outros exemplos,
como a greve geral de Seattle, em 1919. O povo assumiu o controle da
cidade e criou estruturas comunitárias. Em Buenos Aires, em 2001,
aconteceu a mesma coisa. Em El Alto, na Bolívia, em 2003, houve outro
tipo de revolta. Na França, vimos as áreas suburbanas dissolverem-se em
tumultos e movimentos revolucionários ao longo dos últimos vinte anos.
Ora, os movimentos revolucionários nas áreas urbanas desenvolvem-se
lentamente. Não é possível mudar a cidade inteira em uma noite. Para
mim, portanto, o replanejamento de uma cidade é um projeto de longo
prazo.
O que vemos, porém, é uma transformação do
estilo de urbanização no período neoliberal. A resposta a muitos dos
protestos de que falamos foi replanejar as cidades segundo os princípios
neoliberais de autossuficiência, e traduzir a responsabilidade pessoal,
a concorrência e a fragmentação da cidade em urbanizações privadas e
espaços privilegiados. Por sorte, as pessoas são obrigadas a pensar em
algum tipo de transformação revolucionária em determinados momentos –
como em Buenos Aires, em 2001. Eclodiram movimentos que levaram à
ocupação de fábricas e à realização de assembleias. Eles foram capazes
de ditar o modo em que se devia organizar a cidade e começaram a fazer
sérias perguntas: quem queremos ser? Como deve ser nossa relação com a
natureza? Que tipo de urbanização queremos?
Pode explicar melhor alguns destes
termos? Por exemplo, é possível ver a suburbanização como resultado de
“um modo de absorver o excedente de produtos e resolver o problema da
absorção da excedência de capital”? Em outras palavras, por que nossas
cidades foram esvaziadas desse modo específico?
Este também é um processo longo, infinito.
Voltemos aos anos 30 e à Grande Depressão. Como conseguimos sair dela?
Um dos grandes problemas, reconhecidos por todos, era não haver um
mercado forte. A capacidade produtiva estava lá, mas não havia como
absorver o fluxo dos produtos. Havia, portanto, um capital excedente que
não tinha para onde ir. Fizeram-se tentativas frenéticas para encontrar
um modo de gastar o capital em excesso. Houve coisas como o programa de
obras de Roosevelt para a construção de autoestradas, que tentavam
absorver especialmente o excedente de capital e de mão de obra
existentes.
Mas só se encontrou uma solução real com a
chegada da II Guerra Mundial. Todo o excedente foi, então, imediatamente
absorvido pelo esforço bélico – na produção de armas, munições e todo o
resto. A guerra pareceu, de início, resolver o problema da Grande
Depressão. Mas a essa altura, surgiu a pergunta sobre o pós-guerra: o
que iria acontecer quando ela acabasse? O que iria acontecer com todo o
capital excedente?
Aqui começa a suburbanização dos Estados
Unidos. A construção de zonas residenciais – naquele momento tratava-se
da construção de zonas ricas – absorveu o excedente de capital.
Inicialmente, construíram o sistema de autoestradas e todos passaram a
precisar de um automóvel, pois a casa de periferia tornou-se uma espécie
de “castelo” para a classe trabalhadora. Tudo isso aconteceu deixando
de lado as comunidades empobrecidas dos centros urbanos. Foi esse o
modelo de urbanização dos anos 1950 e 60.
No período posterior aos anos 70 acontece o
inverso: o centro da cidade torna-se extremamente rico. De lugar com
preços baixos nos anos 70, Manhattan passou a ser um vasto complexo
privado para gente muito rica e poderosa. Nesse meio tempo, as
comunidades empobrecidas – minorias, em geral – foram expulsas para a
periferia. As pessoas fugiram de Nova York para as pequenas cidades do
norte do estado ou para a Pensilvânia.
O modelo geral de urbanização está
relacionado com a questão de onde se encontram as oportunidades
rentáveis para investir o capital. Como sabemos, as oportunidades
rentáveis foram poucas nos últimos 15 anos mais ou menos. Durante esse
tempo, rios de dinheiro entraram no mercado imobiliário para a
construção de casas. Depois vimos o que aconteceu na primavera de 2008,
quando a bolha imobiliária explodiu. Por isso, precisamos considerar a
urbanização como produto da busca de meios para absorver a produtividade
e a produção crescentes de uma sociedade capitalista muito dinâmica,
que precisa crescer numa taxa 3% para sobreviver.
Agora, você cita o crescimento explosivo
do PIB na Turquia e em várias partes da Ásia. Cita também um paradoxo
da China: houve um processo enorme de urbanização nos últimos vinte
anos, mas os mesmos projetos industriais que produzem lucros enormes
deslocaram milhões e destruíram o ambiente natural. Cidades inteiras
estão completamente vazias, já que apenas uma pequena porcentagem da
população pode se permitir luxo e conforto. Pode falar destes fenômenos e
contradições?
Bem, a China está agindo do mesmo modo que
os Estados Unidos, quando lançaram a suburbanização após a segunda
guerra. Acho que quando os chineses precisaram decidir o que fazer –
principalmente dentro de uma recessão econômica global e diante dos
lucros muito lentos de 2007-08 –, resolveram enfrentar as dificuldades
econômicas por meio da urbanização e dos programas de infraestrutura:
trens de alta velocidade, autoestradas, arranha-céus, etc. Esse foi o
meio de absorver o excedente de capital. É claro que todos os que
forneceram matérias-primas à China deram-se muito bem: a demanda chinesa
foi muito alta. Ela absorve metade do fornecimento mundial de aço.
A aparência do mundo muda muito conforme o
lugar em que estamos. Acabo de ir a Istambul (Turquia), e vi guindastes
de construção civil por toda a parte. O país cresce 7% ao ano e é hoje
muito dinâmico. Quando se está lá, não é possível imaginar que o resto
do mundo esteja em crise. Depois, com um voo de duas horas e meia,
cheguei a Atenas (Grécia), e nem preciso dizer o que está acontecendo
por lá. É como entrar numa zona de calamidade pública, onde tudo está
parado. As lojas estão fechadas, não há construções em lugar nenhum da
cidade. A distância entre as duas cidades é de menos de mil quilômetros,
mas são dois lugares completamente diferentes. É isso que podemos
esperar da economia global de hoje: alguns lugares em pleno boom e
outros que vão à falência. As crises econômicas têm sempre um
desenvolvimento geográfico desigual. É fascinante contar essa história.
No capítulo 2, “As raízes urbanas da
crise”, você aborda a relação entre crise econômica nos Estados Unidos,
casa própria e direitos de propriedade individual que são componentes
ideológicos importantes do “sonho americano”. Mas logo avisa que esses
“valores culturais” adquirem certa importância quando são subvencionados
por políticas públicas. Que políticas são essas?
Bem, nos anos 1930, menos de 40% dos
americanos tinha casa própria – ou seja, 60% da população pagava
aluguel, principalmente pessoas empobrecidas ou de classe média. Essas
populações estavam inquietas. Por isso, nos anos 40 e 50 ganhou força a
ideia de que era possível estabilizá-las e torná-las favoráveis ao
capitalismo dando-lhes a oportunidade de adquirir casa própria. As
instituições de poupança e crédito receberam muito apoio. Era lá que as
pessoas depositavam suas economias, e estas eram usadas para promover a
casa própria das populações de baixa renda. Aconteceu a mesma coisa na
Grã Bretanha com a “Building Society”.
Essa tendência teve início, aliás, já por
volta de 1890, quando a classe empresarial pensava em como tornar as
populações de renda mais baixa estáveis e menos irrequietas. Havia uma
frase maravilhosa: “os proprietários de casas não fazem greve”.
Lembre-se que as pessoas precisavam contrair dívidas para se tornar
proprietárias. E aí está o mecanismo de controle. Esse sistema, porém,
foi muito fraco nos anos 20, até que nos anos 30 o governo dos Estados
Unidos e as classes empresariais decidiram reforçá-lo. Criaram-se os
empréstimos de trinta anos. Mas para que funcionassem era preciso ter,
de algum modo, uma garantia. Isso levou à criação de instituições
públicas que garantissem as hipotecas.
Ao mesmo tempo, os bancos precisavam
encontrar um modo de repassar os empréstimos a terceiros e foi assim que
criaram essa organização chamada Fannie Mae. Foi isso que
aconteceu naquele período: órgãos públicos usados para favorecer e
garantir a propriedade das casas, em particular para as classes média e
baixa, o que as desencorajava na hora de fazer greves ou de sair da
linha. Estavam endividadas. Estas instituições deslancharam realmente
depois da II Guerra Mundial. Houve muita propaganda sobre o “sonho
americano” e sobre o que significava ser americano. Permitia-se deduzir,
dos impostos, os juros pagos sobre o empréstimo. O Estado subvencionava
a propriedade da casa; as instituições públicas promoviam-na.
Já no governo Clinton, em 1995, promoveu-se
a casa própria para as minorias. O desenrolar da “crise de subprime”
esteve estreitamente ligado ao que o setor privado fazia e também ao que
as políticas de governo garantiam. Este é um aspecto crucial da vida
americana: 60% da população pagava aluguel, nos anos 1930; mas, entre
2007/08, atingiu-se um pico em que 70% passou a ter casa própria. Isso
cria naturalmente um tipo diferente de atmosfera política, na qual a
defesa dos direitos e dos valores da propriedade passa a ter grande
importância. Surgem os movimentos de bairro com os quais os
proprietários tentam manter certas pessoas fora de suas áreas, pois
dão-se conta de que poderiam desvalorizar as propriedades. As habitações
tornam-se uma forma de poupança para as famílias de classe média e da
classe trabalhadora. As pessoas têm acesso a essas poupanças por meio do
refinanciamento de suas casas. A casa própria é apresentada, agora,
como se fosse o sonho de toda uma vida para os que vivem nos Estados
Unidos. Mas, sem dúvida, esse sonho sempre existiu, pelo fato de que, ao
conseguir um pouco de terra, pode-se cultivar alguma coisa, conseguir
uma vida melhor, etc. Isso fazia parte do sonho dos migrantes. Mas foi
transformado na casa própria suburbana, o que não significa ter vacas e
frangos no quintal, mas sim estar cercado pelos símbolos do consumismo.
Mais adiante, no mesmo capítulo, você
menciona o fato de que devemos ir além de Marx, mas usando suas
percepções mais proféticas. De que modo podemos “ir além de Marx”?
Marx é importante porque compreendia
profundamente como funciona a acumulação de capital. Percebia que essa
máquina de crescimento perpétuo contém muitas contradições internas. Uma
das contradições fundamentais das quais fala é entre o “valor de uso” e
o “valor de troca”. Vemos com clareza de que modo ela age na situação
da casa. Qual é o valor de uso de uma casa? Bem, é uma forma de refúgio,
um lugar de privacidade, é onde se pode criar uma família. Podemos
citar muitos outros valores de uso.
Mas ela tem também um valor de troca.
Lembre-se que quando alguém aluga uma casa, aluga-a com base apenas no
que lhe é útil. Mas quando alguém compra uma casa, considera-a como um
tipo de poupança e, depois de certo tempo, usa-a como forma de
especulação. Como consequência, os preços das casas aumentam. Nesse
contexto, o valor de troca passa a dominar o valor de uso. A relação
entre o valor de troca e o valor de uso escapa ao controle. Assim,
quando o mercado imobiliário explode, repentinamente cinco milhões de
pessoas perdem as casas e o valor de uso desaparece. Marx fala dessa
importante contradição. Precisamos fazer a seguinte pergunta: o que
devemos fazer com a habitação? O que devemos fazer com a saúde? O que
estamos fazendo com a educação? Não deveríamos promover o valor de uso
da instrução? E por que as necessidades vitais devem ser supridas por
meio do sistema do valor de troca? É óbvio que devemos rejeitar o
sistema do valor de troca, refém da especulação e dos lucros excessivos.
É realmente impressionante quanto somos capazes de comprar produtos e
serviços. Essa é uma das contradições que Marx descreveu muito bem.
(continua)
–
* Entrevista feita por Vince Emanuele para a “Veterans Radio Unplugged”, transmissão que vai ao ar todos os domingos em Michigan City (EUA). Vince é também membro da organização Veteranos pela Paz e faz parte do conselho de administração do Veteranos do Iraque contra a Guerra. A entrevista, transcrita e publicada pelo Znet, um dos principais sites alternativos dos Estados Unidos. Publicamos a tradução, para o português, da versão em italiano.
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