Slavoj Žižek. Artigo tirado de Outras Palavras (aqui). Publicado em inglês na revista New Statesman, em 12 de fevereito de 2014. Tradução Artur Renzo, no Blog da Boitempo
Que estranha relação existe entre a luta de Julian Assange, confinado numa embaixada do Equador, e a resistência a Hitler?
Em dezembro de 2013 visitei Julian Assange na embaixada equatoriana
localizada logo atrás da loja Harrods em Londres. Foi uma experiência um
tanto deprimente, apesar da gentileza do pessoal da embaixada. A
embaixada é um apartamento de seis cômodos sem jardim anexo, de forma
que Assange não pode nem dar uma andada diária ao ar livre. Ele também
não pode pisar para fora do apartamento, ao corredor principal da casa –
policiais esperam por ele lá. Algo como uma dúzia deles estão o tempo
todo em torno da casa e em alguns dos prédios circundantes, um deles
inclusive debaixo de uma pequena janela de banheiro que dá para o jardim
dos fundos, caso Assange tente escapar por aquele buraco na parede. O
apartamento é grampeado de cima a baixo, sua ligação de internet é
suspeitosamente lenta… então como assim o Estado britânico decidiu
empregar em torno de 50 pessoas em tempo integral para vigiar Assange e
controlá-lo sob o pretexto legal de que ele se recusa a ir à Suécia para
ser questionado sobre uma má conduta sexual leve (não há acusações
legais contra ele!)? É tentador se tornar um thatcherista e perguntar:
onde está a política de austeridade aqui? Se um ninguém como eu
fosse procurado pela polícia sueca para uma interrogação semelhante o
Reino Unido também empregaria 50 pessoas para me vigiar? A pergunta
séria está aqui: de onde brota tal desejo ridiculamente excessivo de
vingança? O que Assange, seus colegas e fontes denunciantes fizeram para
merecer isso?
Jacques Lacan propôs como axioma da ética da psicanálise: “Não recues
de teu desejo”. Não seria esse axioma uma designação precisa dos atos
dos denunciantes? A despeito de todos os riscos envolvidos a sua
atividade, eles não estão dispostos a recuar – de que? Isso nos traz à
noção de evento: Assange e seus colaboradores realizaram um verdadeiro e
autêntico evento político – com isso, pode-se facilmente compreender a
reação violenta das autoridades. Assange e seus colegas são
frequentemente acusados de traidores, mas são algo muito pior (aos olhos
das autoridades) – para citar Alenka Zupančič:
“Mesmo se Snowden vendesse suas informações discretamente a outro
serviço de inteligência, esse ato ainda contaria como parte dos ‘jogos
patrióticos’, e se necessário ele seria liquidado como um ‘traidor’. No
entanto, no caso de Snowden, estamos lidando com algo inteiramente
diferente. Estamos lidando com um gesto que questiona a própria lógica, o
próprio status quo, que por um bom tempo vem servindo de único
fundamento para toda a (não) política ‘ocidental’. Com um gesto que,
digamos, põe tudo a perder, sem nenhuma consideração por lucro e sem
seus próprios interesses em jogo: assume-se o risco porque baseia-se na
conclusão de que o que está acontecendo é simplesmente errado. Snowden
não propôs nenhuma alternativa. Snowden, ou melhor, a lógica de seu
gesto, assim como, digamos, o gesto de Bradley Manning – é a alternativa.”
Essa descoberta fundamental do WikiLeaks está lindamente sintetizada
na auto-designação irônica de Assange como um “espião para o povo”:
“espiar para o povo” não é uma negação direta da espionagem (o que seria
antes agir como um agente duplo, vendendo nossos segredos para o
inimigo) mas sua auto-negação, isto é, ele mina o próprio princípio
universal da espionagem, o principio do sigilo, já que seu objetivo é
tornar públicos os segredos. Funciona portanto de forma semelhante à
forma pela qual a “ditadura do proletariado” marxiana deveria ter
funcionado (mas raramente o fez, é claro): como uma auto-negação
iminente do próprio princípio de ditadura. Àqueles que continuam
pintando o espantalho do comunismo devemos responder: o que o WikiLeaks
está fazendo é a prática do comunismo. O WikiLeaks simplesmente realiza o
bem comum na informação.
Na luta das ideias, a ascensão da modernidade burguesa foi
exemplificada pela Enciclopédia francesa, um empreendimento gigantesco
apresentando de forma sistemática todo o conhecimento disponível a um
amplo público. O destinatário desse conhecimento não era o Estado, mas o
público como tal. Pode parecer que a Wikipédia já é a enciclopédia de
hoje, mas algo falta a ela: o conhecimento que é reprimido e ignorado
pelo espaço público, reprimido porque concerne precisamente a forma pela
qual mecanismos estatais e agências controlam e regulam a todos nós. O
objetivo do WikiLeaks deveria ser tornar esse conhecimento disponível
para todos nós a um simples clique. Assange é efetivamente o d’Alambert
de hoje, o organizador dessa nova enciclopédia, a verdadeira
enciclopédia do povo para o século 21. É crucial que essa nova
enciclopédia adquira uma base independente internacional, para que seja
minimizado o jogo humilhante de se colocar um grande estado contra outro
(como Snowden, obrigado a buscar asilo na Rússia). Nosso axioma deve
ser o de que Snowden e Pussy Riot são parte da mesma luta – mas que
luta?
Nossos bens comuns informacionais emergiram como um dos domínios
chave da luta de classes em dois de seus aspectos: econômico em sentido
estrito e sócio-político. Por um lado, novas mídias digitais nos
confrontam com o impasse da “propriedade intelectual”. A World Wide Web
parece ser comunista em sua natureza, tendendo ao livre fluxo de dados –
CDs e DVDs estão gradualmente desaparecendo, milhões de pessoas estão
simplesmente baixando músicas e vídeos, geralmente de graça. É por isso
que o establishment de negócios está envolvido numa luta
desesperada para impor a forma da propriedade privada nesse fluxo. Por
outro lado, as mídias digitais (especialmente com o acesso quase
universal à rede e a celulares) abriram novas formas para as milhões de
pessoas comuns estabelecerem uma rede e coordenar suas atividades
coletivas, oferecendo também a agencias estatais e a companhias privadas
possibilidades inauditas de rastrear nossos atos públicos e privados. É
nessa luta que o WikiLeaks interviu de forma tão explosiva.
Em suas Notas para uma definição de cultura, T.S. Eliot
comenta que há momentos em que a única escolha é aquela entre a heresia e
a descrença, em que a única forma de manter uma religião viva é
efetuando um racha sectário em relação a seu corpo principal. Isto é o
que o WikiLeaks fez: sua atividade é baseada no insight de que a
única forma de manter nossa democracia viva é rompendo com seu principal
cadáver institucional de aparatos e mecanismos estatais. Ao fazer isso,
o WikiLeaks fez algo inédito, redefinindo as coordenadas do que conta
como possível ou admissível na esfera pública. Escrevi um livro sobre a
noção de “evento” precisamente para criar o espaço para a compreensão
adequada de fenômenos como o WikiLeaks, quando um ato político não
apenas viola as regras predominantes mas cria suas próprias novas regras
e impõe novos padrões éticos. O que até então tomávamos como
auto-evidente – o direito do Estado a nos monitorar e controlar – é
agora visto como profundamente problemático; o que até então percebíamos
como algo criminoso, um ato de traição – divulgação de segredos de
Estado –, agora aparece como um ato heroico e ético.
Dessa breve descrição, já podemos ver como um evento se situa no
interior de um campo narrativo. Nossa experiência histórica é formada
como uma narrativa, isto é, sempre situamos ocorrências reais no
interior de uma narrativa que as torna parte de um enredo que faça
sentido. Surgem problemas quando uma reviravolta inesperada e abaladora
nos acontecimentos – a eclosão de uma guerra, uma profunda crise
econômica – não pode mais ser incluída numa narrativa consistente. Nessa
situação, tudo depende da forma pela qual essa reviravolta catastrófica
será simbolizada, de que interpretação ideológica ou narrativa irá se
impor e determinar a percepção geral da crise. Quando o decorrer normal
das coisas é traumaticamente interrompido, o campo se abre para disputa
ideológica. Por exemplo, na Alemanha do final da década de 20, Hitler
venceu a disputa pela narrativa que iria explicar aos alemães as razões
pela crise da república de Weimar e a forma de sair dela (sua trama era a
trama dos judeus); na França de 1940 foi a narrativa de Marshal Pétain
que venceu na explicação das razões pela derrota francesa.
A lição importante desse exemplo do fascismo é que existem também o
que se pode chamar de eventos negativos. Imagine uma sociedade que
integrou completamente à sua substância ética os grandes axiomas
modernos de liberdade, igualdade, direitos democráticos, o dever de uma
sociedade prover educação e saúde básica para todos seus membros, e que
visse o racismo ou o machismo como simplesmente inaceitáveis e
ridículos.
Não é nem preciso argumentar contra, digamos, o racismo, já que
qualquer um que abertamente o advogue é imediatamente visto como um
esquisito excêntrico que não pode ser levado a sério, etc. Mas aí, passo
a passo, essas conquistas vão sendo desfeitas. Já se pode abertamente
propagar o racismo, advogar a tortura, etc. Hitler não fez algo assim?
Sua mensagem ao povo alemão não era: “Sim, nós podemos…” – matar os
judeus, esmagar a democracia, agir de forma racista, atacar outras
nações? E não estamos testemunhando sinais de um processo semelhante
hoje?
Em meados de 2013, dois protestos públicos foram anunciados na
Croácia, um país em profunda crise econômica, com um alto índice de
desemprego e uma profunda sensação de desespero na população: sindicatos
tentaram organizar uma passeata em apoio aos direitos trabalhistas,
enquanto nacionalistas de direita iniciaram um movimento de protesto
contra o uso de caracteres cirílicos em edifícios públicos nas cidades
com minoria sérvia. A primeira iniciativa trouxe a uma grande praça em
Zagreb algumas centenas de pessoas; a segunda conseguiu mobilizar
centenas de milhares, o mesmo que com um outro movimento fundamentalista
contra o casamento gay. A Croácia está longe de ser exceção nesse
quesito: dos Balcãs à Escandinávia, dos EUA a Israel, da África central à
Índia, uma nova Idade das Trevas está por vir, com paixões étnicas e
religiosas explodindo e valores do Iluminismo retrocedendo. Essas
paixões estiveram à espreita no escuro o tempo todo, mas o que é novo
agora é a forma totalmente descarada na qual aparecem.
Esse atual processo de minar os próprios fundamentos de nossas
conquistas emancipatórias se dá em níveis diferentes. O debate sobre o
afogamento simulado ser ou não tortura deve ser descartado como uma
óbvia besteira: por que, se não provocando dor e medo da morte, o
afogamento simulado faz com que suspeitos terroristas resilientes falem?
E quanto à substituição da palavra “tortura” por “técnica aprimorada de
interrogação”, deve-se notar que estamos lidando aqui com uma extensão
da lógica do Politicamente Correto: na exata mesma forma que “alejado”
vira “deficiente físico”, “tortura” vira “técnica de interrogação
aprimorada” (e, por que não, “estupro” poderia se tornar “técnica
aprimorada de sedução”).
Vale insistir nesse paralelo entre tortura e estupro: e se um filme
mostrasse um estupro brutal dessa mesma forma neutra, alegando que
deve-se evitar o moralismo barato e começar a pensar no estupro em toda
sua complexidade? Nossas entranhas nos dizem que existe algo de
terrivelmente errado aqui: eu gostaria de viver em uma sociedade em que o
estupro é simplesmente considerado inaceitável, de forma que qualquer
um que argumente em seu favor é visto como um idiota excêntrico, não em
uma sociedade em que é preciso argumentar contra ele. O mesmo vale para a
tortura: um sinal de progresso ético é o fato de a tortura ser
“dogmaticamente” rejeitada como repulsiva, sem nenhuma necessidade de
argumentação. Mas e o argumento “realista”: a tortura sempre ocorreu, se
bobear até mais no passado (recente), então não é melhor ao menos
falarmos publicamente sobre ela? Esse, exatamente, é o problema: se a
tortura sempre ocorreu, por que aqueles que agora estão no poder passaram a falar abertamente sobre ela? Só há uma resposta: para normalizá-la, isto é, para rebaixar nossos padrões éticos.
E é crucial ver essa regressão ética como o obverso do
desenvolvimento explosivo do capitalismo global – são dois lados da
mesma moeda. Então como ficamos hoje? Perto do museu das crianças em
Seoul há uma estátua esquisita que, aos não-iniciados, não pode senão
parecer a representação de uma cena de extrema obscenidade: parece um
grupo de meninos, enfileirados um atrás do outro, enfiando suas cabeças
dentro do reto do colega em frente, enquanto o menino da frente porta-se
de pé e virado de frente para os outros, também com a cabeça do
primeiro colega enfiada em sua virilha.
Quando inquerimos, somos informados que a estátua é simplesmente a representação do malttukbakgi,
um divertido jogo que tanto meninas quanto meninos coreanos jogam até o
colegial. São dois times; o time A deixa uma pessoa de pé encostada na
parede enquanto o resto do time fica com a cabeça enfiada na
bunda/virilha de alguém de modo a formarem o que parece ser um grande
cavalo. O time B então monta no cavalo humano um a um, pulando com o
máximo de força possível; se alguém de algum time cair no chão, seu time
perde.
Essa estátua não é a metáfora perfeita para nós, pessoas comuns, para
nosso predicamento no capitalismo global de hoje? Nossa perspectiva é
constrangida ao que podemos ver com nossa cabeça presa à bunda de um
cara logo à frente de nós, e nossa ideia de quem é nosso Mestre é o cara
de pé na frente cujo pênis e/ou bolas o primeiro cara da fileira parece
estar lambendo – mas o verdadeiro Mestre, invisível para nós, é aquele
livremente pulando nas nossas costas, o movimento autônomo do capital.
Como, então, devemos proceder em tal enrascada? Existe um maravilhoso verbo comum usado na Escócia, tartle,
que designa o momento desconfortável em que um falante temporariamente
esquece o nome de alguém (geralmente o nome de seu interlocutor em uma
conversa). O verbo é então usado para contornar aquele constrangimento
ocasional, como em: “Desculpe, eu tartlei ali por um momento!” Não estávamos todos tartlando
nas últimas décadas, esquecendo o nome “comunismo” para designar o
horizonte fundamental de nossas lutas emancipatórias? É tempo de
plenamente relembrar essa palavra – sua plena reabilitação pública terá
sido por si só um autêntico evento político.
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