Notícia tirada do portal Esquerda.net (aqui). Artigo de Krisztina Keresztély,membro da Associação Internacional de Técnicos, Peritos e Investigadores (Aitec), publicado em Basta!, traduzido para espanhol por Enrique García para sinpermiso.info. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net
Apanhado no torvelinho da crise financeira, confrontado com uma enorme dívida e com o empobrecimento de centenas de milhares de famílias que não podem pagar os seus empréstimos, o governo ultraconservador húngaro decidiu criminalizar as pessoas sem abrigo e seleciona os candidatos a uma habitação social com critérios morais. Bem-vindos ao outro laboratório europeu da crise. Artigo de Krisztina Keresztély
“O governo ultraconservador húngaro decidiu criminalizar as pessoas sem abrigo e seleciona os candidatos a uma habitação social com critérios morais” - Foto de bastamag.net
Quatro alterações da Constituição ... em pouco mais de um ano! A coligação das direitas no poder na Hungria não deixa de usar o malabarismo institucional para reforçar o carácter ultraconservador do Estado, blindado com a sua "lei fundamental", a nova constituição em vigor desde janeiro de 2012. Desta vez, com esta quarta versão, em vigor desde 1 de abril de 2013, trata-se, entre outras coisas, de qualificar como delito a falta de habitação. A nova lei estabelece a competência das comunidades locais para "qualificar a residência permanente de pessoas em espaços públicos como não conforme à lei, por razões de ordem pública, segurança pública, saúde pública e preservação dos valores culturais". Ficar sem casa e não ter outra opção que permanecer no espaço público é um delito, que pode ser castigado.
O Tribunal Constitucional da Hungria, no entanto, opôs-se a uma lei deste tipo no outono passado. Aquele rascunho de lei previa uma multa de até 500 euros, mais do que o salário mínimo (300 euros) para os sem abrigo. "Com esta lei, pela qual é um delito que uma pessoa resida permanentemente na rua, são na realidade os sem abrigo que o legislador qualifica de criminosos. No entanto, para as pessoas sem abrigo, que vivem nas ruas ou nos espaços públicos, trata-se de uma situação de crise muito grave, consequência de circunstâncias de natureza diferente e só em casos muito raros produto de opções voluntárias e bem pensadas. (...) O facto de se viver no espaço público não afeta os direitos dos demais, e não põe em perigo nem a utilização do espaço público nem a ordem pública. (...) A falta de habitação é um problema social que deve ser abordado pelo Estado através de dispositivos e ações de política social e urbana e não através de proibições", explica na sua decisão o Tribunal Constitucional. Que importa isso! O delito de ser "sem abrigo" está consagrado na Constituição.
10% da população está muito endividada
A quarta emenda constitucional causou indignação na Hungria, tal como em muitas cidades europeias, e o protesto da Federação Europeia de Organizações Nacionais que trabalham com Pessoas sem Abrigo, que inclui organizações como Emaús, ou a ajuda social católica SAMU. Se ver-se obrigado a dormir nos espaços públicos é um delito, as autoridades locais não estão sujeitas a nenhuma obrigação na sua política social de alojar aqueles que perderam as suas casas. O artigo 8 da Constituição estabelece somente que "os governos estatais e locais, facilitarão condições humanas para o acolhimento de pessoas sem lar."
Os sem abrigo, no entanto, correm o risco de multiplicar-se. O acesso à habitação é cada vez mais difícil num país afundado no torvelinho da crise financeira. O endividamento e o empobrecimento das famílias são o mais preocupante. Um milhão de húngaros, cerca de 10% da população, veem-se diretamente afetados por hipotecas em moedas estrangeiras, em particular o franco suíço, que eram oferecidas a taxas de juro mais baixas. No entanto, a moeda húngara (forint) desvalorizou-se em 20081. Resultado: o aumento da dívida e dos juros. Dois anos mais tarde, numa hipoteca em cada quatro o valor da dívida supera o valor da propriedade de acordo com a taxação realizada para o empréstimo, de acordo com o Banco Nacional da Hungria. 90.000 famílias encontram-se na situação de “empréstimos problemáticos", incapazes de satisfazer o pagamento da hipoteca durante mais de três meses.
A privatização em massa das habitações sociais
Ao mesmo tempo, é cada vez mais difícil para os húngaros fazer frente às diversas despesas relacionadas com a habitação: despesas de comunidade, alugueres, despesas de condomínio, faturas ... Entre 2003 e 2009, o número de atrasos no pagamento das faturas de eletricidade aumentou cerca de 150%, e as faturas de gás, em 700%! Segundo o governo, 100.000 famílias sofreram cortes no fornecimento de gás no passado verão, devido ao agregado de faturas não pagas: quase 3% da população2. Estas despesas relacionadas com a habitação representavam em média cerca de 25,5% dos rendimentos das famílias húngaras em 2011 (em França é de 17,8%). Uma em cada quatro famílias contraíram dívidas relacionadas com estas despesas diárias (faturas ou dívidas de aluguer, empréstimos pendentes): duas vezes mais que a média europeia e 2,5 vezes superior à média francesa3.
Depois da privatização do parque habitacional, iniciada com a transição política em 1989, as famílias com poucos recursos já não podem aceder a uma casa adequada. Em 2011, o parque de habitações públicas de aluguer era de 3% do stock total de habitações húngaras, principalmente em Budapeste (em França, cerca de 40% dos inquilinos estão alojados em habitações sociais). A qualidade da habitação pública degrada-se também permanentemente: uma quinta parte delas carece de qualquer comodidade, e quase metade tem apenas uma única sala. No entanto, não há falta de casas na Hungria. De acordo com os mais recentes resultados do censo de 2011, o número de casas vazias situou-se em 450.000, incluindo 13.000 do parque público. Isto significa que uma décima parte do parque público permanece vaga, apesar do crescente número de pessoas sem casa!
Todos proprietários, ou todos para a rua?
Como explicar esta política aberrante? "As autoridades locais estão a tratar de desfazer-se das habitações públicas em mau estado em lugar de renová-las e voltar a alugá-las: estas casas estão abandonadas até que alguém as compre, inclusive a preço baixo", analisa o coletivo “A cidade é de todos” (A város mindenkié-AVM). Esta estratégia permite expulsar os pobres dos centros das cidades e esvaziar as suas casas com o objetivo de vendê-las. No distrito 8 de Budapeste, o mais afetado pela pobreza e pela crise de habitação nestes últimos quatro anos, receberam-se mais de 1.400 solicitações para... 9 habitações sociais de aluguer. Mas segundo a AVM, o distrito conta com 300 habitações públicas vazias.
Desde 1990, as autoridades locais recuperaram a gestão da habitação pública. A Lei de Habitação de 1993 ofereceu a oportunidade aos ocupantes das habitações públicas de comprar os seus apartamentos a um preço mais baixo do que o de mercado. Mas as pessoas de rendimentos mais baixos não puderam "aproveitar" esta privatização em massa para comprar as suas habitações. A segregação espacial aumentou. São os municípios e distritos urbanos4 mais pobres, com as casas em piores condições e habitadas pelas pessoas mais desfavorecidas, os que mais sofreram com as desvantagens da privatização acelerada. Paralelamente, o governo central abandonou qualquer política de habitação. Não existe uma estratégia de habitação. A política de habitação nunca teve um aparelho administrativo a nível ministerial, e tem estado submetida a grupos de pressão não transparentes dos diversos atores envolvidos.
Albergues para os pobrezinhos
O estado iniciou vários programas. Dada a magnitude da dívida privada, criou-se um Fundo nacional de gestão da propriedade imobiliária. Objetivo: resgatar algumas habitações antes de serem confiscadas pelos bancos e alugá-las aos seus antigos donos. Mas, que vai suceder, por exemplo, se as famílias apoiadas pelo programa se endividam, desta vez devido às faturas em atraso, e devem deixar o alojamento no prazo de três meses previsto pelo programa em caso de atraso dos pagamentos de aluguer ou dos serviços comunitários? Que fará o estado com este património degradado, que corre o risco de ser abandonado pelos seus inquilinos - os antigos proprietários - e que, além do mais, se concentra sobretudo em territórios com maiores problemas sociais?
Por outro lado, o Governo húngaro iniciou a construção de albergues de aluguer para alojar as famílias desalojadas. O lugar do primeiro albergue foi escolhido fora da periferia de Budapeste (perto da cidade de Ócsa), e desenhado para acolher 60 famílias. Um futuro bairro que carece de qualquer infraestrutura comunitária, sem transporte público, equipamento escolar ou de segurança social... O que não tem travado a especulação imobiliária: o preço dos terrenos e o custo da construção atingiu níveis imprevisíveis: 1.659 euros/m2, mais ou menos o equivalente ao custo médio da nova construção em França.
O perfil dos pobres meritórios
Não é o Estado que seleciona os candidatos, mas uma organização de caridade, o serviço hospitalário da Ordem de Malta (uma ONG particularmente ativa na ajuda às pessoas sem abrigo). Os critérios de seleção são restritos: os candidatos não só têm que demonstrar a sua capacidade para pagar o aluguer, mas também demonstrar a sua capacidade para se integrar na futura comunidade. Estudam-se as relações familiares e as amizades de todos os candidatos, bem como o seu estado de ânimo, para avaliar se estão dispostos a "começar uma nova vida" no novo bairro... Uma seleção social e moral. No final de março, após a primeira convocação, só 20 famílias foram selecionadas de 588 candidatos. Os pobres que "merecem" ser alojados não são tantos... E os que forem recusados como incapazes de "começar uma nova vida" serão criminalizados.
As características desta zona de albergues é provável que provoque um isolamento quase total dos seus habitantes. Dado o relativamente pequeno número de candidatos e o ainda mais pequeno de famílias selecionadas, o futuro destes albergues coloca-se. Se o projeto original for abandonado, o lugar corre o risco de converter-se num futuro gueto que acolha os mais pobres, expulsos da capital pelas operações de renovação urbana.
O aparecimento dos movimentos de esquerda
Neste contexto, que papel pode desempenhar a sociedade civil húngara? São muito poucas as associações com capacidade financeira para pôr em marcha programas de alojamento. A maioria destes programas está vinculado a organizações religiosas: o serviço da Ordem de Malta, as igrejas batistas e evangélicas. O coletivo “A cidade é de todos (AVM)”5, fundado em 2009 oferece, no entanto, uma perspetiva diferente de solidariedade com as pessoas sem abrigo e da luta pelo direito à habitação sem critérios morais ao contrário das organizações religiosas húngaras. Os ativistas do movimento são em grande parte pessoas sem abrigo, acompanhados por ativistas experientes. Muito ativo na mobilização contra os despejos e a discriminação, o AVM também proporciona assistência jurídica e leva a cabo estudos de investigação.
Várias organizações estão a trabalhar também na redação de um projeto de lei para criar uma rede de agências imobiliárias com fins sociais na Hungria6. Face a um governo ultraconservador, que criminaliza os pobres, e perante a crise cada vez mais grave na Hungria, o surgimento destes movimentos demonstra o compromisso cada vez mais forte e visível dos meios profissionais e associativos, na maioria de esquerda, com o direito à habitação.
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