Há caminho político, avalizado pelo STF, para reverter reajuste transferindo custos a 1% mais favorecidos. Fernando Haddad estará à altura de tal ousadia?
A partir de sexta-feira (14/6) à tarde, o prefeito Fernando Haddad reviu sua postura anterior e emitiu sinais de que está aberto ao diálogo com os movimentos que lutam por uma cidade para todos. A nova atitude, que revela saudável capacidade de autocrítica, abre espaço para buscar uma alternativa capaz de alcançar, ao mesmo tempo, três objetivos: a) suspender o aumento da tarifa de ônibus, num gesto simbólico de boa vontade; b) recolocar na pauta nacional a reforma tributária, um instrumento indispensável para construir metrópoles humanas e um país menos desigual; c) desencadear, em São Paulo, um amplo movimento pela garantia da mobilidade urbana, que irá muito além do debate da tarifa e articulará prefeitura e sociedade civil numa busca de soluções que pode repercutir em todo o país.
A injustiça do sistema tributário brasileiro e do orçamento estatal é ainda mais crua nas grandes cidades. Há poucos meses, um estudo do IPEA – o principal órgão de pesquisas do governo federal – demonstrou que o Estado brasileiro (União, Estados e Municípios) investe doze vezes mais no transporte individual que nos sistemas públicos de mobilidade. Os benefícios concedidos à minoria que usa frequentemente o automóvel são tão recorrentes que se tornaram invisíveis. Por desconhecimento ou hipocrisia, parte da população associa a luta pela tarifa zero, nos ônibus e metrôs, a um devaneio romântico. Mas se esta lógica for válida, não seria também lunático acreditar que os carros podem circular, sem ônus algum, por ruas e avenidas construídas, mantidas e sinalizadas com recursos de toda a população? Não é bizarro oferecer infra-estrutura de transporte gratuita para a locomoção das elites, e obrigar quem ganha salário mínimo a dispender com (péssimo) transporte cerca de 25% de seus vencimentos?
Rever um sistema tributário injusto é uma luta árdua. Como o Estado é quase sempre ineficaz, os privilegiados argumentam que qualquer mudança equivale a extorquir a população. A mídia transforma este discuso primário num dogma. Por isso, não se pode desperdiçar as brechas raras, que às vezes surgem, para começar a construir um sistema de impostos menos injusto. Uma delas – a que abre a porta para uma solução em São Paulo – despontou em 6 de fevereiro deste ano, numa decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ao julgar uma ação (o Recurso Extraordinário – RE562045) do Estado do Rio Grande do Sul, que tramitou durante cinco anos, o STF decidiu que os impostos sobre transmissão de imóveis podem ter alíquotas progressivas. Em outras palavras, devem ser cobrados tendo em vista o poder econômico dos cidadãos. O novo entendimento refere-se especificamente a um tributo cobrado pelos Estados – o Imposto sobre Transmissão por Causa Mortis e Doação (ITCMD), que incide sobre heranças. Porém, a decisão do STF expõe uma doutrina que pode ser tranquilamente aplicada a um tributo municipal análogo, o ITBI. Segundo a edição 694 do boletim do STF, “firmou-se que todos os impostos estariam sujeitos ao princípio da capacidade contributiva”.
O ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis) responde por 8,05% das receitas do município de S.Paulo. Representou, em 2012, receita de R$ 1,25 bilhão – pelo menos quatro vezes superior ao que se arrecadará com o aumento de R$ 0,20 na passagem dos ônibus.
Porém, sua forma atual de cobrança é extremamente injusta. Ele onera do mesmo modo (alíquota de 2%) a venda de uma casa no Jardim Rosana (onde o DJ Lah e outras seis pessoas foram chacinados por PMs em janeiro) e uma mansão encravada ao lado do Palácio dos Bandeirantes, no aristocrático Morumbi. Não leva em conta nem a capacidade contributiva – que agora o STF endossa – nem o fato de a prefeitura oferecer, às regiões mais ricas, serviços públicos incomparavelmente superiores (vale consultar a última edição do Quadro da Desigualdade, da Rede Nossa São Paulo).
Fernando Haddad tem em mãos uma oportunidade histórica. Ele pode suspender o aumento de R$ 0,20 nas passagens enviando simultaneamente, à Câmara Municipal, projeto para rever as alíquotas do ITBI1. Para que tenha caráter também simbólico, a revisão deve incidir principalmente sobre o 1% mais rico do município. Esta parcela da população – cujos imóveis são constantemente valorizados por obras e serviços de alta qualidade, prestados pelo município – tem plenas condições financeiras de contribuir para a manutenção do transporte público.
A iniciativa pode ser complementada com outra medida saneadora. O prefeito precisa constituir um Grupo de Trabalho para examinar os atuais contratos de concessão dos transportes públicos no município. Reportagem publicada ontem por O Estado de S.Paulo expõe, a partir de dados da Secretaria Municipal de Transportes, uma realidade aterradora. Entre 2004 e 2012 – precisamente o período dos governos Serra e Kassab –, o cartel de grandes empresas que controla o setor passou a transportar 80% passageiros a mais (de 4,4 milhões para 7,9 milhões, em média, ao dia). Porém, a população que usa transporte coletivo foi comprimida numa frota que encolheu, neste período,de 14 mil para 13 mil ônibus. O Grupo de Trabalho deve incluir sociedade civil e especialistas (há inúmeros, de grande competência, no Conselho da Cidade, recém-formado pelo prefeito). Precisa apresentar diagnósticos e soluções antes que a prefeitura conclua a licitação que renovará a concessão de linhas. É um mega-contrato, que envolve R$ 46,3 bilhões e definirá o padrão do transporte coletivo em São Paulo nos próximos quinze anos.
O drama do transporte público é um dos nós do capitalismo contemporâneo. Filósofos como Toni Negri tê frisado que, na era da economia do conhecimento, as metrópoles substituíram a indústria e se converteram no espaço central da geração e concentração de riquezas. São o ambiente em que se produzem imensas fortunas, por meio de mecanismos como o rentismo financeiro e a especulação imobiliária. São, também, usinas monstruosas de segregação. As multidões que se envolvem diariamente na geração de valor e mais-valia estão condenadas a uma vida insalubre em periferias inóspitas. Os ônibus indignos em que perdem todos os dias horas de suas vidas são dos grandes símbolos das desigualdades contemporâneas.
Reformas tributárias redistributivas equivalem, nas metrópoles, a revoluções humanizadoras. Por meio delas, pode-se garantir direitos que os mercados negam. Os vinte centavos são apenas um ínfimo exemplo. A riqueza gerada numa cidade como São Paulo seria mais que suficiente para alcançar objetivos como a garantia, nas periferias, de condições urbanísticas semelhantes às do centro; a despoluição dos rios; a oferta gratuita de internet sem fio em todo o município; a oferta de transporte público de qualidade para todos. Nada disso poderá ser alcançado enquanto a máquina de exclusão continuar girando.
Estudioso arguto do capitalismo e suas mutações, o prefeito Fernando Haddad defendeu a reforma tributária de forma explícita, logo depois de eleito. Em condições normais, porém, teria de conformar-se às barganhas, conchavos e protelações da Câmara Municipal; às pressões do poder econômico e da mídia.
Os protestos contra o aumento das passagens revelam que a multidão começou a despertar. Desde sexta-feira passada, até mesmo os jornais conservadores (e – pasme! – o Arnaldo Jabor…) foram obrigados a demonstrar certa simpatia com os manifestantes e a se distanciar da postura truculenta do governador Geraldo Alckmin. A decisão recente do STF ampliará a legitimidade de um gesto ousado. A revogação do aumento, acompanhada da abertura de um diálogo estratégico com os que querem a cidade para todos, teria enorme popularidade. Muito mais importante: provocaria uma chacoalhada democrática, num país inquieto e ansioso por novidades.
Eleito com slogan que o associava a “um novo tempo”, Haddad foi chamado pelas circunstâncias a demonstrar que está à altura deste mote. Terá coragem de fazê-lo?
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Colaborou Ana Letícia de Medeiros
1 Do ponto de vista formal, perdura no STF o entendimento de que o ITBI não deve ter alíquotas progressivas. Porém, a Súmula 656 (de 2003), que estabelece este ponto de vista, baseava-se num princípio que se tornou anacrônico, com a decisão de fevereiro último. Ela estabelecia uma distinção entre impostos “reais” (entre eles, o ITBI e o ITCMD) e “pessoais” (como o Imposto de Renda). Considerava que só os do segundo tipo poderiam ser progressivos. Este entendimento foi claramente revisto no julgamento do RE562045. A partir dele, segundo o boletim do STF, “todos os impostos, independentemente de seu caráter real ou pessoal, podem e devem guardar relação com a capacidade contributiva do sujeito passivo”.
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