23/09/2013

Chomsky: “Enquanto a Síria se suicida, Israel e EUA desfrutam do espetáculo”

 Em entrevista exclusiva para o portal britânico Cessar Fogo (Ceasefire), o renomado intelectual Noam Chomsky falou com Frank Barat sobre a situação atual no Médio Oriente, em particular a crise da Síria, as negociações de paz entre Israel e os palestinianos e o papel do poder dos EUA na região. “Se os EUA e Israel quisessem ajudar os rebeldes – não o fazem – poderiam fazê-lo sem intervenção militar”.

 

 Qual é a definição das negociações entre Israel e Estados Unidos e porque a Autoridade Palestina (AP) continua a prestar-se a isso?

 Do ponto de vista dos EUA, as negociações são, com efeito, um caminho para Israel continuar a sua política de tomar sistematicamente tudo o que quiser na Cisjordânia, mantendo o assédio brutal de Gaza, separando Gaza da Cisjordânia e, claro, ocupando os Montes Golã sírios, tudo com pleno apoio dos EUA. E o marco das negociações, igualmente aos últimos 20 anos de experiência de Oslo, simplesmente proporcionou o encobrimento desta situação.


 Em sua opinião, por que a Autoridade Palestina (AP) continua a jogar esse jogo?

 Provavelmente, em parte, por desespero. Podemos nos perguntar se é a decisão correta, mas ela não tem muitas alternativas.


 Definitivamente, a AP aceita esse marco apenas para sobreviver?

 Se ela se nega a negociar, tal como propõem os Estados Unidos, a sua base de apoio seria derrubada. A AP sobrevive essencialmente à base de doações. Israel assegurou que ela não tenha uma economia produtiva. É uma espécie do que em ídiche se chamaria “Sociedade Schnorrer”: pede emprestado e vive do que puder conseguir.

 Se a AP tem outra alternativa, não está claro, mas se rejeitar a exigência dos EUA de acudir às negociações em condições totalmente inaceitáveis, a sua base de apoio iria erodir-se. E não tem apoio – externo – suficiente para que a elite palestiniana possa viver de maneira bastante decente – por tabela pródiga – no seu estilo de vida, enquanto a sociedade que a rodeia cai aos pedaços.


 Desse modo, seria negativa a queda e desaparição da AP, depois disso tudo?

 Depende do que vier a substituí-la. Se fosse permitido a Marwan Barghouti, por exemplo, unir-se à sociedade da forma como fez, por exemplo, Nelson Mandela, poderia ter um efeito dinamizador na organização de uma sociedade palestiniana, que poderia pressionar por exigências mais importantes. Mas lembre-se que eles não têm muitas opções.

 De facto, se nos remetemos ao princípio dos Acordos de Oslo, há 20 anos, havia negociações em curso, as negociações de Madrid, nas quais a delegação palestiniana era encabeçada por Haider Abdel-Shafi, uma figura muito respeitada da esquerda nacionalista palestiniana. Abdel-Shafi negava-se a aceitar os termos dos EUA e Israel, que lhes permitiam fundamentalmente a continuidade da expansão dos colonatos. Negou-se, e as negociações estancaram sem chegar a lugar algum.

 Enquanto isso, Arafat e os palestinianos do exterior foram paralelamente a Oslo, ganharam o controlo e Haider Abdel-Shafi opôs-se de forma tão contundente que nem sequer se apresentou à dramática cerimónia sem sentido, onde Clinton sorria enquanto Arafat e Rabin apertavam as mãos. Abdel-Shafi não se apresentou porque se deu conta de que era uma traição absoluta. Mas baseava-se em princípios e, portanto, não poderia chegar a nenhuma parte, a menos que conseguisse um importante apoio da União Europeia, dos Estados do Golfo e em última instância dos EUA.


 O que acha que realmente está em jogo na Síria neste momento e o que significa para a região em geral?

 A Síria está a suicidar-se. É uma história de terror e cada vez está pior. Não há uma saída no horizonte. O que provavelmente acontecerá, se continuar assim, é que a Síria será dividida em três regiões: uma região curda – que já está a formar-se – que poderia separar-se e unir-se de alguma maneira ao semi-autónomo Curdistão iraquiano, talvez com algum tipo de acordo com a Turquia.

 O resto do país se dividiria entre uma região dominada pelo regime de Assad – um regime brutal, horrível – e outra secção dominada pelas diversas milícias, que vão desde o extremamente nocivo e violento até ao secular e democrático. Se olharmos o que saiu no New York Times, há uma citação de um funcionário israelita que expressa essencialmente a sua alegria de ver os árabes massacrando-se uns aos outros.


 Sim, eu li.

 Para os Estados Unidos, assim está bom, não querem outro tipo de saída. Se os EUA e Israel quisessem ajudar os rebeldes – não o fazem – poderiam fazê-lo, inclusive, sem intervenção militar. Por exemplo, com Israel mobilizando forças nos Montes Golã (claro, são as montanhas do Golã da Síria, mas por agora o mundo, mais ou menos, tolera ou aceita a ocupação ilegal de Israel). Se fizessem isso, obrigariam Assad a mover forças até ao sul, o que aliviaria a pressão sobre os rebeldes. Mas não há nenhum indício sequer disso. Mesmo assim, não estão a dar ajuda humanitária à grande quantidade de refugiados que sofrem, não estão a fazer nenhuma das coisas simples que poderiam fazer.

 Tudo isso sugere que tanto Israel como os EUA preferem exatamente o que está a acontecer, tal como informava o NYT que mencionámos. Enquanto isso, Israel pode celebrar, a sua condição do que chamam de “cidade na selva”. Houve um interessante artigo do editor do Haaretz, Aluf Benn, que escreveu sobre como os israelitas vão à praia, desfrutam e congratulam-se de serem uma “cidade na selva”, enquanto as bestas selvagens de fora se desgarram entre si. E, claro, Israel, sob essa imagem, não está a fazer nada, exceto defender-se. Eles gostam dessa imagem e os EUA tampouco parecem muito descontentes com ela. O resto é conversa.


 Assim, podemos falar de um ataque dos EUA, você acredita que ocorra?

 Um bombardeamento?


 Sim.

 É uma espécie de debate interessante nos Estados Unidos. A ultra-direita, os extremistas da direita, que são uma espécie de espectro internacional, opõem-se, ainda que não seja pelas razões que me agradariam. Opõem-se porque pensam: “por que se dedicar a resolver os problemas dos outros e perder os nossos próprios recursos?” Estão literalmente a perguntar: “quem nos vai defender quando nos atacarem, se nós mesmos estamos dedicados a ajudar outros países, no estrangeiro?” Essa é a ultra-direita. Se nos fixamos na direita “moderada”, gente como, por exemplo, David Brooks, do New York Times, considerado um comentarista intelectual de direita, o seu ponto de vista é de que o esforço dos EUA em retirar as suas forças da região não está a ter um “efeito moderador”. Segundo Brooks, quando as forças norte-americanas estão na região, isso tem um efeito moderador, melhora a situação, como se pode ver no Iraque, por exemplo. Mas se vamos retirar as nossas forças, então já não somos capazes de moderar e melhorar a situação.

 Essa é a visão normal da direita intelectual na corrente principal, os democratas liberais e outros. De modo que há um monte de indagações sobre como “devemos exercer a nossa ‘responsabilidade de proteger’”. Bom, basta dar uma olhada nos registos históricos dos EUA sobre a ‘responsabilidade de proteger’. O facto, inclusive, de dizer tais palavras revela algo de, certamente, insólito nos EUA e, de facto, na cultura moral e intelectual do Ocidente.

 Isso é, à parte do facto em si, uma grave violação do direito internacional. A última linha de Obama é que ele não estabeleceu uma “linha vermelha”, mas que o mundo a estabeleceu, por meio das suas convenções sobre a guerra química. Bom, na verdade o mundo tem um tratado, que Israel não assinou e que os EUA descuidam totalmente – por exemplo, quando apoiaram o uso, realmente horrível, de armas químicas por Saddam Hussein. Hoje, isso é utilizado para denunciar Saddam Hussein, ignorando o facto de que não só se tolerava, mas, basicamente, havia o apoio do governo de Reagan. E, claro, a convenção não tem mecanismos de aplicação de sanções.

 Tampouco existe o que se denomina ‘responsabilidade de proteger’, isso é uma fraude promovida na cultura intelectual do Ocidente. Há um conceito, na verdade dois: um aprovado pela Assembleia Geral da ONU, que se refere à ‘responsabilidade de proteger’, mas que não oferece nenhuma autorização a qualquer tipo de intervenção, exceto nas condições da Carta das Nações Unidas. Outra versão, que se aprovou só por parte do Ocidente, os EUA e os seus aliados, que é unilateral e diz que tal responsabilidade permite a “intervenção militar das organizações regionais na região da sua autoridade, sem a autorização do Conselho de Segurança”.

 Pois bem, traduzindo, isso significa que se proporciona a autorização aos EUA e à NATO de utilizarem a violência aonde quiserem, sem autorização do Conselho de Segurança. Isso é o que se chama ‘responsabilidade de proteger’ no discurso ocidental. Se não fosse tão trágico, seria ridículo.



 Frank Baraté coordenador do Tribunal Russell sobre a Palestina. O seu livro “Gaza in Crisis: Reflections on Israel's War Against the Palestinians”, com Noam Chomsky e Ilan Pappe, já está disponível. A edição francesa do livro, publicada em 2013, conta com uma extensa entrevista com Stephane Hessel.

 Entrevista originalmente publicada no portal Ceasefire. Tradução para espanhol de Rebelión e para português de Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.

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