[Artigo tirado de http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/marshal-berman-1940-2013-o-marxismo-contra-a-tristeza/]
Falecido em 11/9, ele foi um dos grandes pensadores marxistas da segunda metade do século XX, e talvez o mais afetuoso
Por Adriano Campos, na Esquerda.net
“Nós não podemos gerar ideias que venham a juntar as vidas das
pessoas se perdermos contato com essas vidas tais como são. Se não
soubermos reconhecer as pessoas, como se apresentam, sentem e
experienciam o mundo, nós nunca seremos capazes que as ajudar a
conhecerem-se a elas mesmas ou a mudar o mundo. Ler o Capital
não nos ajudará se não formos capazes, também, de ler os sinais que nos
mostram as ruas.”[1] Marshal Berman foi escritor, pensador e filósofo,
passou a sua vida a estudar as cidades que amava, sem nunca deixar de
procurar no processo da modernidade que as ergueu o humanismo que tanto
caracteriza a sua escrita. Estudou e lecionou em Oxford e Harvard, das
quais dizia serem universidades “intelectualmente excitantes, mas
socialmente solitárias”, na década de sessenta mudou-se para a City
University de Nova York, cidade onde nasceu e mais tarde se tornou um
dos principais impulsionadores da revista Dissent. Berman
faleceu no último dia onze de setembro, aos 72 anos, foi um dos
pensadores marxistas mais importantes da segunda metade do século XX e,
com toda a certeza, o mais doce e o mais afetuoso. A sua obra é um
perigo, do qual dificilmente nos libertamos se por um acaso tropeçarmos
na armadilha de uma primeira frase.
“Tudo o que é sólido se dissolve no ar”
Lançado em 1982, o livro, cujo título Berman colheu no Manifesto
Comunista[2], apresenta-se como uma das mais generosas leituras da
modernidade que temos ao nosso dispor. Ao longo das suas muitas páginas,
Berman mostra-nos que a referência de Marx à diluição permanente
operada pela reconfiguração produtiva é, também, uma análise profunda da
vida tal como experienciada pelo “ser moderno”, os homens e as mulheres
nas ruas das novas cidades – “Na primeira metade do Manifesto, Marx
equaciona as polaridades que irão moldar e animar a cultura do
modernismo no século seguinte: o tema dos desejos e impulsos, da
revolução permanente, do desenvolvimento infinito, da perpétua criação e
renovação em todas as esferas da vida; e a sua antítese radical, o tema
do niilismo, da destruição insaciável, do estilhaçamento e trituração
da vida, do coração das trevas, do horror.”[3] Por isso mesmo, Berman
reclama ao Manifesto um lugar entre as gigantes criações da modernidade e
a Marx o legítimo reconhecimento de um autor fundacional da moderna
cultura política e social, juntando-o assim à sua geração, a de 1840, da
qual se destacaram Baudelaire, Flaubert, Wagner, Kierkegaard
e Dostoiévski.
Os poetas e a tradução da modernidade
A relação entre o marxismo e a modernidade foi sempre uma das
principais inquietações de Marshal Berman, o que o fez procurá-la nos
campos mais improváveis, como o da poesia e da literatura. Uma das
passagens mais entusiasmantes de Tudo o que é sólido se dissolve no ar é aquela na qual Berman nos apresenta um poema em prosa de Baudelaire. O poema intitula-se A Perda do Halo,
escrito em 1865 mas rejeitado pela imprensa, só foi publicado após a
morte de Baudelaire. A ação desenvolve-se na forma de diálogo entre um
poeta e um “homem comum”, diálogo que se trava em un mauvais lieu,
um lugar sinistro ou de má reputação, talvez um bordel, para embaraço
de ambos. O homem comum, que sempre alimentara uma ideia elevada do
artista, sente-se frustrado ao encontrar um deles em tal lugar: “O quê!
Você aqui amigo? Você num lugar como este, você que come ambrósia e bebe
quintessências! Estou espantado». O Poeta replica, explicando-se – «Meu
amigo, sabe como me aterrorizam os cavalos e os veículos? Bem, agora
mesmo atravessava a avenida com muita pressa, chapinhando na lama, no
meio do caos, com uma morte galopando na minha direção, vinda de todos
os lados, quando fiz um movimento brusco e o halo me caiu da cabeça,
indo parar ao lodaçal de macadame. Estava demasiado assustado para o
apanhar.”
Numa primeira leitura o poema não pode deixar de causar alguma
estranheza. A alusão alegórica do poeta é intrigante; o halo,
aparentemente, representa uma elevação, uma superioridade moral que, de
súbito, se estatela no lodaçal. Para o poeta parece não haver maneira de
o recuperar. Não é, contudo, na queda que reside o foco de Berman, mas
naquilo que o faz cair – “O homem moderno arquétipo, como o vemos aqui, é
o peão lançado no turbilhão do tráfego da cidade moderna, um homem
sozinho, lutando contra um aglomerado de massa e energias pesadas,
velozes e mortíferas. O borbulhante tráfego da rua e da avenida não
conhece fronteiras espaciais nem temporais, espalha-se por todos os
espaços urbanos, impõe o seu ritmo ao mesmo tempo de todas as pessoas,
transforma o ambiente moderno em «caos». O caos aqui não reside apenas
nos que passam – cavaleiros ou cocheiros, cada qual procurando o melhor
caminho que pode haver – mas na sua interação, na totalidade dos seus
movimentos num espaço comum. Isso faz da avenida um símbolo perfeito das
contradições internas do capitalismo: racionalidade em cada unidade
capitalista individualizada, que conduz à irracionalidade anárquica do
sistema social que reúne todas essas unidades.” É no seio deste
processo, então, que devemos interpretar a perda da distinção herdada
pelo poeta, no qual é lançada a luz da mercadorização sobre a atividade
humana; referência que podemos, uma vez mais, encontrar no Manifesto –
“A burguesia arrancou o halo a toda a atividade humana até aqui honrada e
encarada com reverente respeito. Transformou o médico, o advogado, o
padre, o poeta, o homem da ciência em trabalhadores assalariados.”
“O ser inquieto”: a busca pela autenticidade.
O que é pessoal, o que tomamos por íntimo e intransmissível pode bem
ser um problema político. “Ser autêntico, autenticamente si mesmo, é ver
criticamente através das forças que limitam e restringem o nosso ser, e
lutar para superá-las. Os homens e mulheres do iluminismo acreditavam
que quando as pessoas percebessem as forças restritivas, estas poderiam
ser superadas. Mas quão radicais têm de ser essas transformações, nas
nossas vidas sexuais e sociais, de modo a nos reconhecermos a nós
mesmos?”[4] Berman estudou o individualismo radical nas suas versões
mais heterógeneas: a proposta utilitarista (tão criticada por Marx), o
romantismo e as obras percursoras de Rosseau e Montesquieu. O que,
segundo ele, faz da autenticidade – estado no qual a individualidade é
plenamente desenvolvida e expressada e não submetida ou sacrificada – um
já velho leitmotiv da cultura ocidental. Essa concepção da
individualidade, embora moldada e reivindicada por campos políticos
distintos face às convulsões históricas do período 1848-1945,
conduzir-nos-ia à advertência de Hannah Arendt, segundo a qual a
aniquilação do particular está no germe do totalitarismo, numa clara
referência às duas tragédias políticas do século XX (o nazi-fascismo e o
stalinismo) que a seu modo aprisionaram parte da produção marxista.
A geração da “new left”, da qual Berman fez parte, ajudou o marxismo a
reencontrar as multitudes da obra fundadora, recolocando ao nosso
dispor a busca pela superação da opressão em múltiplas esferas da nossa
vida, da alienação contida no processo de trabalho ao brutalizar
contínuo das identidades. Berman procurou em Marx a expressão de um
individualismo capaz de se afastar da mera celebração rasteira de uma
burguesia que é “vulgar e desprezível porque parece satisfeita consigo
própria, porque não apreende as possibilidade humanas que as suas
próprias atividades geraram”. Ao contrário do que nos diz a advertência
implícita de Arendt, Marx concebeu o livre desenvolvimento do indivíduo
como condição para o livre desenvolvimento de todos, e avançou na
descoberta das restrições coletivas enfrentadas por aqueles que vivem do
seu trabalho.
Berman acrescenta a esse conhecido adágio a largura histórica da
própria modernidade, que insuflou e agitou as possibilidades da vida ao
nosso dispor, mas que, ao contrário das épocas anteriores, nos submete a
um sentimento de catástrofe iminente – “tudo o que é sólido se dissolve
no ar”. O marxismo como “política de vida boa” pode ser, nesse
contexto, uma razão estratégica para a autenticidade, que dá forma a uma
organização contra a castração das possibilidades que contemos[5]. A
superação da exploração, da subalternidade das opressões, o pleno
desenvolvimento do nosso ser e a consequente luta contra a tristeza,
amargura e angústia de reconhecermos as limitações que nos são impostas
por uma relação de classe é uma possibilidade que nos foi legada pela
modernidade. Berman ajudou-nos a compreender como o marxismo, tantas
vezes dado como morto e enterrado, pode ser uma expressão inteligível,
generosa e necessária dessa possibilidade.
Marshal Berman dissolveu-se no ar, mas o que é sólido, como a sua obra, pode bem permanecer por muito tempo.
Notas:
[1] “The signes in thestreet: a response to Perry Anderson”, in New Left Review, 144, Abril 1984.
[2] “A revolução contínua da produção, o abalo constante de todo o
sistema social, a agitação permanente e a falta de segurança distinguem a
época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações
sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de
idéias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se
antiquadas antes de poderem ossificar-se. Tudo que era sólido se
dissolve no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são, por
fim, obrigados a encarar com serenidade as suas condições de existência
e as suas relações recíprocas.”
[3] BERMAN, Marshal (1982), Tudo o que é sólido se dissolve no ar, São Paulo: Editora Schwarcz.
[4] BERMAN, Marshal (1970), The Politics of Authenticity: Radical Individualism and the Emergence of Moderm Society, London: Verso.
[5]BERMAN, Marshal (1998) Adventures in Marxism, London: Verso.
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