Entrevista tirada do Esquerda.net (aqui).Tradução: Vinícius Gomes para o Outras Palavras.
Linguista e ativista político diz que o establishment republicano está a chegar a um ponto em que não consegue mais controlar a base que mobilizou. E compara a atual situação dos EUA com a dos últimos anos da República de Weimar, na Alemanha. Entrevista a Harrison Samphir, Znet
Noam Chomsky: As maiores atrocidades das últimas décadas têm ocorrido no Congo – na região oriental –, onde mais ou menos 5 milhões de pessoas foram mortas.
Nesta entrevista, Chomsky debate a paralisação do governo norte-americano, por disputas incessantes no sistema político e, em especial, pela chantagem das forças de direita mais primitivas. Também aborda os sinais de perda de influência de Washington na Síria e da emergência, na América do Sul, de um conjunto de governos que se afasta dos EUA, pela primeira vez em dois séculos.
Gostaria de começar com a paralisação recente do governo dos EUA. Por que é diferente desta vez, se já aconteceu no passado?
Noam Chomsky: Paul Krugman fez há dias, no New York Times, um ótimo comentário a respeito. Lembra que o partido republicano é minoritário entre a opinião pública e controla a Câmara [House of Representatives, que junto do Senado representa o Legislativo nos EUA]. Está a levar o governo à paralisação e talvez ao calote das suas dívidas. Conseguiu a maioria por conta de inúmeras artimanhas. Obteve uma minoria de votos, mas a maioria das cadeiras. Está a utilizar-se disso para impor uma agenda extremamente nociva para a sociedade. Foca particularmente a questão do sistema de saúde público.
Os EUA são o único, entre os países ricos e desenvolvidos, que não possui um sistema nacional de saúde pública. O sistema norte-americano é escandaloso. Gasta o dobro de recursos de países comparáveis, para obter um dos piores resultados. E a razão para isso é ser altamente privatizado e não-regulado, tornando-se extremamente ineficaz e caro. Aquilo que alguns chamam de “Obamacare” é uma tentativa de mudar esse sistema de forma suave – não tão radicalmente como seria desejável – para torná-lo um pouco melhor e mais acessível.
O Partido Republicano escolheu o sistema de saúde como alavanca para conquistar alguma força política. Quer destruir o Obamacare. Essa posição não é unânime entre os republicanos, é de uma ala do partido – chamada de “conservadora”, de fato, profundamente reacionária. Norman Orstein, um dos principais comentadores conservadores, descreve o movimento, corretamente, como uma “insurgência radical”.
Então, há uma insurgência radical, que implica grande parte da base republicana, disposta a tudo – destruir o país, ou qualquer coisa, com o intuito de acabar com a Lei de Assistência Acessível (o Obamacare). É a única coisa a que foram capazes de se agarrar. Se falharem nisso, terão de dizer à sua base que lhe mentiram, ao longo dos últimos cinco anos. Por isso, estão dispostos a ir até onde for necessário. É um fato incomum – penso que único – na história dos sistemas parlamentaristas modernos. É muito perigoso para o país e para o mundo.
Como a paralisação poderia terminar?
Bem, a paralisação por si só é ruim – mas não devastadora. O perigo real surgirá nas próximas semanas. Há, nos Estados Unidos, uma legislação rotineira – aprovada todos os anos – que permite ao governo tomar dinheiro emprestado. Do contrário, ele não funciona. Se o Congresso não autorizar a continuação da tomada de empréstimos, talvez o governo peça moratória. Isso nunca aconteceu e um calote do governo norte-americano não seria muito prejudicial apenas aos EUA. Ele provavelmente afundaria o país, de novo, numa profunda recessão – mas talvez também quebre o sistema financeiro internacional. É possível que encontrem maneiras para contornar a situação, mas o sistema financeiro mundial depende muito da credibilidade do Departamento do Tesouro dos EUA. A credibilidade dos títulos de dívida emitidos pelos EUA é vista como “tão boa quanto ouro”: esses papéis são a base das finanças internacionais. Se o governo não conseguir honrá-los, eles não possuirão mais valor, e o efeito no sistema financeiro internacional poderá ser muito severo. Mas para destruir uma lei de saúde limitada, a extrema direita republicana, os reacionários, estão dispostos a fazer isso.
No momento, os EUA estão divididos sobre como o tema será resolvido. O ponto principal a observar é a divisão no Partido Republicano. O establishment republicano, junto com Wall Street, os banqueiros, os executivos de corporações não querem isso – de maneira nenhuma. É parte da base que deseja, e tem sido muito difícil controlá-la. Há uma razão para terem um grande grupo de delirantes na sua base. Nos últimos 30 ou 40 anos, ambos os partidos que comandam a política institucional dos EUA inclinaram-se para a direita. Os democratas de hoje são, basicamente, aquilo que se costumava chamar, há tempos, de republicanos moderados. E os republicanos foram tanto para a direita porque simplesmente não conseguem votos, na forma tradicional.
Tornaram-se um partido dedicado aos muito ricos e ao setor empresarial – e simplesmente não se consegue votos dessa maneira. Por isso, têm sido compelidos a mobilizar eleitores que sempre estiveram presentes no sistema político, mas eram marginais. Por exemplo, os extremistas religiosos. Os EUA são um dos expoentes no que se refere ao extremismo religioso no mundo. Mais ou menos metade da população acredita que o mundo foi criado há alguns milhares de anos; dois terços da população está a aguardar a segunda vinda de Cristo. A direita também teve de recorrer aos nativistas. A cultura das armas, que está fora de controlo, é incentivada pelos republicanos. Tenta-se convencer as pessoas de que devem se armar, para nos proteger. Nos proteger de quem? Das Nações Unidas? Do governo? Dos alienígenas?
Uma enorme parcela da sociedade é extremamente irracional e agora foi mobilizada politicamente pelo establishment republicano. Os líderes presumem que podem controlar este setor, mas a tarefa está a mostrar-se difícil. Foi possível perceber isso nas primárias republicanas para a presidência, em 2012. O candidato do establishment era Romney, um advogado e investidor em Wall Street – mas a base não o queria. Toda a vez que a base surgia com um possível candidato, o establishment fazia de tudo para destruí-lo, recorrendo, por exemplo, a ataques maciços de propaganda. Foram muitos, um mais louco que o outro. O establishment republicano não os quer, tem medo deles, conseguiu nomear seu candidato. Mas agora está a perder controlo sobre a base.
Lamento dizer que isso tem algumas analogias históricas. É mais ou menos parecido com o que aconteceu na Alemanha, nos últimos anos da República de Weimar. Os industriais alemães queriam usar os nazis, que eram um grupo relativamente pequeno, como um animal de combate contra o movimento laboral e a esquerda. Acharam que podiam controlá-los, mas descobriram que estavam errados. Não estou a dizer que o fenómeno vai se repetir aqui, é um cenário bem diferente, mas algo similar está a ocorrer. O establishment republicano, o bastião corporativo e financeiro dos ricos, está a chegar a um ponto em que não consegue mais controlar a base que mobilizou.
Na política externa, as notícias sobre a Síria desapareceram dos média convencionais, desde a aprovação do acordo para confiscar as armas químicas do arsenal de Assad. Pode comentar esse silêncio?
Nos EUA, há pouco interesse sobre o que acontece fora das fronteiras. A sociedade é bem insular. A maioria das pessoas sabe bem pouco sobre o que acontece no mundo e não liga tanto para isso. Está preocupada com os seus próprios problemas, não têm o conhecimento ou o compreensão sobre o mundo ou sobre História. Quando algo, no exterior, não é constantemente martelado pelos média, esta maioria simplesmente não sabe nada a respeito.
A Síria vive uma situação muito má, atrocidades realmente terríveis, mas há lugares muito piores no mundo. As maiores atrocidades das últimas décadas têm ocorrido no Congo – na região oriental –, onde mais ou menos 5 milhões de pessoas foram mortas. Nós – os EUA – estamos envolvidos, indiretamente. O principal mineral em seu celular é o coltan, que vem daquela região. Corporações internacionais estão lá, a explorar os ricos recursos naturais Muitas delas financiam milícias, que lutam umas contra as outras pelo controlo dos recursos, ou de parte deles. O governo de Ruanda, que é um cliente dos EUA, está a intervir maciçamente, assim como o Uganda. É praticamente uma guerra mundial na África. Bem, quantas pessoas sabem disso? Mal chega aos média e as pessoas simplesmente não sabem nada a respeito.
Na Síria, o presidente Obama fez um discurso sobre o que chamou de sua “linha vermelha”: não se pode usar armas químicas; pode-se fazer de tudo, exceto utilizar armas químicas. Surgiram relatórios credíveis, afirmando que a Síria utilizou essas armas. Se é verdade, ainda está em aberto, mas muito provavelmente é. Nesse ponto, o que estava em jogo é o que se chama de credibilidade. A liderança política e os comentadores de política externa indicavam, corretamente, que a credibilidade norte-americana estava em jogo. Era preciso fazer algo para mostrar que as nossas ordens não podem ser violadas. Planeou-se um bombardeio, que provavelmente tornaria a situação ainda pior, mas manteria a credibilidade dos EUA.
O que é “credibilidade”? É uma noção bem familiar – basicamente, a noção principal para organizações como a Máfia. Suponha que o Padrinho decida que tem de pagar-lhe para ter proteção. Ele tem de sustentar essa afirmação. Não importa se precisa ou não do dinheiro. Se algum pequeno lojista, em algum lugar, decidir que não vai pagar-lhe, o Padrinho não deixa a ousadia impune. Manda os seus capangas espancá-lo sem piedade, ainda que o dinheiro não signifique nada para ele. É preciso estabelecer credibilidade: do contrário, o cumprimento de suas ordens tenderá a erodir. As relações exteriores funcionam quase da mesma maneira. Os EUA representam o Padrinho, quando dão essas ordens. Os outros que cumpram, ou sofram as consequências. Era isso que o bombardeio na Síria demonstraria.
Obama estava a chegar a um ponto do qual, possivelmente, não seria capaz de escapar. Não havia quase apoio internacional nenhum – sequer da Inglaterra, algo incrível. A Casa Branca estava a perder apoio internamente e foi compelida a colocar o tema em votação no Congresso. Parecia que seria derrotada, num terrível golpe para a presidência de Obama e a sua autoridade. Para a sorte do presidente, os russos apareceram e resgataram-no com a proposta de confiscar as armas químicas, que ele prontamente aceitou. Foi uma saída para a humilhação de encarar uma provável derrota.
Faço um comentário adicional. Você perceberá que este é um ótimo momento para impor a Convenção sobre Proibição de Armas Químicas no Médio Oriente. A verdadeira convenção, não a versão que Obama apresentou no seu discurso, e que os comentadores repetiram. Ele disse o básico, mas poderia ter feito melhor, assim como os comentadores. A Convenção sobre Proibição de Armas Químicas exige que sejam banidas a produção, armazenamento e uso – não apenas o uso. Por que omitir produção e armazenamento? Razão: Israel produz e armazena armas químicas. Consequentemente, os EUA irão evitar que tal convenção seja imposta no Médio Oriente. É um assunto importante: na realidade, as armas químicas da Síria foram desenvolvidas para se contrapor às armas nucleares de Israel, o que também não foi mencionado.
Afirmou recentemente que o poder norte-americano no mundo está em declínio. Para citar a sua frase em Velhas e Novas Ordens Mundiais, de 1994, isso limitará a capacidade dos EUA para “suprimir o desenvolvimento independente” de nações estrangeiras? A Doutrina Monroe está completamente extinta?
Bem, não é uma previsão, isso já aconteceu. E aconteceu nas Américas, muito dramaticamente. O que a Doutrina Monroe dizia, de facto, é que os EUA deviam dominar o continente. No último século isso de facto foi verdade, mas está a declinar – o que é muito significativo. A América do Sul praticamente libertou-se, na última década. Isso é um evento de relevância histórica. A América do Sul simplesmente não segue mais as ordens dos EUA. Não restou uma única base militar norte-americana no continente. A América do Sul caminha por si só, nas relações externas. Ocorreu uma conferência regional, cerca de dois anos atrás, na Colômbia. Não se chegou a um consenso, nenhuma declaração oficial foi feita. Mas nos assuntos cruciais, Canadá e EUA isolaram-se totalmente. Os demais países americanos votaram num sentido e os dois foram contra – por isso, não houve consenso. Os dois temas eram admitir Cuba no sistema americano e caminhar na direção da descriminalização das drogas. Todos os países eram a favor; EUA e Canadá, não.
O mesmo se dá noutros tópicos. Lembre-se de que, há algumas semanas, vários países na Europa, incluindo França e Itália, negaram permissão para sobrevoo do avião presidencial do boliviano Evo Morales. Os países sul-americanos condenaram veementemente essa atitude. A Organização dos Estados Americanos, que costumava ser controlada pelos EUA, redigiu uma condenação ácida, mas com um rodapé: os EUA e o Canadá recusaram-se a subscrever. Estão agora cada vez mais isolados e, mais cedo ou mais tarde, penso que os dois serão, simplesmente, excluídos do continente. É uma brusca mudança em relação ao que ocorria há pouco tempo.
A América Latina é o atual centro da reforma capitalista. Esse movimento poderá ganhar força no Ocidente?
Tem razão. A América Latina foi quem seguiu com maior obediência as políticas neoliberais instituídas pelos EUA, os seus aliados e as instituições financeiras internacionais. Quase todos os países que se orientaram por aquelas regras, incluindo nações ocidentais, sofreram – mas a América Latina padeceu particularmente. Os seus países viveram décadas perdidas, marcadas por inúmeras dificuldades.
Parte do levante da América Latina, particularmente nos últimos dez a quinze anos, é uma reação a isso. Reverteram muitas daquelas medidas e moveram-se para outra direção. Noutra época, os EUA teriam deposto os governos ou, de uma maneira ou de outra, interrompido o seu curso. Agora, não podem fazer isso.
Recentemente, os EUA testemunharam o surgimento dos seus primeiros refugiados climáticos – os esquimós Yup’ ik – na costa sul na ponta do Alaska. Isso coloca em mórbida perspetiva o impacto humano no meio ambiente. Qual é sua posição acerca dos impostos sobre emissões de carbono e quão popular pode ser tal medida nos EUA ou noutro país?
Acho que é basicamente uma boa ideia. Medidas muito urgentes têm de ser tomadas, para travar a contínua destruição do meio ambiente. Um imposto sobre carbono é uma maneira de o fazer. Se isso se tornasse uma proposta séria nos EUA, haveria uma imensa propaganda contrária, desencadeada pelas corporações – as empresas de energia e muitas outras –, para tentar aterrorizar a população. Diriam que, em caso de criação do tributo, todo tipo de coisa terrível aconteceria. Por exemplo, “você não será mais capaz de aquecer sua casa”… Se isso terá sucesso ou não, vai depender da capacidade de organização dos movimentos populares.
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