O semanário francês de esquerdas Marianne dedicou o passado janeiro uma ampla reportagem e várias entrevistas a debater o abandono do euro desde uma posição favorável [http://www.marianne.net/Sortir-de-l-euro-Lhe-debat-interdit-est-ouvert_a235455.html]. Pierre Khalfa, uma das cabeças mais lúcidas do Front de Gauche francês, respondeu com precisão e inteligência fazendo ver as contradições e inconvenientes de dita postura.
«Sortir de l?euro? Lhe débat interdit» [«Sair do euro? O debate proibido»] titula
Marianne (N° 876, do 31 de janeiro ao 6 de fevereiro). Poder-se-ia ironizar que este sedicente debate é objeto regularmente de intercâmbios argumentados em uma série de órgãos de imprensa, já seja a direita ou a esquerda, que esta perspetiva a evocam regularmente certos responsáveis políticos e que em páginas interiores
Marianne reconhece que «em todos os ministérios de Finanças da [euro]zona, o mesmo que em todos os serviços de estudos e de gestão de riscos das grandes entidades financeiras, todo mundo está em cima de isso». Para tratar de um debate proibido? Poder-se-ia também fazer notar que «esquece»
Marianne conceder a palavra a uma posição, aquela para a que entrada em vigor do euro não é mais que um dos aspetos de um problema mais vasto, a imposição na Europa por todos os governos de políticas neoliberales executadas em nome da competitividade.
A entrevista com E. Todd, decifradaNeste dossier, a entrevista de Emmanuel Todd é como para mandar que o parem. Aí também poder-se-ia ironizar sobre essas declarações suas enxergando o inconsciente de François Hollande: «o seu inconsciente diz que tem medo». É o mesmo Todd, partidário do «hollandismo revolucionário» que durante a campanha eleitoral de 2012 apoiava a François Hollande e previa que ver-se-ia forçado pela crise a tomar medidas antiliberais?
Na sua entrevista, Todd trata ao Parlamento Europeu de «falso parlamento». No entanto, a comparação entre o Parlamento Europeu e o Parlamento francês não se resolve necessariamente a favor deste último. Um e outro carecem de iniciativa legislativa e, no caso francês, a utilização de um nicho parlamentar para apresentar uma proposição de lei não tem mais oportunidade de chegar a termo que o acordo do governo. No entanto, com a instauração da codecisão em numerosos terrenos, o Parlamento Europeu pode bloquear uma diretiva em caso de desacordo com o Conselho, após um procedimento de emendas e de ida e volta com o Conselho, algo ao que se chegou várias vezes. Por contraste, conquanto o Parlamento francês pode em teoria bloquear um projeto de lei do governo, na prática já é outro cantar totalmente diferente, pois os parlamentares da maioria estão submetidos a uma lógica institucional que os converte, in fine, em solidários com o governo. Como todo os antieuropeus, Todd se nega a reconhecer que é como a democracia se esvaziou de conteúdo a escala nacional pelo que é quase inexistente a escala europeia. Assim, conquanto a construção europeia assistiu ao surgimento de instituições supranacionais, bem que são os estados nacionais os que decidiram, afinal de contas, as suas orientações. aconteça isso no enquadramento dos conselhos de ministros, do Conselho Europeu ou das Conferências Intergovernamentais (CIG), os estados seguiram mantendo o controlo sobre a construção europeia. Longe de ter-se visto despojados do seu poder, dominaram a cena europeia? Mas, discretamente, entre estruturas! A história da construção europeia converteu-se assim na das grandes manobras, a da diplomacia secreta, enturvada só pelas discussões com a Comissão. Este modo de construção da União desembocou no resultado que conhecemos: uma Europa antidemocrática e neoliberal.
Todd indica que a saída do euro desencadearia «uma revolução social, a limpeza de elites mau formadas, envelhecidas, arcaicas, algo comparável ao que aconteceu em 1945». Conquanto a sua caracterização das «elites» atuais tem provavelmente uma parte para valer, falta no entanto um rasgo essencial, o de estar dominadas pela ideologia neoliberal da competitividade. Pode-se duvidar, de facto, de que a saída do euro desencadeasse a revolução social anunciada, pois a não ser que esta preceda àquela, a saída do euro levá-la-ão a cabo essas elites e não se vê por que razão teriam de se fazer o
harakiri.
Desvalorizar não é um jogoPara além desta entrevista um tanto caricaturesca, há um argumento em forma de anel que volta nas declarações dos partidários da saída do euro. A volta à moeda nacional permitiria restabelecer mediante a desvalorização a competitividade da economia francesa. Ao desvalorizar, os produtos seriam assim mais competitivos para a exportação. Esta análise descansa na tese de que o problema central da economia francesa tem que ver com a
compétitivité de preços. Os produtos franceses seriam mais caros. Para além do facto de que esta análise é exatamente o do
Medef [o patronato francês] que preconiza uma baixada dos custos salariais, contradiz todos os relatórios um pouco sérios sobre a competitividade francesa, que indicam pelo contrário que o problema fundamental da economia francesa é a competitividade aparte dos preços, isto é, uma ausência patente de inovação, uma inadecuação à demanda, um tecido industrial desarticulado dominado por grandes grupos que pressionam aos seus subcontratistas. Nesta situação, uma desvalorização constituiria uma medida bastante pouco adequada, pois, contrariamente ao que afirma o banqueiro de negócios Phillipe Villin na sua entrevista, os fabricantes alemães de carros não vendem na França mais que veículos de alta gama e, em modelos equivalentes, os carros alemães são hoje mais caros que os franceses:
Peugeot, por tanto, não salvar-se-ia.
Uma desvalorização monetária, proteger-nos-ia de uma desvalorização interna que se efetuasse mediante o descenso da massa salarial? Evidentemente, não, pois teria então que lutar por «defender as nossas exportações» e historicamente as desvalorizações se viram sempre acompanhadas de políticas de austeridade. Por outro lado, é o que confessa o mesmo Philippe Villin o deixando cair em uma frase que indica que, depois da desvalorização da moeda, «estaríamos salvos, desde que retomássemos também as reformas estruturais que se impõem». Na neolíngua dos economistas liberais, a expressão «reformas estruturais» significa baixada dos custos de trabalho, recortes da despesa pública e questionamento da proteção social.
Mas como todos os países se lançaram a uma carreira de competitividade, as medidas de austeridade são as mesmas em todas partes. Em uma Europa economicamente integrada na que os fornecedores de uns são os clientes dos outros, uma orientação desse género se traduz em um jogo de soma zero e implica uma lógica recessiva que agrava ainda mais a dificuldade das empresas. As políticas de austeridade continuariam, pois, tanto mais porquanto a desvalorização implicaria uma inflação da que derivar-se-ia a alça de preços dos produtos importados. Defensor da saída do euro, Jean-Marc Daniel, experiente economista do Instituto da Empresa, vê-se obrigado a admitir na sua entrevista que «a inflação mordisquearía nossas vantagens competitivas e a fatura petroleira explodiria em proporções que fariam passar a eco-taxa que denunciam os «
bonnets rouges » [*] por um vulgar pinchado». E negando-se, por outra parte, a restaurar o controlo de mudanças, medida que considera impopular, não evoca curiosamente a fuga de capitais, inevitável em caso de desvalorização, nem a possibilidade de ataques especulativos contra a moeda.
Mas isso não é o essencial. Uma estratégia de desvalorização competitiva, que aponte a ganhar parcelas de mercado contra os demais países, engendrará uma espiral de políticas económicas não cooperativas. Longe de induzir a uma maior solidariedade entre os povos, essa estratégia traduzir-se-ia em uma maior concorrência, mais
dumping social e fiscal, o que teria como consequência um agravamento das tensões xenófobas e nacionalistas em uma situação na que por toda a Europa vai de vento em popa. A saída do euro demonstra-se um espelhismo milagroso e não pode ser um projeto progressista. Por outra parte, o economista André Orléan, um dos fundadores da rede de Economistas Aterrorizados, vê corretamente o problema, já que assinala na sua entrevista que «a saída do euro não é (...) um fim em si mesmo (...) teria que se voltar imperativamente para os nossos sócios para lhes convencer de repensar em comum o enquadramento da nossa cooperação». Mas como advogar então por uma nova cooperação, quando os defensores de uma saída do euro reconhecem que esta seria não cooperativa.
Orléan assinala que «as sociédades do CAC 40 [índice bursátil francês] têm retribuído com 43.000 milhões de euros aos seus acionistas em forma de dividendos e resgate de ações. Este montante elevou-se um 4% em relação a 2012». Esta situação não guarda nenhuma relação com o euro e uma saída da moeda única não mudaria nada disso. A questão central, que os partidários da saída deixam quase sempre de lado, é a da dominação do capitalismo acionarial. Com euro ou sem ele, sem atacar isso, nada mudará.
E a dívida em tudo isto?Fica um debate, que consequência teria uma desvalorização sobre a dívida pendente de pagamento? Até data recente, todo mundo, partidários da saída do euro incluídos, admitia que a dívida pendente de pagamento aumentaria em proporção à desvalorização da moeda. Assim, afirmava Jacques Sapir na época: «Se estamos na hipótese de uma saída isolada, então aumentará a parte da dívida em mãos dos não residentes. Como há um 66% da dívida em mãos de não residentes, se o franco se desvaloriza um 20 %, isto significa um incremento do 13,2 % da dívida pública».[1] Os partidários da saída do euro argumentam hoje, de facto, que se tendo emitido o essencial da dívida pública francesa de acordo com o Direito francês, reformular-se-ia em moeda nacional e, portanto, sem efeito algum depois de uma desvalorização. Um termo erudito, retomado por
Marianne, supõe-se que justifica este ponto de vista:
lex monetae.
Esta análise erra em vários pontos. A emissão de dívida garante no Direito francês que em caso de conflito entre o Estado e os seus credores, este conflito ver-se-ia ante os tribunais franceses, o que por outro lado não garante em modo algum que prevaleça o Estado. Há a seguir dois supostos possíveis. Se estoura a zona euro e o euro desaparece, os Estados terão que passar entre eles uma convenção que indique as taxas de conversão entre o euro e as novas moedas, e os contratos em euros formular-se-iam então nas novas moedas com as taxas de conversão negociadas. Não cabe dúvida de que os credores estarão representados na mesa de negociações e defenderão com firmeza os seus interesses com a ajuda de ameaças. Se o euro segue existindo como moeda, não se vê por que os credores, sobre todos os não residentes, aceitariam que uma dívida estipulada em euros o seja em uma moeda menos forte. E já seja que se chegue então a um acordo através da ativação de cláusulas coletivas, já seja que o governo francês se imponha, em ambas situações, se trata de uma anulação parcial da dívida. O que, efetivamente, sempre é possível, já se trate de uma moeda única ou não, com a condição de ter a vontade política de enfrentar aos mercados financeiros.
Não se trata só de uma questão jurídica, contrariamente ao que pensam os partidários da saída do euro. Em caso de desaparecimento do euro, terá que aguentar na mesa de negociações e procurar aliados, o que supõe compromissos e, por tanto, ter em conta os interesses dos credores. Em caso de manutenção do euro e supondo inclusive que os tribunais franceses lhe dêem a razão ao Estado, o que não está em modo algum garantido, os credores poderiam então recorrer a outras jurisdições (Londres ou Nova Iorque, por exemplo) para tentar que se condene a França. Terá então que se negar a aplicar decisões jurídicas, o que supõe um pulso com as instituições internações e os mercados financeiros. Em resumo, a aplicação da
lex monetae, sedicente novo «abre-te, Sésamo» para uma saída tranquila do euro, corre o risco de ser mais complicada do previsto.
Por um pulso!Então, que fazer? [2] Ver-nos-íamos condenados, bem à impotência, ao aceitar a situação atual, bem a lançar a uma aventura de alto risco com a saída do euro? Existe, não obstante, uma terceira via para os povos europeus. Passa por um confronto com as instituições europeias e os mercados financeiros. Não produzir-se-á nenhuma mudança substancial sem abrir uma crise de envergadura na Europa e sem se apoiar em mobilizações populares. Um governo de esquerda deveria explicar que está unido à construção europeia, mas que se nega em nome desta a que se destruam os direitos sociais e as populações depauperadas.
Deveria manter o seguinte discurso: «O euro é a nossa moeda. Mas os tratados colocaram-no baixo domínio financeiro. O BCE financia à banca privada a taxas quase nulas e esta presta a seguir aos estados a taxas exorbitantes. Não queremos seguir submetidos aos mercados financeiros. Queremos fazer com que o euro funcione ao serviço das necessidades sociais e ecológicas. Queremos pôr os nossos bancos baixo controlo cidadão para que sirvam às verdadeiras necessidades da sociedade e não à cobiça dos seus acionistas. Nós, como governo deste país, começaremos por atuar assim na nossa própria casa. Convidamos aos movimentos sociais e aos povos europeus a fazer outro tanto em todas partes para nos reapropriar juntos da nossa moeda e refundar a União Europeia sobre outras bases».
O governo em questão tomaria uma série de medidas unilaterais, explicando que estas têm vocação de se estender a escala europeia. Trata-se de medidas unilaterais cooperativas, no sentido de que não se dirigem contra nenhum país, contrariamente às desvalorizações competitivas, senão contra uma lógica económica e política e que, quanto mais importante seja o número de países que as adotem, mais aumenta a sua eficácia. Por tanto, em nome de outra conceção da Europa é como deveria um governo de esquerdas pôr em prática medidas que rompem com a construção atual da Europa. Assim, por exemplo, um governo de esquerda poderia ordenar ao seu banco central financiar os deficits públicos por médio da criação monetária. Por outra parte, isto poderia se fazer indiretamente sem violar sequer formalmente os tratados europeus utilizando como intermediário uma entidade pública de crédito como, por exemplo, na França a Caisse dês Dépôts [Caixa de Depósitos] [3]. Trata-se fundamentalmente de comprometer em um processo de desobediencia aos tratados e por isso mesmo de um pulso com as instituições europeias.
Uma atitude assim mostraria concretamente que há alternativas às políticas neoliberais. Poria aos governos contra a parede e enfrentar-lhes-ia à sua opinião pública. Seria um estímulo para que os povos se mobilizassem. Um discurso determinadamente proeuropeu, voltado para a democracia, a justiça social e ambiental, encontraria um considerável eco em outros povos europeus e movimentos sociais. Os dirigentes europeus tentarão seguro aplicar represálias. Ameaçar-se-á ao povo desobediente com um boicote económico total, uma ameaça por outro lado mais crível contra os países pequenos que contra os maiores, sobretudo França.
O desvincule deste pulso não está escrito de antemão. Uma exclusão forçada do país rebelde, embora o Tratado de Lisboa não preveja nenhuma possibilidade de excluir a um país da zona euro, seria possível, tal como se ameaçou a Grécia em caso de vitória eleitoral da esquerda radical de
Siryza? Poderia um efeito dominou progressista ganhar a outros países que se cindiriam e poderiam instaurar um euro-bis, com inovações fiscais e orçamentas, solidárias e ecológicas, que fá-lo-iam viável? Produzir-se-ia um viro da zona euro por uma refundição dos tratados? Tudo dependerá das relações de força construídas que poderão se construir a escala europeia. A desobediência europeia, começando se é necessário em um país, pode-se conceber e popularizar, não como o início de uma eclosão de solidariedades europeias senão, pelo contrário, como instrumento para acelerar o surgimento de uma comunidade política europeia, um embrião de «povo europeu».
A divergência com os partidários da saída do euro centra-se em dois pontos: por um lado, não é possível, desde um ponto de vista progressista, promover uma estratégia, a desvalorização competitiva, que incrementa a concorrência entre povos e estados; por outro lado, se não pode excluir, em certos casos, uma saída do euro, esta seria resultado da conjuntura e de uma batalha política por uma refundação da União Europeia e não um projeto político
a priori. Estes dois pontos estão evidentemente unidos. Precisamente porque não renunciámos à batalha por uma Europa da solidariedade é pelo que não podemos brindar um projeto, a saída do euro, do que é negação.
Notas:
[1] Citado por
Libération, 16 de janeiro de 2014.
[2] Veja-se: Thomas Coutrot, Pierre Khalfa, "Crise de l'euro : sortir du carcan", em
Nous désobéirons aussi sous a gauche!, baixo a direção de Paul Ariès e René Balme, Editions Golias, setembro de 2012; Fondation Copernic,
Changer vraiment!, Editions Syllepse, junho de 2012; Pierre Khalfa, Catherine Samary, "A monnaie, l'euro, ne pas se tromper de débat", janeiro de 2011; Michel Husson, "Quelles réponses progressistes?",
Les Temps Nouveaux, outono 2010; Jean-Marie Harribey, "Sortir de quoi?", abril de 2011,
http://harribey.u-bordeaux4.fr/travaux/europe/debat-sortiedeleuro.pdf; Daniel Albarracín, Nacho Álvarez, Bibiana Medialdea (Espanha), Francisco Louçã, Mariana Mortagua (Portugal), Stavros Tombazos (Chipre), Giorgos Galanis, Özlem Onaran (Grã-Bretanha), Michel Husson (França), "Que faire da dette et de l'euro?, Um manifeste!"
http://tinyurl.com/euro13.
[3] Trata-se de utilizar as possibilidades oferecidas pelo artigo 123-2 do Tratado sobre funcionamento da União Europeia.
[*] Nota do t.: «bonnets rouges», literalmente «gorros vermelhos», em referência aos que portavam quem participavam no movimento de protesto surgido na Bretanha em outono de 2013 -camioneiros, agricultores, operários, parados, pescadores, patronos- e que se opunha à aplicação da eco-taxa e outras medidas fiscais sobre a contaminação de veículos de transporte de mercadorias.