Prem Shankar Jha. Tirado de Outras Palavras (aqui). Tradução: Tadeu Breda. Prem Shankar Jha é analista e jornalista indiano nascido em 1938. Já trabalhou para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), além de vários veículos de comunicação da Índia. Foi também consultor do Banco Mundial, membro da comissão indiana da Unesco e professor-visitante da universidades de Harvard, Virginia e Richmond, nos Estados Unidos
A Índia hospeda uma série de conferências internacionais todos os anos, e 90% delas não consegue nem mesmo ser citada pela imprensa internacional. Mas a cúpula dos BRICS, concluída em 29 de março, rompeu com essa tradição. Em apenas dois dias, a conferência virou notícia em pelo menos 624 jornais de grande circulação e canais de tevê em todo o mundo. O que possibilitou tamanha repercussão? A resposta mais curta é que, talvez, a mídia internacional tenha sentido que a bicentenária hegemonia do Ocidente está sendo desafiada por um mundo novo e cada vez mais interdependente.
Esse desafio ao poderio ocidental (e norte-americano, em particular) foi construído ao longo do tempo: está refletido na crescente determinação da China em manter os mares ao sul de seu território livres da presença militar e da influência econômica estrangeiras; é visível já há alguns anos na atuação do grupo islâmico radical Al Qaeda; foi demonstrado pelos vetos russo e chinês às resoluções do Conselho de Segurança que buscavam legitimar a queda do regime de Bassar Assad na Síria. Nesse contexto, o encontro dos BRICS — grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — em Nova Délhi adquire especial relevância.
Apenas três dias antes da cúpula, um colunista do International Herald Tribune classificou os BRICS como “um bloco artificial construído em cima de um slogan”. Diferente da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e de outras agrupações, afirmou o articulista, não existe justificação regional ou comercial para os BRICS. Pelo contrário, todos os seus membros possuem relações econômicas prioritárias com o Ocidente. Além disso, a sigla que dá nome ao grupo foi inventado por um executivo da Goldman Sachs, cujo objetivo era aconselhar corporações transnacionais sobre a melhor forma de expandir suas atividades nas regiões que estavam em rápido crescimento após o início da globalização e da gradual desindustrialização do Ocidente.
Mais que uma sigla
Hoje, porém, os BRICS se transformaram em algo que vai muito além de sua sigla. A declaração de Délhi contém não apenas a mais abrangente crítica que jamais foi feita aos fracassos do Ocidente desde o final da Guerra Fria, como também traz esboços de um projeto alternativo para gerenciar um mundo cada vez mais interdependente — ou seja, o nosso.
A tarefa de elaborar esse plano B foi imposta aos BRICS pelas falhas do Ocidente. Tanto a crise financeira de 2008 como a recessão mundial iniciada em 2009 foram produtos da ganância e do desgoverno capitalista, que reinaram soberanos enquanto sucessivos países se esforçavam para desregulamentar todos os mercados, nacionais e internacionais, em nome da liberdade econômica e da produtividade. Só o que conseguiram foi transformar o mercado num terreno de caça para predadores econômicos.
Não devemos surpreender-nos, portanto, com as primeiras exigências dos BRICS, feitas lá atrás, em junho de 2009: todas se relacionavam à reforma das instituições financeiras internacionais, à uma reestruturação do sistema financeiro, à segurança energética, à mudança climática e ao comércio. E o tom era de cooperação: o objetivo dos BRICS — seus presidentes apressaram-se em dizer — era “expandir o consenso estratégico, consolidar a confiança mútua, coordenar-se entre si para enfrentar a crise” e traçar um plano para o desenvolvimento futuro do sistema econômico internacional.
Mas, na medida em que o caos financeiro se aprofundou e se espalhou para a política, os BRICS foram forçados a ampliar sua agenda e afinar o tom de suas declarações. A atuação do grupo deixou de ser exclusivamente econômica durante a terceira cúpula de chefes de Estado, realizada em Hainan, China, em abril de 2011, quando os BRICS expressaram “profunda preocupação com a turbulência no Oriente Médio” e prometeram “continuar com a cooperação na Líbia dentro do Conselho de Segurança.”
Mas a OTAN não quis aprender as lições da Líbia e ignorou um fato importante: a remoção forçada de um regime autoritário não é um caminho indolor rumo à liberdade, democracia e paz, mas conduz a um vazio de poder que, inevitavelmente, acaba sendo preenchido pelos elementos mais brutais e preconceituosos da sociedade. A OTAN saiu da Líbia com a crença de que finalmente havia descoberto uma “nova forma de guerra”, que cumpriiu o objetivo de mudar o governo de um país de forma barata e acessível — mesmo para potências economicamente falidas. Assim, a Líbia foi seguida pela Síria, e Síria está em perigo de ser seguida pelo Irã.
É essa perspectiva profundamente perturbadora do caos e da guerra em franca expansão que deu ao BRICS a possibilidade de desafiar a hegemonia do Ocidente de uma maneira tão madura como a que foi revelada em Délhi.
Uma crítica
A declaração Délhi expressa este desafio mais claramente em seis de seus 50 parágrafos. O primeiro é uma crítica à má gestão monetária da Europa — e, por consequência, dos Estados Unidos —, que produziu dívidas nacionais irresgatáveis, criou um excesso de liquidez internacional e agravou a recessão global. O segundo oferece uma crítica igualmente dura à inabilidade política do Ocidente em relação ao Oriente Médio. Um terceiro parágrafo lembra aos EUA e à União Europeia que a paz no Oriente Médio não poderá ser obtida sem uma “solução ampla e duradoura do conflito árabe-israelense”, e afirma que os BRICS estão muito interessados em ajudá-los na empreitada.
Um quarto parágrafo reafirma de forma inequívoca a necessidade de respeitar a soberania, a independência e a integridade territorial de todos os Estados, mas faz uma referência específica à Síria. Os BRICS expressam “profunda preocupação [com o ataque à soberania da] Síria”, conclamam a “um cessar-fogo imediato” e apoiam o plano de seis pontos proposto pelo ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan: fim das hostilidades e a instauração de “um processo político inclusivo e liderado pelos sírios” para criar “um novo ambiente para a paz”.
A declaração de Déhli reserva sua observação mais incisiva para o final: “A situação no Irã”, diz o texto, “não deve degenerar-se em conflito. Reconhecemos o direito do Irã ao uso pacífico da energia nuclear, em consonância com as suas obrigações internacionais, e apoiamos a resolução das divergências por meio de instrumentos políticos e diplomáticos e do diálogo entre as partes, incluindo entre a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e o Irã, e em conformidade com as disposições das determinações do Conselho de Segurança”. Tais observações ficam apenas um pouco aquém de um aviso mal disfarçado.
Os parágrafos sobre a Síria e o Irã constitui a rejeição mais inequívoca já feita à doutrina da “paz através do ataque preventivo” formulada pelo governo George W. Bush na sequência do 11 de Setembro. Desde então, sua aplicação repetitiva tem sido justificada não só pelo combate ao terrorismo, mas também pela defesa dos direitos humanos, a promoção da democracia e o exercício do “dever de proteger”. A verdade é que, desde a libertação do Kosovo, em 1999, até a destruição da Líbia, em 2011, temos assistido a uma sistemática violação do artigo 2º, a mais fundamental cláusula da Carta das Nações Unidas. A declaração Délhi é uma reafirmação de que os princípios consagrados pela ONU continuam vigentes e, portanto, é também um alerta ao Ocidente contra o uso da ONU e suas instituições — nomeadamente o Conselho de Segurança — para destruir a própria ONU.
Mesmo as duas iniciativas concretas delineadas pelos BRICS (o desenvolvimento de um sistema de pagamentos internacionais que dispense o uso do dólar e a criação de um banco internacional alternativo) não apenas possuem um objetivo econômico imediato, que é proteger suas economias da instabilidade monetária, mas tem também a finalidade política de libertar-se de um sistema bancário internacional que se tornou ferramenta do Ocidente para impor sanções, sequestrar fundos e, assim, estrangular e submeter países menores.
Resposta muda
Até agora, a resposta ocidental à declaração de Délhi permanece muda. Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial, e renomados economistas, como Nicholas Stern, Matthia Romani e Joseph Stiglitz, saudaram a ideia de um banco dos BRICS, observando sarcasticamente que tal instituição “poderia desempenhar um forte papel no reequilíbrio da economia mundial, canalizando o dinheiro duramente economizado pelos mercados emergentes e países em desenvolvimento para finalidades mais produtivas do que as bolhas de financiamento do mercado imobiliário dos países ricos”.
Porém, uma reação conservadora virá e, caso seja destacada pela mídia, poderia facilmente transformar em ameaça aos EUA e à OTAN o que hoje em dia não passa de um puxão de orelha nas potências hegemônicas do Ocidente. É imperativo aos BRICS garantir — e ao mundo, perceber — que a declaração de Délhi não é o começo de uma nova Guerra Fria.
A desorganização dos sistemas econômicos nacionais e internacionais causada pela globalização espalhou-se, hoje, para o sistema político mundial. Os BRICS encontraram sua raison d’etre na tentativa de deter que os malefícios se propaguem ainda mais. Não tem nada a ver com fazer tudo sozinho. Para citar Diena, um jornal letão, “seria exagero dizer que esta aliança mais ou menos informal é dirigida contra os Estados Unidos. Mas todos os países que formam os BRICS estão convencidos de que querem viver um mundo policêntrico, e não num planeta unipolar dominado pelos Estados Unidos.” A Letônia é membro da União Europeia.
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