Robert Fisk alerta: no xadrez do Oriente Médio, talvez haja potências interessadas em levar alguns países árabes ao colapso
Tudo cheira mal, na cobertura dos jornais brasileiros sobre o conflito interno sírio. Denunciam-se, de um lado, crimes reais: as tiranias do governo e os massacres cometidos pelo exército. Fala-se no avanço ora de “rebeldes”, ora de “oposicionistas”. Sabe-se, por fatos e imagens, que estão militarizados. Aparecem sempre armados de metralhadoras. Promovem atentados e assassinatos seletivos.
Mas quem são? É como se não importasse, bastando sabermos que enfrentam um regime próximo ao do Irã e, portanto, contrário aos Estados Unidos. Combatem, portanto, um “mal”, sugere a mídia; logo, são “bons”… E estão mergulhados, segundo o mesmo raciocínio, no universo estranho e atrasado de uma religião declarada inimiga. Portanto, serão sempre bons, ainda que matem e pratiquem outros atos condenáveis…
Corrrespondente do Oriente Médio há três décadas (do “Independent” de Londres e do alternativo “ZNet”, de Boston, entre outras publicações), o jornalista veterano Robert Fisk acostumou-se a desconfiar deste raciocínio binário. Ele cobriu, no início dos anos 1990, a guerra civil argelina. As duas partes conflagradas — governo tecnocrático e oposição fundamentalista islâmica — cometiam atrocidades equivalentes. Porém, algumas eram omitidas e, portanto, perdoadas: as de um governo que havia anulado eleições democráticas, mas… defendia os interesses das potências e empresas ocidentais.
Na Síria, Fisk evita fazer previsões. Destaca fatos incômodos. Lembra que, embora interessados no fim da ditadura chefiada por Bashar Assad, os EUA evitam apoiar explicitamente a oposição. Sabem que é um aglomerado caótico, integrado inclusive, tudo indica, pela Al-Qaeda.
Fisk acredita que o regime despótico cairá. Mas teme: não surgirá em seu lugar um governo libertário, ao contrário do que gostariam muitos dos que torcem pelo fim da ditadura. Nas atuais condições, o país está arriscado a mergulhar numa sequência de conflitos entre etnias e seitas, podendo entrar em colapso como nação.
Haverá, no Oriente Médio, poderes interessados em que este tipo de desfecho se torne comum? É uma dúvida legítima, que vale expressar e que pode guiar a leitura dos próximos acontecimentos. Talvez a entrevista que Robert Fisk concedeu a Znet, no início de julho, ajude a precisá-la. O diálogo vem a seguir (A.M.)
Depois do massacre em Houla, você afirmou que estamos diante de um ponto de inflexão no horror da Síria. Qual é a sua conclusão sobre o que aconteceu?
Robert Fisk: Eu acho a palavra “ponto de inflexão” de forma um pouco cínica, porque jornalistas e acadêmicos gostam de usá-la. Eu não estou certo — devido à quantidade e ao alcance dos tentáculos que o Partido Baath, do presidente Bashar Al Assad, têm em solo sírio — que vejamos seu regime cair tão rápido quanto Obama, Hillary Clinton e o primeiro-ministro britânico, David Cameron, desejariam. Penso que esse processo ainda vai continuar por um bom tempo. Há uma grande quantidade de apoiadores do regime do Partido Baath, não apenas entre os membros da comunidade xiita alauíta, os cristãos ou os druzos, mas também, e particularmente, entre a burguesia síria e as classes médias. Creio que será uma guerra terrível e muito sangrenta. Subitamente Hillary Clinton disse que o confronto é terrível e Obama falou em algo horrendo. Isso sugere que não estamos caminhando para o fim da guerra, infelizmente.
Você escreveu que há precedentes históricos sombrios, no Oriente Médio, de regimes repressivos que tentam manter-se às custas da morte de centenas de milhares de pessoas. É isso que pode acontecer na Síria?
Robert Fist: Sim. Como você sabe, cobri a guerra da Argélia de 1991 a 1998, quando foram realizadas eleições livres por lá. Os fundamentalistas islâmicos iriam, claramente, vencer o segundo turno das eleições. Elas foram, então, interrompidas pelo “governo”, com o apoio do Ocidente. E começou uma guerra civil terrível, com vilarejos destruídos, crianças e mulheres tendo suas gargantas cortadas, homens fuzilados, tropas do “governo” sitiando cidades, numa intensidade muito maior do que está acontecendo na Síria hoje. E tudo isso com o Ocidente plenamente satisfeito com o fato de o “governo” ter impedido os islamistas de tomar o poder. Hoje, nem mesmo pensamos mais sobre aquilo.
É um precedente muito terrível e creio que Bashar al Assad vai levá-lo em consideração, porque seu pai, Hafez, destruiu mais de 20 mil vidas, quando liquidou Hama em 1982. E depois daquela batalha, quando os argelinos ainda tentavam descobrir como vencer sua própria guerra contra seus fundamentalistas, enviaram uma delegação militar a Damasco, com intuito de descobrir como os sirios o fizeram. Aplicaram as lições que aprenderam contra seus próprios inimigos, na Argélia. Enfim, há toda uma série de causas-consequências e precedentes por conta dos quais creio que a guerra na Síria não vai terminar agora; que al Assad não vai cair tão logo.
No precedente argelino, ambos os lados, militares e fundamentalistas, massacraram um número monstruoso de civis, de maneiras terríveis. Você teme que o mesmo tipo de coisa ocorra na Síria, onde nós sabemos muito pouco sobre as milícias e forças rebeldes que estão emergindo?
Robert Fisk: Bem, é o que já está acontecendo na Síria. Estive num subúrbio de Argel chamado Bentalha, onde houve um ataque de fundamentalistas contra moradores que eram, eles mesmos, muçulmanos. Centenas de pessoas foram mortas, inclusive bebês que tiveram suas gargantas cortadas. Vi os corpos desses bebês e de seus pais. E do telhado de suas casas, eu conseguia enxergar tremulando a bandeira argelina, em barracas do exército próximas. É o tipo da situação que estamos assistindo na Síria, em lugares como Houla, Hama e suponho, com pesar, também em Aleppo.
O que sabemos sobre o “Exército Livre da Síria”, cujo comandante, o coronel Riad al Assad, está tentando retomar os ataques?
Robert Fisk: Eu não levaria a sério qualquer coisa que ele diz. porque todas as vezes fui à fronteira e tentei ver seu exército, ouvi três ou quatro versões diferentes a respeito. O fato de relevo é que a oposição síria, a oposição armada a Bashar al Assad, é tão dividida que não pode ser considerada uma única única facção. O precisamos compreender — e aqui está uma das razões pelas quais Obama e Hillary, além de todos os outros fanfarrões e mentirosos, estão dizendo o que dizem — é que não sabemos quem é essa oposição.
E como não sabemos, o único que podemos — e por “nós”, leia-se o Ocidente — é expressar ultraje contra Bashar al Assad e seu regime. Não podemos dar apoio a essa oposição, porque ela pode incluir até mesmo membros da Al Qaeda em suas fileiras e ter envolvimento no massacre de Houla. Não sabemos ainda. Não estou dizendo, com isso, que Assad seja um mocinho. Ele não é.
Mas os Estados sunitas do Golfo Pérsico têm armado os rebeldes anti-governo e presumivelmente vão continuar a fazê-lo.
Robert Fisk: Claro que sim!
O que seria necessário para eles realmente derrubarem o regime?
Robert Fisk: Seria preciso que, nas forças blindadas sírias — ou seja, as divisões de tanques e as unidades anti-aéreas — houvesse um número suficiente de oficiais dispostos a enfrentar o regime. Mas isso ainda não aconteceu, nem creio que veremos em um futuro próximo. A hierarquia militar síria tem permanecido leal à Presidência. E enquanto isso perdurar em uma cidade estratégica como Damasco, e em outra mais ou menos estratégica como Aleppo, Assad não cairá, por mais que Obama, Hillary Clinton ou David Cameron queiram o contrário.
Há alguma possibilidade de aplicação, na Síria, de uma doutrina como a da “responsabilidade de proteger”, usada na Líbia?
Robert Fisk: Bem, estou certo que muitos líbios pediriam: “Por favor, Deus, não use isso contra nós ou contra neles”. Como você deve saber, a “responsabilidade para proteção” é um clichê midiático que matou um número assustador de pessoas inocentes. Acho que o número de pessoas assassinadas na Síria, particularmente pelo regime, já é suficiente. A ajuda da OTAN pode ser dispensada.
O que precisaríamos ver é uma nova Síria emergindo daquilo tudo que compõem seu povo — isto é, sunitas, xiitas, alauítas hoje no comando, cristãos, druzos e assim por diante. Mas, infelizmente, é mais fácil dizê-lo na TV australiana do que fazê-lo.
Você vê alguma possibilidade de isso acontecer? Porque muitas das pessoas-chave da Primavera Árabe sentem-se traídas. Suas revoluções pacíficas foram traídas pelo armamento das forças de oposição, e quando você os vê sendo mortos pelo regime, dá vontade de lhes encher de armas.
Robert Fisk: Bem, eu vivo no Líbano e em Beirute, de onde falo agora, este argumento é muito repetido. Meu entendimento — e fui à Síria dezenas e dezenas de vezes — é que lá há armas demais. As famílias, tribos e organizações têm um monte de armas. Se eles realmente precisassem ter o que você e eu chamamos de guerra civil, ela teria começado — e haverá quem nos diga que ela já começou.
Mas a única coisa que eu poderia dizer, pois muitos sírios vivem no Líbano, é que os poderes ocidentais decidiram lá atrás, há quase cem anos, que sírios e líbaneses eram povos diferentes. São o mesmo povo. Meus amigos daqui, a quem aconteceu de nascerem sírios, poderiam ser libaneses. Eles têm um país e querem ser leais a ele, mas não desejam viver sob uma ditadura. No final das contas, acho que haverá uma revolução na Síria. A questão é: será do tipo que você, eu e todos nós, pessoas legais do Ocidente, gostariam que fosse? Uma revolução de caráter, ideias e pensamentos libertários? Ou será uma revolução corrompida e, suponho, terrivelmente pintada com as cores do sectarismo e das diferenças religiosas?
Não posso deixar de notar tristeza em sua voz. Há sinais preocupantes de que a guerra na Sìria poderia se espalhar pela fronteira com o Líbano, onde você armou sua tenda. Eu quero dizer, você está realmente preocupado com isso, não?
Robert Fisk: Sim, estou preocupado com isso. Durante a guerra civil no Líbano, entre 1975 e 1995, na qual morreram entre 150 mil e 200 mil pessoas, no mínimo, muitos libaneses enviaram suas crianças para a Europa, Canadá, Austrália, América, para serem educados. Eles voltaram e não quiseram viver sob um estado marcado pelo sectarismo. E uma das razões pelas quais a “guerra civil” não se espalhou da Síria para o Líbano é porque os jovens do Líbano não querem viver numa sociedade sectária e dizem isso a seus pais isto. Sejamos justos, eles estão certos. Eu creio que esta é uma sociedade mais bem-formada e diplomática — digo isso no sentido mais interessante e não-ocidental da palavra. Ela ensina que você não nem deve dirigir seu país de acordo com as maiorias, seja a maior religião, a maioria xiita, muçulmana, alauíta, druza, o que quer seja. Creio que essa é a razão pela qual o Líbano ainda não se tornou parte da guerra síria. Mas a guerra síria, como todo conflito entre seitas é algo que pode ser projetado além-fronteiras. Temo que o governo de Damasco, infeliz e vergonhosamente, poderá fazer uso disso.
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