Artigo tirado de http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/copa-2014-como-sociedade-financia-estadios-privados/
O caso exemplar do Atlético Paranaense expõe a “esperta”
engenharia financeira empregada para desviar recursos públicos a
empreendimentos de poucos
Por Ciro Barros e Giulia Afiune, na Publica
É um desafio entender a engenharia financeira montada para arcar com
os custos da reforma da Arena da Baixada, estádio do Atlético Paranaense
e sede dos jogos da Copa do Mundo de 2014 em Curitiba. Para garantir o
evento da FIFA na “cidade-modelo”, como é conhecida a capital
paranaense, articulou-se um modelo de negócios que envolve recursos do
BNDES, do Estado do Paraná, da Prefeitura de Curitiba e do próprio Clube
Atlético Paranaense (CAP) que opera o milagre de transformar dinheiro
público em recursos privados. Um exemplo de como a questão dos
investimentos e do legado da Copa está sendo tratada, de fato, no país.
O enredo começa com o lançamento da Matriz de Responsabilidades, em
13 de janeiro de 2010. Nesse documento, que trata dos investimentos para
a realização da Copa 2014 no Brasil, ficou definido que em Curitiba, o
estádio utilizado seria a Arena da Baixada, que passaria por reformas de
184,6 milhões de reais. O Atlético Paranaense, dono do estádio,
entraria com R$ 113 milhões, o BNDES, com R$ 25 milhões para as obras e
reformas da Arena, e as obras complementares, orçadas em 46,6 milhões de
reais, ficariam a cargo da Prefeitura.
No dia 9 de agosto de 2010, porém, depois de entrevistas do
presidente do Atlético Paranaense, Marcos Malucelli, afirmando que o
clube “não se endividaria por causa da Copa do Mundo”, segundo ele, “de
responsabilidade da cidade e do Governo do Estado”, houve uma reunião
entre o então governador do Paraná, Orlando Pessuti (PMDB); o prefeito
de Curitiba em exercício, Luciano Ducci (PSB); membros da diretoria do
Atlético e representantes dos comitês municipal e estadual da Copa no
Paraná. Ali ficou decidido que o clube teria direito a usar o
instrumento do potencial construtivo, da Prefeitura, para financiar sua
parte nos investimentos.
O potencial construtivo permite que os municípios gerem receitas
adicionais, concedendo licenças especiais de construção, que permitem
exceções às regras de zoneamento dos Planos Diretores Municipais. Por
exemplo, se uma empresa está interessada em erguer um edifício de seis
andares em uma área onde se permite a construção de prédios com, no
máximo, quatro pavimentos, pode comprar certificados desse potencial
construtivo e/ou negociar obras em benefício da cidade como
contrapartida a autorização da prefeitura. Mas, as leis que regulamentam
essas contrapartidas (Estatuto da Cidade e Plano Diretor Municipal) não
são exatamente claras, o que complica na hora de medir se o
investimento compensa os incômodos gerados pela exceção, às vezes
grandes, como no caso de prédios altos em zonas residenciais. Por isso,
além de contrapartidas sociais, são necessárias compensações em relação
ao ônus causado pela flexibilização do zoneamento, a chamada gestão do
solo.
Foi com base no potencial construtivo que a prefeitura, Estado e clube assinaram o convênio 19.275,
publicado no Diário Oficial do Município de Curitiba em 28 de setembro
de 2010. O documento estabelece na segunda cláusula que o valor das
obras do estádio – recalculado para R$ 135 milhões – seria financiado em
três partes de R$ 45 milhões entre governo estadual, municipal e o
Clube Atlético Paranaense
Houve uma redução de investimento por parte do Atlético Paranaense,
pois na cota do clube foram incluídas isenções fiscais e obras que já
haviam sido realizadas. “O estádio do Atlético faltava praticamente um
nível de arquibancada, ele já estava quase todo construído”, explica o
engenheiro Luiz Henrique de Barbosa Jorge, da Comissão de Fiscalização
da Copa 2014 do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR). O
Estado do Paraná também foi contemplado com a permissão de não repassar
diretamente os R$ 45 milhões para a obra do estádio, que poderiam então
ser empregados “na contratação e/ou execução de serviços e obras
necessários para a realização dos jogos”. Quem saiu perdendo mais foi a
Prefeitura de Curitiba, que passou a arcar com dois terços do
investimento (R$ 90 milhões), cedidos na forma do potencial construtivo.
Os valores, mais tarde, seriam reajustados.
Essa arquitetura do dinheiro dependia de leis que a autorizassem e, em novembro de 2010, foi publicada a Lei Municipal 13.620, que instituía os certificados de potencial construtivo adicionais à Arena da Baixada e, em dezembro foi aprovada a Lei Estadual 16.733 autorizando que recursos do tesouro estadual do Paraná fossem empregados na reforma do estádio.
Como, na época, aquela ainda era a “Copa da iniciativa privada”, o
clube teria de oferecer sete contrapartidas: reforçar a parceria do
poder público com as escolinhas de futebol do clube; ceder por cinco
anos uma área correspondente a 50% da sua sede para a instalação da
Secretaria Municipal de Esporte e Lazer (na gestão atual, o nome é
Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude); continuar com uma parceria já
existente com o Instituto Municipal de Turismo, ceder espaços no
estádio – durante 50 meses após a assinatura do convênio - para
realização de eventos de interesse do Estado e município e, permanentes,
para quiosques dos programas “Leve Curitiba” e “Feito Aqui Paraná”, de
fomento ao artesanato; e um camarote ao Estado e outro ao Município na
Arena da Baixada reformada, além de realizar, ao final daquele ano de
2010, um evento com as escolinhas parceiras do clube.
Contrapartidas que depois seriam classificadas como “irrisórias” e
não proporcionais aos 90 milhões de reais que o clube recebeu em
certificados de potencial construtitivo de acordo com a nota lançada em 2012 pelo Comitê Popular em Curitiba.
Na visão do Comitê, além das contrapartidas sociais já serem
desproporcionais, não há nenhuma prevista para amenizar e reduzir o
impacto do potencial construtivo adicional. “O instrumento do solo
criado, base para emissão dos CEPACs [Certificado de Potencial Adicional
de Construção], é um mecanismo de política urbana e deveria se destinar
às estratégias de desenvolvimento econômico e social das cidades,
proteção do patrimônio histórico e ambiental. A manipulação da oferta e
comercialização dessa quantidade de potencial construtivo do Município
pelo CAP/SA constituirá um verdadeiro ‘banco de direitos de construir’,
concentrando o controle do mercado de solo criado de Curitiba e
reproduzindo a especulação”, diz um trecho da nota da organização.
Mãos à obra com dinheiro alheio
Para poder receber os certificados de potencial construtivo da
Prefeitura de Curitiba, o Atlético Paranaense teve de criar uma
Sociedade de Propósito Específico (SPE), a CAP S/A Arena dos
Paranaenses, 98% controlada pelo próprio clube e os outros 2% rateados
entre conselheiros influentes (entre eles, está o atual presidente do
CAP, Mario Celso Petraglia). A SPE foi criada em agosto de 2011, e em
outubro daquele ano, as obras começaram. Detalhe: o convênio
estabelecia, em sua primeira cláusula, que para receber o primeiro
repasse de verbas, era condição sine qua non a desapropriação de
imóveis no entorno da Arena da Baixada, mas enquanto as verbas vieram em
agosto, as desapropriações só começariam depois do Decreto Municipal 1.957, de dezembro, categorizando os imóveis do entorno do estádio como de interesse público.
Em abril de 2012, os custos da reforma em andamento foram atualizados
de R$ 184 milhões para R$ 234 milhões – R$ 123 milhões bancados por um
empréstimo do BNDES, R$ 97 milhões pelo Atlético-PR, além de R$ 14
milhões gastos pela Prefeitura de Curitiba com desapropriações (já está
acordado que o Atlético vai ressarcir esse valor até dezembro de 2014).
Depois, alterou-se o convênio, pela Lei Municipal 14.219.
Aprovada, no dia 28 dezembro de 2012, quando quase já se ouviam os
fogos da virada do ano, a lei reajustou os valores de cessão de
potencial construtivo pela Prefeitura de R$ 90 milhões para R$ 123
milhões. Também foi feito um termo aditivo, elevando o valor do convênio
para cerca de R$ 180 milhões, mais uma vez repartidos – agora com cotas
de R$ 60 milhões – entre Estado, Município e CAP. O Estado continuaria a
cargo de outras obras relacionadas à Copa (e não do estádio), e o
Município repassaria diretamente ao Atlético cerca de R$ 120 milhões em
títulos de potencial construtivo.
Pela engenharia financeira montada, quem contraiu o empréstimo do
BNDES foi o Estado do Paraná, que por sua vez o repassou à Agência de
Fomento do Paraná. O Atlético Paranaense, via CAP S/A, então pediu um
empréstimo à Agência oferecendo como parte da garantia (R$ 90 milhões
dos R$ 120 milhões) os tais títulos de potencial construtivo gerados
pela Prefeitura. Ou seja, como garantia ao empréstimo contraído com o
Estado, o Atlético Paranaense ofereceu recursos que recebeu da
Prefeitura. E, se não pagar, quem arca com o prejuízo é o Município de
Curitiba. E a CAP S/A contraiu outro empréstimo, no valor de R$ 30
milhões, junto à Fomento Paraná no início deste ano. Parte do potencial
construtivo que não entrou como garantia do empréstimo (os R$ 30
milhões adicionais) poderá ser comercializada pelo Atlético Paranaense
diretamente ou pela bolsa de valores, de acordo com o Decreto Municipal 895 de 2013.
O que agrava – e muito – o prejuízo da cidade, como explica o
professor Leandro Franklin, da cadeira de Direitos Humanos do núcleo de
Práticas Jurídicas da UFPR: “A partir do momento que esse potencial
construtivo for jogado no mercado, ele não vai ter nenhum tipo de
regulação por parte da Prefeitura de onde vai ser construído, onde vai
ser utilizado. Quer dizer, vai ter um impacto na gestão do território,
na
organização do território em Curitiba que nem a sociedade civil nem o
governo estão percebendo”.
Clique na imagem abaixo para ver o quadro explicativo
produzido pelo Comitê Popular da Copa em Curitiba sobre a engenharia
financeira da Arena da Baixada. O quadro consta no Dossiê Megaeventos e
Violações de Direitos Humanos em Curitiba, veja aqui o relatório executivo do documento.
“Há todo um desvirtuamento do potencial construtivo e falta
participação popular em todo esse processo”, define Leandro Franklin.
“Primeiro que essa liberação de dinheiro está sendo feita sem consulta
pública, sem a população saber ou participar de nada. Tem gente que acha
que potencial construtivo nem é dinheiro público. Essa gestão do
potencial construtivo gera grandes impactos na cidade. Se isso for
liberado, por exemplo, no bairro do Xaxim [na zona sul de Curitiba], vai
ter um transtorno muito grande ali pelo aumento da população. Por isso
exigimos que o Atlético assuma também uma contrapartida no que diz
respeito à gestão do solo. É preciso se amenizar o ônus que vai ser
gerado na região onde os títulos serão empregados. Se isso for para o
mercado, vai ficar mais difícil”, afirma o professor da UFPR.
De sua parte, o Comitê Popular da Copa em Curitiba pretende entrar
com uma denúncia no Ministério Público nos próximos meses no sentido de
exigir maiores contrapartidas do Atlético Paranaense e de questionar o
uso do potencial construtivo. “O Município está financiando praticamente
tudo, o Atlético entrando com muito pouco, e o Comitê tem uma grande
preocupação com o uso que está se fazendo de instrumentos urbanísticos
como o potencial construtivo”, afirma Luana Coelho, assessora jurídica
da ONG Terra de Direitos, que integra o Comitê Popular da Copa em
Curitiba. “ A lei que criou o potencial construtivo tinha um objetivo
completamente diferente, que era de que esses valores, das vendas de
potencial construtivo, fossem para equipamentos públicos, habitações de
interesse social. Temos uma enorme preocupação com o impacto que isso
pode ter como precedente negativo. Porque afinal, é um investimento
público altíssimo numa obra privada sem nenhuma contrapartida do
privado”.
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