01/09/2011

Zapatero: o derradeiro chimpo dum trangalheiro pós-moderno

Antoni Domènech e G. Buster. Artigo tirado de Sin Permiso (aqui) e traduzido por nós para o galego-português.



Foi de ver e não acreditar: ao candidato socialista Rubalcaba tem-se-lhe ficado, coisa rarísima, cara de tonto. A inopinada decisão do presidente socialista Zapatero de proceder a uma "reforma constitucional" para fixar um topo ao déficit público colheu a quase todo mundo por surpresa. Não ao conservador Rajoy, que além de previamente avisado pelo chefe do governo, conhecia a existência de uma carta do presidente do BCE, Trichet. Na carta, Trichet, com a inestimável colaboração do governador do Banco de Espanha, do exministro de economia Solbes "muito ativo ultimamente" e ainda da atual ministra, Elena Salgado, exigia a Zapatero esta e outras medidas (como o fim da "ultraactividade" na negociação coletiva, ou a prorrogação praticamente indefinida nos prazos dos contratos laborais temporais) em troca da compra em massa de dívida soberana espanhola e italiana nos mercados financeiros secundários. No debate parlamentar, além de recordar que essa iniciativa a propuseram os conservadores do PP faz em um ano em frente à displicente oposição do então ministro Rubalcaba, Rajoy conseguiu, com redobrada troça, pôr em apertos a Zapatero: Tinha ou não tinha carta de Trichet de por médio? Não teve resposta?

A iniciativa de reforma constitucional não podia ser mais inoportuna. Primeiro, porque os "mercados" faz semanas que compreenderam já que as ameaças mais importantes para a eurozona vêm precisamente das políticas procíclicas de austeridade aplicadas pela elite política européia. Segundo, porque quase todo mundo (até os editorialistas de El País!) compreendeu já que o verdadeiro problema da eurozona é o seu péssimo desenho institucional (singularmente, a inexistência de uma autoridade fiscal), não a dívida pública dos PIIGS. E terceiro, porque qualquer possibilidade eleitoral do centro, do centroesquerda e da esquerda em Espanha passa por livrar do suicida corsé de austeridade fiscal procíclica imposto pela incompetente troika dirigente (BCE, FMI, Comissão Européia) ao conjunto da UE e por insistir politicamente, em mudança, na perentoria necessidade de um redesenho radical da arquitetura institucional do continente.

O conteúdo da "reforma constitucional" proposta por procedimento de sumaríssima urgência é talvez o de menos: por tecnicamente impertinente, é seguramente irrelevante. Os prazos manejados para a sua entrada em vigor (2018-2020) fazem dessa reforma inclusive algo ridículo: com a que está a cair e a que vai cair, quem tira que não caia dantes a União Européia? Mas a sua dimensão simbólica é demoledora: depois de suicidar-se politicamente o 10 de maio de 2010, Zapatero parece disposto a afundar também qualquer perspetiva de mínima recuperação eleitoral do PSOE e do candidato Rubalcaba, velho raposo agora atrapado em cepo.

Pensa o zombie político Zapatero mais no seu futuro pessoal que em nenhuma outra coisa, e desde depois mais que no futuro político do seu próprio partido? O verdadeiro é que Espanha é um país com grandes possibilidades para os políticos retirados. As portas giratórias entre o mundo da política e o dos negócios são aqui largas, velozes e venturosas. Não faz falta falar dos expresidentes González (grupo Slim) e Aznar (grupo Murdoch). Josu Jon Imaz é agora presidente de Petronor. O exministro de agricultura Luis Atienza, presidente da Rede Elétrica Espanhola. O exministro de Assuntos Exteriores Josep Piqué, presidente da aerolínea Vueling. O exministro de economia de Zapatero Pedro Solbes, em Enel, proprietária de Endesa, e no banco britânico Barclay. O exministro de economia Carlos Solchaga, presidente da Fundação Euroaméricas. O exministro de previdência Julián García Vargas é agora um homem estreitamente vinculado à Big Pharma. Rafael Domènech, antigo subdirector do Escritório Económico de Moncloa com Zapatero, é agora economista chefe do BBVA para a área de Espanha e Europa. E por terminar em algum sítio: David Taguas passou sem mediações de dirigir o Escritório Económico do presidente Zapatero e de ser membro da Comissão Delegada para Assuntos Económicos do Governo a presidente de SEOPAN, o lobby mais importante a patronal imobiliária (a que alentou a borbulha que rematou por afundar a economia espanhola).

Zapatero era em 2002 um insignificante deputado de províncias, tão disciplinado como mudo parlamentariamente durante anos, quando contra todo o prognóstico chegou a fazer com a secretária geral de um PSOE ainda destroçado pelos escândalos de corrupção e terrorismo de Estado do final do felipismo social-liberal. Quando, também contra todo o prognóstico, chegou em 2004 à presidência do governo do Reino de Espanha, o que os mortais comuns podiam conhecer do ideário político de Zapatero se reduzia praticamente a esta espantosa profissão de fé relativista pós-moderna, digna de Forrest Gamp:
Ideologia significa ideia lógica e em política não há ideias lógicas, há ideias sujeitas a debate que se aceitam em um processo deliberativo, mas nunca pela evidência de uma dedução lógica (...) Se em política não serve a lógica, isto é, se no domínio da organização da convivência não resultam válidos nem o método indutivo nem o método dedutivo, senão tão só a discussão sobre diferentes opções sem fio condutor algum que oriente as premissas e os objectivos, então todo é possível e aceitável, dado que carecemos de princípios, de valores e de argumentos racionais que nos guiem na resolução dos problemas". [Prólogo a Jordi Sevilla: De novo, socialismo, Barcelona, editorial Crítica, 2002]

O autor do livro prologado, o economista Jordi Sevilla, é quem, como recordar-se-á, tinha que ensinar ao candidato Zapatero "economia em duas tardes". De economia segue sem ter aprendido uma palavra. Talvez aprenda, sim, a fazer negócios pessoais. Tão ou mais relevante que isso parece, empero, o seu curriculum de frívolo trangalheiro invertebrado, condescendentemente disposto a se deixar agitar pelos ventos sociais e políticos da hora. Ganhou as suas primeiras eleições aupado pela hora do notável movimento social gerado no Reino de Espanha pela oposição ao "trío açoriano" e da mão, entre outros, de uns sindicatos operários que mostrava uma crescente oposição à política do Governo Aznar. No seu primeiro mandato, Zapatero apresentou-se como um democrata radical, disposto a alargar direitos em todas as direções imaginábeis: direitos sociais, direitos nacionais, direitos civis; inclusive sugeriu um compromisso com uma lei eleitoral mais democrática, menos discriminatória com a esquerda. No seu segundo mandato, e arrastado pela feroz ofensiva contrarreformadora que seguiu ao desplome do capitalismo financiarizado em setembro de 2008, assistimos a uma progressiva e sistémica investida contra todos esses direitos, e em general, contra o sentido comum da esquerda e do centro-esquierda social. A guinda pô-la agora, com a proposta de nada menos que "reforma constitucional" que pretende aprovar por procedimento parlamentar de urgência, evitando -com a refocilada cumplicidade do PP- a sua ratificação popular em referendo.

Nos próximos dias saberemos se o grosso do seu partido, o PSOE, se resigna agonicamente a um descalabro eleitoral sem precedentes o próximo 20 de novembro, ou se há nesse partido ainda vozes minimamente conformes com o sentir da esquerda social, señaladamente, os sindicatos operários e o Movimento do 15 M.


Nenhum comentário: