Está disponível no Brasil uma das obras primas de Dino Buzzati (1906-1972), autor italiano internacionalmente conhecido pelo romance O deserto dos tártaros (1940). Trata-se do Poema em quadrinhosi (Poema a fumetti, 1969), uma lancinante recriação gráfica e textual da descida de Orfeu aos infernos à procura de sua amada Eurídice. Dessa reunião entre grafismo e um texto poeticamente apuradíssimo nasceu uma das mais originais recriações do mito órfico e uma das mais instigantes viagens críticas nos meandros das estruturas políticas e culturais da alta modernidade.
Ao que parece, a forma encontrada por Buzzati para se expressar é fruto de um profundo dilaceramento do criador quanto aos materiais que escolhe para dar vazão à matéria poética. Longe de ser um mero texto ilustrado, Poema em quadrinhos é um texto de grande densidade poética articulado, de maneira magistral, a um registro gráfico que não é apenas legenda imagética do texto, mas que funciona como uma instância outra da própria poesia que a criação buzzatiana emana. Nesse sentido, a obra também poderá ser lida como um grito órfico (pela possibilidade de resistência crítica da arte) no meio da pasmaceira estética da indústria cultural. A fórmula de Buzzati, entre texto e imagem, surge, talvez, do dilema que foi indicado por ele mesmo em um livro de entrevistas, intitulado Dino Buzzati, pitore (1969). Como aparece reproduzido na edição brasileira, o artista afirma sobre o seu metier: “Sou um pintor que, por hobby, durante um período infelizmente bastante longo, fez-se também escritor e jornalista. O mundo, no entanto, crê que seja o contrário e não ‘pode’ levar a sério minhas pinturas”.
Levando a sério a empreitada gráfica e textual de Buzzati no Poema em quadrinhos, o leitor poderá fruir a eficácia estética atingida pelo autor na combinação das duas linguagens, que, na obra, diga-se de passagem, funcionam como uma terceira e potente linguagem artística, tamanha é a integração tensionada entre elas. E não poderia ser diferente, uma vez que a escolha do próprio tema impõe um desafio formal ao autor. Trata-se do velho mito de Orfeu que desce aos infernos para resgatar a amada Eurídice. Adaptado para a realidade contemporânea, os personagens centrais são nomeados como Orfi, um jovem cantor pop, e Eura, sua amada que desce ao inferno. Este nada mais é do que uma casa misteriosa e fantasmática na Via Saterna, em Milão, localizada em frente à janela de Orfi. Um dia, o cantor vê entrar na casa um vulto que lhe parecer ser o de Eura, que ultrapassa a porta, como se fosse um espírito. Posteriormente, Orfi sabe que Eura estava morta e decide entrar na casa-inferno para resgatar sua amada. Depois de uma série de acontecimentos, é dada a Orfi a chance de cantar uma canção capaz de emocionar o reino dos mortos o que lhe dará a oportunidade de encontrar a sua amada e retornar ao mundo dos vivos.
Não será necessário desenvolver aqui mais o enredo para que saibamos o quão fiel à narrativa mítica de Orfeu é o Poema em quadrinhos. Nele revemos algumas das unidades míticas que fazem a força da lenda: o cantor/poeta/artista (dono de um poder impotente); a amada (personificação de um ideal de beleza inatingível, ou irreconciliável com a vida); o inferno (sua reprodução pelo avesso do mundo dos vivos, revelando não como é a morte, mas como a vida é grave). Esses, por assim dizer, mitemas essenciais da narrativa órfica, que poderiam ser lidos como meros dados atemporais atualizados, sofrem uma filtragem contemporânea que possibilita reconhecer os câmbios sofridos por eles na intervenção artística buzzatiana, a qual tem como resultado a revelação de uma dolorida reverberação, no molde mítico utilizado, da história contemporânea. Assim, seria apropriado dizer que, no Poema em quadrinhos, não é a atualização do mito grego o dado decisivo para o resultado estético. Nesse caso, seria melhor considerar a forma como restos desse mito (e de outros mitos criados pela modernidade) se recompõem de acordo com novas demandas expressivas, propondo um resultado final de atualização da nossa visão do contemporâneo, sobretudo através das filtragens propostas pelas categorias de “canto”, “beleza” e “inferno”. Entre essas categorias, aquela que assume um potencial de aguda atualidade é a do inferno, transformado no próprio mundo da fantasmagoria burocrática da alta modernidade ocidental. Uma burocracia que é chefiada pelo diabo da guarda, na verdade uma jaqueta falante que controla as entradas e saídas do inferno. Uma burocracia que, além de tudo, é posta em prática por moças sedutoras que, na verdade, são meros simulacros do mundo artisticamente rebaixado da pornografia.
Todavia, a citação do mito de Orfeu, no Poema em quadrinhos, pode ser lida como uma espécie de “citação matricial”, pois o conjunto das pouco mais de duzentas páginas é um verdadeiro caleidoscópio de referências imagéticas e textuais, um verdadeiro inventário de relíquias da grande tradição de representação pela via pictórica que a modernidade legou à história da arte. Apenas para lembrar alguns nomes conhecidos “citados” por Buzzati em sua obra, citemos os pintores Caspar David Friedrich (p.110) e Salvador Dalí (p.31) e os cineastas F.W. Mural (p.130) e Federico Fellini (pp.192-5). Tais citações são já parte do movimento formal de problematização das categorias de arte, beleza e mundo administrado. Além dessas citações, ficam claras referências às próprias obras de Dino Buzzati, à pop art. americana, à arte surrealista, ao expressionismo e também aos quadrinhos eróticos tão em voga na década de sessenta. Ou seja, o Poema em quadrinhos é um grande emaranhado de referências, um entroncamento de linguagens, do estilo alto ao baixo, organizados em torno de um mito em cujo centro simbólico encontra-se a ideia de eficácia ou de função do canto.
Tal lógica da citação, que cria um verdadeiro sistema de simulacros sobrepostos, sugere a força de autoquestionamento que tem a forma artística do quadrinho buzzatiano. Noutros termos, poderíamos dizer que a máquina de citações que é o Poema em quadrinhos atesta o desgaste das formas artísticas clássicas num mundo em que o espetáculo domina, uma vez que as referências não são meras reproduções celebrativas. Elas são manejadas sob um prisma disfórico, que revela algo de um sentimento do criador diante de um mundo em que a arte não poderá talvez criar nada de novo. Então, o inferno do criador de arte não seria a miríade de citações que o impedem de representar o mundo relegando-o a uma espetacular mas débil representação de um fantasma da arte? Desta pergunta poderia derivar uma outra, de alcance mais amplo: pode o produto da indústria cultural, valendo-se de uma linguagem potencializada e estimulada por essa mesma indústria, transformar-se em modelo estético crítico ou refratário a essa mesma lógica?
Minha impressão é a de que a abordagem dessa possibilidade é determinante para o valor estético de Poema em quadrinhos, pois esta via, a do autoquestionamento alimentado pelo combustível formal, é aquela que nos faz ver como a obra evidencia dilemas profundos da arte na contemporaneidade. Vejamos, pois, alguns elementos que podem ajudar a indicar alguns caminhos exegéticos.
Para começar, relembro um trecho que entendo ser fundamental para a interpretação do Poema em quadrinhos como forma artística que problematiza os destinos da arte na contemporaneidade. Trata-se da página 40, e o momento é aquele em que o personagem Orfi recebe a notícia de que Eura havia morrido. Orfi pergunta sobre os funerais que vê passar na rua: “…Quem são todos esses mortos?” A resposta vem de um homem sério, de rosto indefinido e cigarro entre os lábios: “Não são./ É. É sempre/ o funeral/ dela/ como você deveria saber.” No contexto da narrativa, “ela” refere-se a Eura. Na leitura que temos empreendido até aqui, Eura é a arte, a beleza. Não seria, pois, despropositado pensarmos que o Poema em quadrinhos exibe pela via da máquina de citações que gera um desfile de pequenos funerais da arte, um desfile em que as imagens da arte a substituem, assim como o fantasma de Eura é perseguido por Orfi, tendo em vista ausência de Eura viva.
Esse desfile funeral da arte e de suas velhas funções, no entanto, não é observado a partir de uma perspectiva saudosista ou conservadora. É a negatividade do olhar dilacerado que faz o Poema em quadrinhos sustentar-se como produto da lógica da indústria cultural que abre um arco de tensões que podem questionar as funções da arte dentro dessa mesma lógica. O principal sintoma desse olhar dilacerado pode ser captado na densidade do tempo narrativo da obra. Essa é a sua grande força motriz: o modo como o tempo se organiza no Poema em quadrinhos instaura uma dimensão crítica que atravessa a sua máquina de citações. O tempo na obra de Buzzati tem dois planos de execução. Um deles é linear/horizontal e caminha para o desfecho da história do mito, ou seja, a descida de Orfi/Orfeu ao inferno em busca de Eurídice. O outro plano de execução do tempo é dispersivo/lírico/crítico. Aí está o vigor reativo de Poema em quadrinhos: como em Dalí, o tempo linear está à beira da liquefação, aderindo a planos de simultaneidade que acabam intensificando a expressão da confusão e do desespero da busca de Orfi.
Assim arma-se a equação central do livro, se Orfi caminha linearmente em busca de Eura, o faz carregando “nas costas” referências do mundo da arte e da indústria cultural. A iminência de dispersão da sua narrativa no meio da miríade de citações que a obra realiza é a iminência da perda de função ou de valor estético do trabalho do artista. O desespero de Orfi/Buzzati é o desespero da liquefação do belo. Restaria ao artista, no inferno que é o campo artístico contemporâneo, replicar fantasmas, restos ou relíquias dispersas no mundo do espetáculo, tornados todos eles mercadoria rasa? Poema em quadrinhos propõe uma solução para isso, que está na formalização, nas estruturas mais elementares do produto cultural, da sua inexorável condição de mercadoria. No caso de Buzzati, o destino de ser inexoravelmente feixe fantasmático de citações. A solução buzzatiana passa ainda pelo dilaceramento que marca o movimento de desrecalque dessa situação da arte no contemporâneo. Considerando que a arte persiste na alta modernidade como um fantasma de si mesma, a busca de Orfi é metáfora da busca do grande artista: a de reativar o condão que a arte tem (tinha?) de representar a totalidade social. Repor a vida em algo que é contemporaneamente quase só aura, quase que apenas uma saudosa imagem de si: eis o desafio de Orfeu. Eis também o desafio que Buzzati enfrenta ao nos apresentar, com inflexão crítica, as imagens de um inferno contemporâneo.
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i Poema em quadrinhos saiu no Brasil pela editora CosacNaify em 2010. A tradução do italiano é de Eduardo Sterzi.
Ao que parece, a forma encontrada por Buzzati para se expressar é fruto de um profundo dilaceramento do criador quanto aos materiais que escolhe para dar vazão à matéria poética. Longe de ser um mero texto ilustrado, Poema em quadrinhos é um texto de grande densidade poética articulado, de maneira magistral, a um registro gráfico que não é apenas legenda imagética do texto, mas que funciona como uma instância outra da própria poesia que a criação buzzatiana emana. Nesse sentido, a obra também poderá ser lida como um grito órfico (pela possibilidade de resistência crítica da arte) no meio da pasmaceira estética da indústria cultural. A fórmula de Buzzati, entre texto e imagem, surge, talvez, do dilema que foi indicado por ele mesmo em um livro de entrevistas, intitulado Dino Buzzati, pitore (1969). Como aparece reproduzido na edição brasileira, o artista afirma sobre o seu metier: “Sou um pintor que, por hobby, durante um período infelizmente bastante longo, fez-se também escritor e jornalista. O mundo, no entanto, crê que seja o contrário e não ‘pode’ levar a sério minhas pinturas”.
Levando a sério a empreitada gráfica e textual de Buzzati no Poema em quadrinhos, o leitor poderá fruir a eficácia estética atingida pelo autor na combinação das duas linguagens, que, na obra, diga-se de passagem, funcionam como uma terceira e potente linguagem artística, tamanha é a integração tensionada entre elas. E não poderia ser diferente, uma vez que a escolha do próprio tema impõe um desafio formal ao autor. Trata-se do velho mito de Orfeu que desce aos infernos para resgatar a amada Eurídice. Adaptado para a realidade contemporânea, os personagens centrais são nomeados como Orfi, um jovem cantor pop, e Eura, sua amada que desce ao inferno. Este nada mais é do que uma casa misteriosa e fantasmática na Via Saterna, em Milão, localizada em frente à janela de Orfi. Um dia, o cantor vê entrar na casa um vulto que lhe parecer ser o de Eura, que ultrapassa a porta, como se fosse um espírito. Posteriormente, Orfi sabe que Eura estava morta e decide entrar na casa-inferno para resgatar sua amada. Depois de uma série de acontecimentos, é dada a Orfi a chance de cantar uma canção capaz de emocionar o reino dos mortos o que lhe dará a oportunidade de encontrar a sua amada e retornar ao mundo dos vivos.
Não será necessário desenvolver aqui mais o enredo para que saibamos o quão fiel à narrativa mítica de Orfeu é o Poema em quadrinhos. Nele revemos algumas das unidades míticas que fazem a força da lenda: o cantor/poeta/artista (dono de um poder impotente); a amada (personificação de um ideal de beleza inatingível, ou irreconciliável com a vida); o inferno (sua reprodução pelo avesso do mundo dos vivos, revelando não como é a morte, mas como a vida é grave). Esses, por assim dizer, mitemas essenciais da narrativa órfica, que poderiam ser lidos como meros dados atemporais atualizados, sofrem uma filtragem contemporânea que possibilita reconhecer os câmbios sofridos por eles na intervenção artística buzzatiana, a qual tem como resultado a revelação de uma dolorida reverberação, no molde mítico utilizado, da história contemporânea. Assim, seria apropriado dizer que, no Poema em quadrinhos, não é a atualização do mito grego o dado decisivo para o resultado estético. Nesse caso, seria melhor considerar a forma como restos desse mito (e de outros mitos criados pela modernidade) se recompõem de acordo com novas demandas expressivas, propondo um resultado final de atualização da nossa visão do contemporâneo, sobretudo através das filtragens propostas pelas categorias de “canto”, “beleza” e “inferno”. Entre essas categorias, aquela que assume um potencial de aguda atualidade é a do inferno, transformado no próprio mundo da fantasmagoria burocrática da alta modernidade ocidental. Uma burocracia que é chefiada pelo diabo da guarda, na verdade uma jaqueta falante que controla as entradas e saídas do inferno. Uma burocracia que, além de tudo, é posta em prática por moças sedutoras que, na verdade, são meros simulacros do mundo artisticamente rebaixado da pornografia.
Todavia, a citação do mito de Orfeu, no Poema em quadrinhos, pode ser lida como uma espécie de “citação matricial”, pois o conjunto das pouco mais de duzentas páginas é um verdadeiro caleidoscópio de referências imagéticas e textuais, um verdadeiro inventário de relíquias da grande tradição de representação pela via pictórica que a modernidade legou à história da arte. Apenas para lembrar alguns nomes conhecidos “citados” por Buzzati em sua obra, citemos os pintores Caspar David Friedrich (p.110) e Salvador Dalí (p.31) e os cineastas F.W. Mural (p.130) e Federico Fellini (pp.192-5). Tais citações são já parte do movimento formal de problematização das categorias de arte, beleza e mundo administrado. Além dessas citações, ficam claras referências às próprias obras de Dino Buzzati, à pop art. americana, à arte surrealista, ao expressionismo e também aos quadrinhos eróticos tão em voga na década de sessenta. Ou seja, o Poema em quadrinhos é um grande emaranhado de referências, um entroncamento de linguagens, do estilo alto ao baixo, organizados em torno de um mito em cujo centro simbólico encontra-se a ideia de eficácia ou de função do canto.
Tal lógica da citação, que cria um verdadeiro sistema de simulacros sobrepostos, sugere a força de autoquestionamento que tem a forma artística do quadrinho buzzatiano. Noutros termos, poderíamos dizer que a máquina de citações que é o Poema em quadrinhos atesta o desgaste das formas artísticas clássicas num mundo em que o espetáculo domina, uma vez que as referências não são meras reproduções celebrativas. Elas são manejadas sob um prisma disfórico, que revela algo de um sentimento do criador diante de um mundo em que a arte não poderá talvez criar nada de novo. Então, o inferno do criador de arte não seria a miríade de citações que o impedem de representar o mundo relegando-o a uma espetacular mas débil representação de um fantasma da arte? Desta pergunta poderia derivar uma outra, de alcance mais amplo: pode o produto da indústria cultural, valendo-se de uma linguagem potencializada e estimulada por essa mesma indústria, transformar-se em modelo estético crítico ou refratário a essa mesma lógica?
Minha impressão é a de que a abordagem dessa possibilidade é determinante para o valor estético de Poema em quadrinhos, pois esta via, a do autoquestionamento alimentado pelo combustível formal, é aquela que nos faz ver como a obra evidencia dilemas profundos da arte na contemporaneidade. Vejamos, pois, alguns elementos que podem ajudar a indicar alguns caminhos exegéticos.
Para começar, relembro um trecho que entendo ser fundamental para a interpretação do Poema em quadrinhos como forma artística que problematiza os destinos da arte na contemporaneidade. Trata-se da página 40, e o momento é aquele em que o personagem Orfi recebe a notícia de que Eura havia morrido. Orfi pergunta sobre os funerais que vê passar na rua: “…Quem são todos esses mortos?” A resposta vem de um homem sério, de rosto indefinido e cigarro entre os lábios: “Não são./ É. É sempre/ o funeral/ dela/ como você deveria saber.” No contexto da narrativa, “ela” refere-se a Eura. Na leitura que temos empreendido até aqui, Eura é a arte, a beleza. Não seria, pois, despropositado pensarmos que o Poema em quadrinhos exibe pela via da máquina de citações que gera um desfile de pequenos funerais da arte, um desfile em que as imagens da arte a substituem, assim como o fantasma de Eura é perseguido por Orfi, tendo em vista ausência de Eura viva.
Esse desfile funeral da arte e de suas velhas funções, no entanto, não é observado a partir de uma perspectiva saudosista ou conservadora. É a negatividade do olhar dilacerado que faz o Poema em quadrinhos sustentar-se como produto da lógica da indústria cultural que abre um arco de tensões que podem questionar as funções da arte dentro dessa mesma lógica. O principal sintoma desse olhar dilacerado pode ser captado na densidade do tempo narrativo da obra. Essa é a sua grande força motriz: o modo como o tempo se organiza no Poema em quadrinhos instaura uma dimensão crítica que atravessa a sua máquina de citações. O tempo na obra de Buzzati tem dois planos de execução. Um deles é linear/horizontal e caminha para o desfecho da história do mito, ou seja, a descida de Orfi/Orfeu ao inferno em busca de Eurídice. O outro plano de execução do tempo é dispersivo/lírico/crítico. Aí está o vigor reativo de Poema em quadrinhos: como em Dalí, o tempo linear está à beira da liquefação, aderindo a planos de simultaneidade que acabam intensificando a expressão da confusão e do desespero da busca de Orfi.
Assim arma-se a equação central do livro, se Orfi caminha linearmente em busca de Eura, o faz carregando “nas costas” referências do mundo da arte e da indústria cultural. A iminência de dispersão da sua narrativa no meio da miríade de citações que a obra realiza é a iminência da perda de função ou de valor estético do trabalho do artista. O desespero de Orfi/Buzzati é o desespero da liquefação do belo. Restaria ao artista, no inferno que é o campo artístico contemporâneo, replicar fantasmas, restos ou relíquias dispersas no mundo do espetáculo, tornados todos eles mercadoria rasa? Poema em quadrinhos propõe uma solução para isso, que está na formalização, nas estruturas mais elementares do produto cultural, da sua inexorável condição de mercadoria. No caso de Buzzati, o destino de ser inexoravelmente feixe fantasmático de citações. A solução buzzatiana passa ainda pelo dilaceramento que marca o movimento de desrecalque dessa situação da arte no contemporâneo. Considerando que a arte persiste na alta modernidade como um fantasma de si mesma, a busca de Orfi é metáfora da busca do grande artista: a de reativar o condão que a arte tem (tinha?) de representar a totalidade social. Repor a vida em algo que é contemporaneamente quase só aura, quase que apenas uma saudosa imagem de si: eis o desafio de Orfeu. Eis também o desafio que Buzzati enfrenta ao nos apresentar, com inflexão crítica, as imagens de um inferno contemporâneo.
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i Poema em quadrinhos saiu no Brasil pela editora CosacNaify em 2010. A tradução do italiano é de Eduardo Sterzi.
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