Ontem foi uma segunda-feira atípica em Barcelona. Ao menos, para os manifestantes que se mantiveram acampados na Praça Catalunya, sem se importar com as obrigações empurradas com o início de cada semana.
Também adotei a quebra da monotonia diária e passei tarde e noite observando a movimentação que ainda persistia no local dos protestos contra a política socioeconômica dos países europeus diante da crise financeira. Porém, aquele cenário composto por tendas onde funcionam comissões de trabalho e alojamentos improvisados se, para muitos, poderia parecer uma situação compatível com uma greve, para outros, convertia-se em só mais uma oportunidade de trabalho.
Foi o que pude observar em minha chegada à praça, por volta das 16h00. O lugar estava limpo, organizado, com quantidade de pessoas inferior à observada no dia anterior que, por ter sido fim de semana, havia se convertido numa grande festa. Muitos agora estavam ali só de passagem, mas outros tantos também já se preparavam para reunir-se em grupos de discussão de ideias e propostas programadas para o fim da tarde.
No entanto, o que mais me chamou a atenção de início foi a presença de uma banca no centro da praça, que vendia água, salgadinhos e refrigerante. Aquele elemento dava à mobilização certo ar de feira, e essa impressão era alimentada pela passagem de ambulantes, aqui conhecidos como “Paqui”, por serem a maioria originários do Paquistão. Eles vendiam bocadillos, cerveja e coca-cola, e não transpareciam compartilhar com os demais tantas esperanças.
“Hoje já se esperava que haveria menos movimentação porque muitos têm que voltar ao trabalho”, disse Raul, um dos colaboradores com a Comissão Internacional, responsável por traduzir a carta de princípios do movimento a outras línguas e também estabelecer contato com a imprensa mundial. Ele, por sorte, havia sido liberado do estágio numa ONG para desenvolver as atividades em favor da manifestação, mas deixou claro estar bem consciente de que parte da sociedade ainda está ausente dos acontecimentos da praça. E isso se revelou no fato de muitos terem votado no domingo a favor de candidatos de direita aos governos municipais e autônomos.
Por isso, na opinião dele, ainda que os resultados das eleições sejam questionáveis enquanto representação da opinião pública, tampouco essa realidade justifica o pedido de que a votação seja considerada inválida por pessoas que se recusaram a ir às urnas.
Assim, o sentimento de todos os indignados ainda ativos nas funções desenvolvidas com o objetivo de manter o movimento, é o de trabalhar e resistir, ainda que os rumos das ações sejam os mais incertos. E essa falta de visão clara do futuro pode, inclusive, acirrar-se nos próximos dias, já que o vencedor das eleições municipais de Barcelona, Xavier Trias, do partido CiU, de direita, já ofereceu apoio ao atual prefeito, Jordi Hereu (do PSC, partido socialista), para que, antes de sua posse prevista para o dia 11 de junho, seja dissolvido o acampamento da Praça Catalunya (informação do jornal El Periódico publicada ontem, segunda-feira).
O novo governante de Barcelona teria dito que seu partido tentará estabelecer contato com os acampados, “mas toda negociação será difícil, por se tratar de um movimiento espontâneo, em que não se sabe quem manda ali”.
E, de fato, a intenção do movimento, muito interessante por sinal, é não ter líderes, ambora isso implique em maior dificuldade para a definição de um plano de ação consensuado. As pessoas estão de acordo sobre o que não querem (a retalhada dos direitos sociais, a falta de participação popular nas decisões políticas e a sobreposição dos interesses de grupos económicos e bancos ao bem público), mas, no momento de propor soluções, esbarram em discordâncias internas que são a maior riqueza do processo, mas estão longe de repercutir em reivindicações sociais claras, consideradas a única finalidade de uma revolta social pelos mais práticos.
Ainda assim, a partir das 19h00, diversos debates foram reorganizados com o objetivo de pensar em maneiras concretas de transformar o modelo atual de sociedade. Os temas eram os mais variados: economia, cultura, educação, diversidade funcional (a favor da maior adaptação dos espaços públicos às pessoas com necessidades especiais), feminismo indignado, auto-organização, e até mesmo habitação.
Dentro do grupo que discutia esse último tema, havia uma ampla maioria favorável às chamadas “ocupas”, tomada de prédios públicos ou privados, que estejam subutilizados, pelo povo, como forma de combater a especulação imobiliária e garantir moradia digna a quem necessita. No entanto, as ideias ali lançadas se dividiam entre a defesa de medidas mais drásticas como a ocupação de prédios sob o poder de empresas imobiliárias especuladoras, e a opinião de que as “ocupas” são medidas selvagens, a serem adotadas somente em último caso. Chegou-se até a levantar a hipótese de que seja reivindicada uma lei para regulamentar a ocupação de imóveis inabitados, proposta que faria rir qualquer dos anarquistas afastados dessa discussão, que divulgavam sua maneira de pensar em outra tenda.
Logo ao lado, uma outra roda se formou para um debate mais genérico sobre política. A maioria dos participantes era jovem de até 30 anos, ou de idade já superior aos 60. Todos defendiam com unanimidade a manutenção do uso de todas as praças da cidade como espaço de discussão pública e livre realização de atividades. “Não temos que pedir permissão para estar aqui, num espaço que é público, refletindo sobre um mundo melhor. Também dizem que estamos destruindo a praça com a nossa horta. Mas, essa ação foi discutida aqui entre todos. E se o povo quer ter batatas nos canteiros ao invés de rosas, é ele quem decide”, disse o jovem que moderava a conversa.
A fala foi ovacionada, assim como o comentário de um imigrante africano, a favor de que a FIFA seja pressionada a exigir de todos os países que erradiquem sua pobreza como condição para que possam sediar jogos mundiais. Ao final dos debates sobre assuntos específicos, de novo, teve início o panelaço habitual marcado para as 21h00.
Enquanto o povo posava para fotos portando cartazes onde se lia “Seguimos aqui”, um telão projetava vídeos com mensagens contra o imperialismo norte-americano e as empresas promotoras da insegurança alimentar, a partir da venda de agrotóxicos e produtos transgênicos.
Em seguida, pouco antes da assembleia geral, anunciaram que o filho de Bob Marley estava ali para tocar em apoio à manifestação. Depois de apresentar três músicas do saudoso Bob acompanhadas com entusiasmo pelo público (“Get up, stand up” era ouvida em coro), o artista foi substituído pelos indignados que pediam a palavra.
O coordenador da grande assembleia, que reuniu, de novo, centenas de pessoas, pedia que o espaço fosse usado para o compartilhamento de propostas concretas, mas, dentre as participações, houve de tudo: desde reclamação do consumo de cigarro, maconha e cerveja pelos manifestantes, até um aspirante a artista que cantou, ao invés de falar, mas foi vaiado.
Porém, dali saíram também comentários interessantes, como a necessidade de que a praça seja vista como meio, e não como fim da atual busca por revolução. “Precisamos agir para além desse espaço. O acampamento é provisório, e temos que levar tudo o que construímos aqui a outros lugares”.
Em seguida, uma garota toma o microfone para avisar que os jovens do País Vasco haviam se somado às manifestações. A notícia foi aplaudida e, a mim, causou comoção diante do sinal de que a vontade de transformar está rompendo antigas visões separatistas. E esse sentimento também ultrapassa fronteiras. Um grupo de jovens paulistanos organiza uma manifestação de solidariedade aos protestos espanhóis no Vão do Masp, marcada para a próxima sexta-feira. E há também mobilizações acontecendo em Nova Iorque, Nottingham, Lisboa, Padova, Turin, Coimbra, Porto, Toulouse, Montpellier, Perpignan, Bruxelas, Berlin, Buenos Aires, Dublin, Florência, Londres e México.
Todas estas ações são representativas, mas talvez fossem mais revolucionárias, se combinadas com uma ação proposta por um dos manifestantes da Plaza Catalunya ontem, durante a assembleia geral: que todos tirem todo o dinheiro que têm depositado nos bancos espanhóis, no mesmo dia. Tal medida drástica, certamente, arrancaria do sistema parte do seu poder imaginário. É esperar para ver se os protagonistas da primavera espanhola estão mesmo dispostos a se despir das próprias ilusões.
Também adotei a quebra da monotonia diária e passei tarde e noite observando a movimentação que ainda persistia no local dos protestos contra a política socioeconômica dos países europeus diante da crise financeira. Porém, aquele cenário composto por tendas onde funcionam comissões de trabalho e alojamentos improvisados se, para muitos, poderia parecer uma situação compatível com uma greve, para outros, convertia-se em só mais uma oportunidade de trabalho.
Foi o que pude observar em minha chegada à praça, por volta das 16h00. O lugar estava limpo, organizado, com quantidade de pessoas inferior à observada no dia anterior que, por ter sido fim de semana, havia se convertido numa grande festa. Muitos agora estavam ali só de passagem, mas outros tantos também já se preparavam para reunir-se em grupos de discussão de ideias e propostas programadas para o fim da tarde.
No entanto, o que mais me chamou a atenção de início foi a presença de uma banca no centro da praça, que vendia água, salgadinhos e refrigerante. Aquele elemento dava à mobilização certo ar de feira, e essa impressão era alimentada pela passagem de ambulantes, aqui conhecidos como “Paqui”, por serem a maioria originários do Paquistão. Eles vendiam bocadillos, cerveja e coca-cola, e não transpareciam compartilhar com os demais tantas esperanças.
“Hoje já se esperava que haveria menos movimentação porque muitos têm que voltar ao trabalho”, disse Raul, um dos colaboradores com a Comissão Internacional, responsável por traduzir a carta de princípios do movimento a outras línguas e também estabelecer contato com a imprensa mundial. Ele, por sorte, havia sido liberado do estágio numa ONG para desenvolver as atividades em favor da manifestação, mas deixou claro estar bem consciente de que parte da sociedade ainda está ausente dos acontecimentos da praça. E isso se revelou no fato de muitos terem votado no domingo a favor de candidatos de direita aos governos municipais e autônomos.
Por isso, na opinião dele, ainda que os resultados das eleições sejam questionáveis enquanto representação da opinião pública, tampouco essa realidade justifica o pedido de que a votação seja considerada inválida por pessoas que se recusaram a ir às urnas.
Assim, o sentimento de todos os indignados ainda ativos nas funções desenvolvidas com o objetivo de manter o movimento, é o de trabalhar e resistir, ainda que os rumos das ações sejam os mais incertos. E essa falta de visão clara do futuro pode, inclusive, acirrar-se nos próximos dias, já que o vencedor das eleições municipais de Barcelona, Xavier Trias, do partido CiU, de direita, já ofereceu apoio ao atual prefeito, Jordi Hereu (do PSC, partido socialista), para que, antes de sua posse prevista para o dia 11 de junho, seja dissolvido o acampamento da Praça Catalunya (informação do jornal El Periódico publicada ontem, segunda-feira).
O novo governante de Barcelona teria dito que seu partido tentará estabelecer contato com os acampados, “mas toda negociação será difícil, por se tratar de um movimiento espontâneo, em que não se sabe quem manda ali”.
E, de fato, a intenção do movimento, muito interessante por sinal, é não ter líderes, ambora isso implique em maior dificuldade para a definição de um plano de ação consensuado. As pessoas estão de acordo sobre o que não querem (a retalhada dos direitos sociais, a falta de participação popular nas decisões políticas e a sobreposição dos interesses de grupos económicos e bancos ao bem público), mas, no momento de propor soluções, esbarram em discordâncias internas que são a maior riqueza do processo, mas estão longe de repercutir em reivindicações sociais claras, consideradas a única finalidade de uma revolta social pelos mais práticos.
Ainda assim, a partir das 19h00, diversos debates foram reorganizados com o objetivo de pensar em maneiras concretas de transformar o modelo atual de sociedade. Os temas eram os mais variados: economia, cultura, educação, diversidade funcional (a favor da maior adaptação dos espaços públicos às pessoas com necessidades especiais), feminismo indignado, auto-organização, e até mesmo habitação.
Dentro do grupo que discutia esse último tema, havia uma ampla maioria favorável às chamadas “ocupas”, tomada de prédios públicos ou privados, que estejam subutilizados, pelo povo, como forma de combater a especulação imobiliária e garantir moradia digna a quem necessita. No entanto, as ideias ali lançadas se dividiam entre a defesa de medidas mais drásticas como a ocupação de prédios sob o poder de empresas imobiliárias especuladoras, e a opinião de que as “ocupas” são medidas selvagens, a serem adotadas somente em último caso. Chegou-se até a levantar a hipótese de que seja reivindicada uma lei para regulamentar a ocupação de imóveis inabitados, proposta que faria rir qualquer dos anarquistas afastados dessa discussão, que divulgavam sua maneira de pensar em outra tenda.
Logo ao lado, uma outra roda se formou para um debate mais genérico sobre política. A maioria dos participantes era jovem de até 30 anos, ou de idade já superior aos 60. Todos defendiam com unanimidade a manutenção do uso de todas as praças da cidade como espaço de discussão pública e livre realização de atividades. “Não temos que pedir permissão para estar aqui, num espaço que é público, refletindo sobre um mundo melhor. Também dizem que estamos destruindo a praça com a nossa horta. Mas, essa ação foi discutida aqui entre todos. E se o povo quer ter batatas nos canteiros ao invés de rosas, é ele quem decide”, disse o jovem que moderava a conversa.
A fala foi ovacionada, assim como o comentário de um imigrante africano, a favor de que a FIFA seja pressionada a exigir de todos os países que erradiquem sua pobreza como condição para que possam sediar jogos mundiais. Ao final dos debates sobre assuntos específicos, de novo, teve início o panelaço habitual marcado para as 21h00.
Enquanto o povo posava para fotos portando cartazes onde se lia “Seguimos aqui”, um telão projetava vídeos com mensagens contra o imperialismo norte-americano e as empresas promotoras da insegurança alimentar, a partir da venda de agrotóxicos e produtos transgênicos.
Em seguida, pouco antes da assembleia geral, anunciaram que o filho de Bob Marley estava ali para tocar em apoio à manifestação. Depois de apresentar três músicas do saudoso Bob acompanhadas com entusiasmo pelo público (“Get up, stand up” era ouvida em coro), o artista foi substituído pelos indignados que pediam a palavra.
O coordenador da grande assembleia, que reuniu, de novo, centenas de pessoas, pedia que o espaço fosse usado para o compartilhamento de propostas concretas, mas, dentre as participações, houve de tudo: desde reclamação do consumo de cigarro, maconha e cerveja pelos manifestantes, até um aspirante a artista que cantou, ao invés de falar, mas foi vaiado.
Porém, dali saíram também comentários interessantes, como a necessidade de que a praça seja vista como meio, e não como fim da atual busca por revolução. “Precisamos agir para além desse espaço. O acampamento é provisório, e temos que levar tudo o que construímos aqui a outros lugares”.
Em seguida, uma garota toma o microfone para avisar que os jovens do País Vasco haviam se somado às manifestações. A notícia foi aplaudida e, a mim, causou comoção diante do sinal de que a vontade de transformar está rompendo antigas visões separatistas. E esse sentimento também ultrapassa fronteiras. Um grupo de jovens paulistanos organiza uma manifestação de solidariedade aos protestos espanhóis no Vão do Masp, marcada para a próxima sexta-feira. E há também mobilizações acontecendo em Nova Iorque, Nottingham, Lisboa, Padova, Turin, Coimbra, Porto, Toulouse, Montpellier, Perpignan, Bruxelas, Berlin, Buenos Aires, Dublin, Florência, Londres e México.
Todas estas ações são representativas, mas talvez fossem mais revolucionárias, se combinadas com uma ação proposta por um dos manifestantes da Plaza Catalunya ontem, durante a assembleia geral: que todos tirem todo o dinheiro que têm depositado nos bancos espanhóis, no mesmo dia. Tal medida drástica, certamente, arrancaria do sistema parte do seu poder imaginário. É esperar para ver se os protagonistas da primavera espanhola estão mesmo dispostos a se despir das próprias ilusões.
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