02/08/2010

Água como mercadoria

Frei Betto

O capitalismo mercantiliza os bens da natureza, os frutos do trabalho humano, todos os aspectos de nossa vida. Aprendemos na escola: 71% de nosso corpo são água, a mesma proporção existente em nosso planeta.

Bebemos litros de água no decorrer do dia. Do velho e bom filtro? Não. Em geral, de garrafas pet vendidas em supermercados. Quem garante que a água engarrafada é mais potável que a filtrada em casa? A propaganda; ela faz nossa cabeça e direciona nossos hábitos.

De olho no faturamento, empresas transnacionais procuram incutir na opinião pública a ideia da água como mercadoria de grande valor econômico, capaz de tornar-se uma fonte de renda para um país como o Brasil. Retira-se da água sua dimensão de direito humano, seu caráter vital, sua dimensão sagrada. Quem se opõe a esta ideologia é rotulado como "contrário ao progresso". Porém, é na defesa da água como direito e bem comum que reside a possibilidade de salvarmos o planeta Terra - "Planeta-Água" - da desolação, e assegurarmos a vida das gerações futuras.

O raciocínio da mercantilização da água é simples: tendo que pagar, a sua utilização será mais racional e cuidadosa. Ora, isso não implica incluir a água na categoria de mercadoria regida pelas leis do mercado.

Este argumento tem sua parte de verdade - cuida-se melhor daquilo que é mais caro. As consequências, porém, podem ser graves se a água for regida pela lei da oferta e da procura. A cobrança pelo uso da água pode ser um mecanismo de gerenciamento desde que se estabeleçam preços diferenciados conforme a concessão de uso. Uma fábrica de cerveja retira do poço artesiano toda água que necessita, sem pagar nada por ela. Depois descarrega parte dessa água, agora poluída por detergentes e dejetos, no rio mais próximo. O lucro com a venda da cerveja é todo dela; a perda no lençol subterrâneo e a poluição do rio são da comunidade local.

Uma boa gestão cobraria preço baixo pela água usada como insumo e alto sobre o esgoto industrial, de modo a obrigar a indústria a filtrar dejetos antes de lançá-los de volta ao rio. Também é preciso estabelecer preços diferenciados conforme o uso da água (consumo humano, esgoto, energia elétrica, produção industrial, agricultura irrigada, lazer etc).

Nas zonas urbanas já pagamos pelos serviços de captação, tratamento e distribuição da água, não pela água em si. A novidade é que, além dos serviços, deveremos pagar também pelo metro cúbico de água utilizada. Se este preço adicional vier a excluir alguém do acesso à água, tal medida será eticamente inaceitável.

O princípio que obriga a quem usa, pagar, não pode ser aceito ao contrário: "quem não paga, não usa." Não sendo a água uma mercadoria, mas bem de domínio público, o princípio só se aplica como norma reguladora de uso, seja quantitativa (quem usa mais água, paga mais), seja qualitativamente (quem usa para fins lucrativos paga mais do que quem usa para consumo pessoal). Se assim não for, a água deixará de ser direito de todos os seres vivos, criando-se um impasse ético e uma tragédia: a dos excluídos da água.


N. dos gestores do blogger: a mercantilização da água foi especialmente dolorosa em estados como Bolívia, quando menos até a chegada de Evo Morales. Precisamente, foi Evo Morales quem recentemente atingiu um alvo muito importante: que a ONU declarara o acesso a água potável um Direito Humano, que, infelizmente, duvidamos que seja cumprido para além de um terço da humanidade.

O anteprojeto de lei que o presidente da Junta da Galiza, Alberte Nunes Feijoo (ou Núñez Habichuela em bom castelhano), apresentou na cámara dos deputados galega é o primeiro passo para a privatização da água, contempando já o seu cobro em o médio rural. Por todo isto, o Encontro Irmandinho encetará nas suas irmandades rurais processos de agitação e informação entre os camponeses e fará esforços para tentar deter este atropelo dos direitos coletivos do povo galego. Repare-se que Betto foca aqui a realidade do Brasil, mas que Portugal e a Grécia em a Europa têm vivido ofensivas semelhantes. Perante isto só cumpre lembrar que na Eurolándia se desenvolverão as mesmas receitas ultraliberalis do FMI que operaram em América latina desde a década de setenta, e, portanto, as privatizações extender-se-ão durante os dois próximos decénios progressivamente, uma das dez estratégias que marcava o Noam Chomsky em um artigo recentemente reproduzido em este mesmo blogue.

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