15/12/2011

Existe a esquerda a outra beira do Oder?

Ángel Ferrero. Tirado de SinPermiso e traduzido por nós.
 



A pergunta não é ociosa. Um detém-se perante o Óder ou o Neisse -a fronteira natural da Alemanha com Polónia-, enxerga o horizonte e, de não se deixar embelesar pelo seu exuberante paisagem, o que vê em toda Europa oriental resulta descorazonador: em todos os países a direita governa, a esquerda carece de importância e a extrema direita experimenta um auge preocupante. De facto, uma das primeiras coisas que se vêem -porque é muito difícil não a ver- é a estátua de Cristo Rei em Swiebodzin, a maior do mundo com os seus quase 73 metros de altura e 440 toneladas de importância. "Sem novidade no Leste", titulou a Fundação Rosa Luxemburg de Berlim a conferência com Kamil Majchrzak desta tarde (7 de dezembro). Kamil Majchrzak é redator da edição polaca de Le Monde Diplomatique e colaborador ocasional do semanário Freitag. Antes de começar pede faz favor não ser fotografado: no seu país está ameaçado pela extrema direita. Uma boa mostra do estado de coisas.

O 15 de setembro outro polaco também fez uma conferência em Berlim sobre a situação no seu país. O palco era a Fundação Schwarzkopf-Jovem Europa -no 2009 teve de mudar o nome quando se descobriu que o seu fundador, Heinz Schwarzkopf, pertencia às SS- e o polaco em questão não era outro que o embaixador Marek Prawda. A conferência foi, como se podem imaginar, muito diferente. Até o último estagiário -essa subespecie académica domesticada e inofensiva- ficou surpreendido pelo conteúdo da conferência. Polónia, segundo o altavoz de Varsóvia, capeia o temporal da crise financeira graças à sua política ultraliberal. Curiosa formulação que se assemelha a algo bem como administrar a um doente a mesma substância que causou a sua envenenamiento. Ter preservado o o złoty, a sua moeda oficial, permitiu a Polónia sem dúvida escapar da jaula dourada do euro, mas aí termina-se a coisa. Embora os preços estão ao nível da República Federal Alemã, o rendimento médio da maioria de lares polacos ronda os duzentos euros; uma quarta parte da força de trabalho fá-lo em condições e com salários precários e, em qualquer caso o salário mínimo legal é de 320 euros. Muitos trabalhadores do setor industrial terminaram baixo as rodas da carroça da mundialização: se nos noventa as multinacionais transladaram as suas plantas de produção a Europa oriental atraídas pelos baixos salários, agora essas mesmas multinacionais se levam pela mesma lógica e peça a peça aquelas fábricas a Bangladesh, Índia ou Turquia. A pobreza na velhice duplicou-se nos últimos dois anos, a assistência aos comedores sociais e ao Bar mleczy -as antigas cantinas criadas pelas autoridades comunistas onde se servem pratos tradicionais polacos a preços populares- multiplicou-se. [1] O muito pregonado descenso do desemprego na Polónia ao 10% explica-se, entre outros motivos, pela emigración dos seus jovens trabalhadores qualificados para o Reino Unido, França, Alemanha e Escandinavia, uma fórmula à que também se apontaram neste último ano os gregos, os italianos e espanhóis. Uma lástima para os economistas marianos: não existe nenhum "milagre polaco". Ou melhor dito: os "milagres económicos" -quantificados sempre com a vara de medir do crescimento- sempre ocorrem a costa da imensa maioria em benefício da imensa minoria.

Uma esquerda à defensiva

Ingar Solty assinalou a particular contradição da esquerda europeia de pós-guerra: ali onde, como na França ou na Itália, partidos comunistas fortes foram o motor da resistência antifascista, estes não fizeram valer a sua força, subordinados como estavam às diretrizes que lhes marcou a política exterior moscovita. Enquanto, em toda Europa oriental, onde o antifascismo teve um componente nacionalista e os partidos comunistas jogaram um papel marginal, se implantaram desde os exterior regimes modelados a imagem e semelhança da União Soviética -menos na Jugoslávia, o que permitiu a Mose Pijade, a eminencia cinsenta do Partido comunista jugoslavo, declarar orgulhosamente que o resto de dirigentes «chegaram aos seus respetivos países libertados em avião e com a pipa pendurando dos lábios [...] durante quatro anos, em mensagens radiofónicos, chamaram em vão às massas a tomar as armas, enquanto nós conquistamos a nossa liberdade as empunhando nós mesmos»?.[2] Os motivos que levaram à criação destes dois blocos antagónicos são ainda hoje motivo de disputa: embora é sabido que Stalin julgava a Alemanha como uma batata quente que comportaria -como os seus sucessores descobririam não muito depois- problemas à URSS e favoreceu a ideia de uma Alemanha unificada, neutra e desmilitarizada, não menos verdadeiro é que a inclusão de Checoslovaquia, Polónia, Hungria e Bulgária na esfera de influência soviética permitia ao "irmão maior" da família socialista beneficiar da sua indústria sobrevivente (sobretudo nos dois primeiros casos) ao mesmo tempo que lhe proporcionava um "para-choques" em caso de hipotética agressão militar.
 
Este "pecado original", como não é difícil de supor, converteu-se em um lastre para a esquerda depois da desintegração da União Soviética e a dissolução dos regimes dos seus países satélite. Embora politicamente repressivo e economicamente ineficaz como todos os sistemas inspirados no modelo soviético, a República Popular da Polónia conseguiu ao menos elevar a qualidade de vida dos polacos bem como generalizar a educação e a assistência médica ao conjunto da população. O estancamento em todas as frentes que produziram as políticas de Leonid Brezhnev -especialmente a partir de 1970, quando o crescimento económico se freou em seco e começou a descer- gerou um amplo descontentamento cidadão para o sistema. Na Polónia explodiram as famosas greves de Solidarnosc em Gdansk e outras cidades, na Alemanha fê-lo com as manifestações das segundas-feiras (Montagsdemonstrationen). Todo isso contribuiu ao desgaste do socialismo real e eventualmente ao seu fim entre 1989 e 1991. Os manuais de história detêm-se neste ponto, com o triunfo ilusorio do "fim da história". Depois da queda do Muro de Berlim, os focos apagaram-se e correram-se os telões para uma função que começava por trás das estruturas. E em não poucas ocasiões os protagonistas trocaram as suas máscaras.

A "terapia de choque" (que na Polónia se baptizou com o nome do seu criador, se chamando Plano Balcerowicz) administrada para acelerar a conversão a uma economia de mercado gerou uma inflação galopante, desatou uma onda de bancarrotas e disparou o desemprego a taxas próximas ao 20%. Os polacos emigraram ao Reino Unido e Alemanha, onde se integraram no exército industrial de reserva, que teve a sua imagem mais desafortunada no "canalizador polaco". Ironicamente, este plano -que teve de ser detido para evitar, como afirmou Joseph Stiglitz, que Polónia corresse a mesma sorte que Rússia- foi aplicado pela antiga elite de apparatchiks -uma prova mais da dudosa fiabilidade do antigo sistema- com o assessoramento dos Wunderkinder das escolas económicas anglosajonas, o que gerou desconfiança para as ideias da esquerda e o desprestigio total do marxismo. [3] Quem aterraram nos partidos social-democratas saídos da nada a aprovaram tácita ou explicitamente com fins puramente eleitoralistas e para se distanciar do seu próprio passado. Todo isso explica a passividade da população ante as consequências das reformas, bem como os pobres resultados encadeados pela esquerda social-democrata, que na Polónia está representada pela Liga da esquerda democrática (Sojusz Lewicy Demokratycznej, SLD). Na Europa oriental estabeleceu-se um consenso ultraliberal que resulta difícil de avariar, pois ademais em estados como Polónia se teceu com fibras nacionalistas. A esquerda foi arrinconada a posições defensivas, quando não ficou enclausurada nos salões intelectuais e gavinetes académicos, falta de arraigo social, ancoragem com os sindicatos e tecido associativo. A situação é comparável no resto de países da Europa oriental, com a exceção da antiga Alemanha oriental, onde no SEJAM se formou uma sólida corrente reformista inspirada na perestroika de Mijaíl Gorbachev que mais tarde fundaria o PDS (Partido do socialismo democrático), um dos pilares do atual partido da Esquerda (Die Linke).

Polarização social sem expressão política

Em uma situação assim, o descontentamento se articula politicamente por outros cauces. No caso polaco trata-se de Ruch Palikot (Movimento Palikot), o qual, empunhando a bandeira do laicismo, a legalização do aborto e das drogas macias e a defesa dos homossexuais (causas punzantes em um país abrumadoramente católico), conseguiu converter-se na terceira força política do país. Apesar das aparências, Ruch Palikot não é um partido de esquerdas. A formação -que como o seu nome aponta, foi antes um movimento cidadão- foi registada no 2001 por Janusz Palikot, um empresário metido a político que amassou a sua fortuna como co-proprietário de Ambra S.A. (produção, distribuição e importação de vinhos) e Estoque Polska S.A. (produção de vodka). A agenda económica de Ruch Palikot é ultraliberal. A questão da propriedade dos meios de produção brilha pela sua ausência o mesmo no seu discurso que no seu programa. E se alguma lição legou-nos o governo de José Luis Rodríguez Zapatero no Reino de Espanha é que o social-liberalismo tem as patas curtas. Os partidos que se limitam a livrar batalhas culturais têm sucesso por algum tempo, mas se desploman como um castelo de naipes assim que lhes salpica uma crise económica. Ter introduzido o primeiro deputado homossexual (Robert Biedroń) e a primeira deputada transsexual (Anna Grodzka) no Sejm (parlamento polaco) está bem, mas uma política de gestos não basta. 

No outro extremo do espetro político encontra-se a extrema direita, que graças à sua anticapitalismo elementar e a sua antisemitismo -«o socialismo dos tontos», segundo descreveu-o August Bebel-, repunta ligeiramente em militantes, mas sobretudo em um alarmante recurso à violência. Não só na Alemanha, onde aumentaram as agressões neonazis nos novos estados federados, senão também na Polónia, onde o passado 11 de novembro o neofascista ONR (Obóz Narodowo-Radykalny, Campo nacional-radical) tentou tomar a festa nacional (coisa por outra parte não muito difícil, pois comemora a proclamação do estado polaco a cargo do marechal Józef Piłsudski, que levou a cabo uma feroz política anticomunista e terminou como ditador do país depois de um golpe de estado). Na praça da Constituição de Varsóvia a manifestação terminou em uma batalha campal com os militantes antifascistas, entre eles um contingente chegado da Alemanha, o que serviu aos meios de comunicação polacos para avivar a germanofobia e desviar a atenção dos fascistas checos que foram a secundar aos seus homólogos polacos. [4] A extrema direita checa converteu-se também em puntal da alemã, à que ajuda nas suas campanhas eleitorais, apesar de que o NPD denuncia repetidamente a "invasão polaca" da Alemanha. Este absurdo, habitual no fascismo em matéria de política internacional, se desculpa aludindo à construção de "Europa das nações", cujo programa é tão extenso como a expressão que lhe dá nome.

BCE + extrema direita

Quando no final de setembro Peer Steinbrück reclamou «uma nova narrativa sobre Europa» no Bundestag, alguns se lembraram de repente que Europa chega até o extremo oriental do Mar Báltico. Melhor fosse lembrar-se antes. No 2009, o primeiro-ministro húngaro, o socialista Ferenc Gyurcsány, demitia depois de vários escândalos políticos e por não ter sabido dar respostas firmes à crise económica que afetava ao seu país. Györgi Gordon Bajnai assumiu o cargo em março e dirigiu um efémero governo de tecnócratas que tendeu, segundo o taz, «o tapete vermelho à extrema direita». [5] Jobbik, o partido neofascista que chegou a contar com uma milícia própria -"a guarda húngara" (Magyar Gárda)- para dar surras a esquerdistas e gitanos, não entrou finalmente no governo, mas se converteu na terceira força do país (16'67% dos votos, 47 cadeiras), graças ao desplome dos socialistas, que com a perda de nada menos que 131 cadeiras, ficaram com 59 assentos e o 19'30% dos votos. Hungria parecia ficar bem longe então. O passado 11 de novembro -no mesmo dia em que se manifestavam os fascistas polacos pelas ruas de Varsóvia- os ministros do governo de unidade nacional de Lucas Papademos assumiram as suas carteiras. Entre eles Makis "o martelo" Voridis, o flamante novo ministro grego de Infraestruturas e Transporte e deputado no Parlamento pela formação neofascista LAOS. Voridis, um homem sem mérito nem talento conhecido e ao que média Grécia toma por um rústico, se dedicava nos oitenta a perseguir a estudantes esquerdistas no campus da Universidade de Atenas armado de um garrote (daí a sua alcunha); nos noventa fundou a Frente Helénico, que no 2005 fundir-se-ia com LAOS, o partido de extrema direita fundado por Georgios Karatzaferis -alias "Karazaführer"- quem declarou, por citar um só exemplo, que Auschwitz e Dachau eram «um mito». O irreverente jornalista estadounidense Mark Ames resumiu a situação como "austeridad e fascismo: a verdadeira doutrina de 1%". La Vanguardia Andy Robinson fez o próprio como "Grécia tem o governo do futuro: BCE mais extrema direita". [6] Albrecht von Lucke qualificou no Blätter für deutsche und internationale Politik a estes governos de tecnócratas (que ninguém votou) de "ditaduras comisarias" dos mercados financeiros e adverte das tentações autoritarias dos futuros governos da periferia europeia. [7] Hungria já não fica tão longe. O tapete vermelho está tendida. Agora começa em Lisboa, cruza o Mediterráneo e termina em Atenas.

Notas: 
[1] Ulrich Krökel, "Polen: Dorota und die Meerjungfrau", Freitag, 28 de agosto de 2011. 
[2] Citado em Tony Cliff, "Background to Hungary", Socialist Review, julho de 1958.
[3] Rafael Poch descreveu bem este processo na grande transição: Rússia, 1985-2002 (Barcelona, Crítica, 2003)
[4] Jens Mattern, "Polen: Herrenlose Pflastersteine", Freitag, 19 de novembro de 2011.
[5] Ralf Leonhard, "Der Rücktritt von Ungarns Regierungschef ist keine Lösung: Roter Teppich für Rechtsextreme", die tageszeitung, 23 de março de 2009. 
[6] Mark Ames, "Austerity & Fascism in Greece: The Real 1% Doctrine", naked capitalism, 16 de novembro de 2011; Andy Robinson, "Grécia tem o governo do futuro: BCE mais extrema direita", La Vanguardia, 12 de novembro de 2011. 
[7] Albrecht von Lucke, "Souverän ohne Volk: Der Putsch der Märkte", Blätter für deutsche und internationale Politik, n. 12, dezembro de 2011, p. 8.

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