30/08/2010

Murray Bookchin: ecologia social e municipalismo libertário

Artigo tirado do blogue Outra Esquerda.




Ocupo-me hoje de alguém cuja obra, devo admitir, ainda não conheço em profundidade. Porém, o que fum descobrindo dela até o momento amosa uma notável sintonia com a linha deste blogue. E é que Murray Bookchin (Chicago, 1921-Burlington, 2006) foi uma das referências do socialismo libertário, alguém que defendeu ideias de democracia de base, descentralização, autogestão ou como se lhe queira chamar; e que as combinou com um ecologismo adiantado ao seu tempo. Desprezava dogmas e fugia de etiquetas: uniu-se às mocidades comunistas com 9 anos, para ser expulsado aos 18 por desviações trotskistas. Desilusionado também com o trotskismo, aginha virou cara o anarquismo, etiqueta que se colgaria durante décadas mas que chegou a rejeitar (em favor do comunalismo) nos seus últimos anos de vida.

Uma completa biografia escrita (em inglês) pola sua companheira Janet Biehl pode-se consultar em Anarchist Archives. Mas o texto que resulta verdadeiramente interessante, por crítico e profundo, é um reconto da sua vida e obra feito polo seu colaborador Chuck Morse, o qual está disponível (traduzido ao castelão) com o título Ser un bookchinita. Recomendo encarecidamente a leitura dessas páginas; o que conto a seguir está sacado maiormente delas e de alguma mais, como a sempiterna Wikipédia.

As contribuições de Bookchin começam na década dos '50, na que escreve alguns artigos de corte ecologista nos que expressa a sua preocupação polos efeitos adversos da contaminação e outras consequências do desenvolvimento. Nesta linha publica em 1962 Our Synthetic Environment, com um enfoque similar ao do Silent Spring de Rachel Carson, o qual apareceria pouco despois. Em Ecology and Revolutionary Thought, de 1964, apresenta a ideologia da ecologia social, proposta que combina a nível político ideias da ecologia e do anarquismo. Este trabalho considera-se o primeiro em avogar por uma acção política radical de base ecológica; e exerceu, junto a outros publicados ao longo da década dos '60, uma grande influência na Nova Esquerda americana. Muitas destas obras seriam recolhidas no livro Post-scarcity anarchism (Anarquismo post-escassez, 1971).

Dende finais dos '60 até começos dos '80 adicou-se em parte à docência, tanto no Instituto para a Ecologia Social que el mesmo fundou como noutras instituções. Na década dos '80 influiu no desenvolvimento do movimento verde a escala mundial, particularmente nos Verdes alemães e dentro deles na ala mais radical, os fundis. É nesta altura quando aparecem duas obras fundamentais: The ecology of freedom: the emergence and dissolution of hierarchy (1982), e The rise of urbanization and the decline of citizenship (1986), reeditada mais tarde como Urbanization without cities e From urbanization to cities. No primeiro apresenta a dominação da natureza como produto da dominação social, e considera a hierarquia e a dominação como formas mais poderosas de opressão que a classe e a explotação. No segundo apresenta o seu projecto político definitivo, o municipalismo libertário. Advoga por assembleias democráticas de base nos diferentes níveis do local, nos que seja possível a democracia direta. Um resumo destas ideias pode-se consultar online (em inglês) num artigo publicado em 1991. E uma mostra mais reduzida está disponível no nosso idioma em GalizaLivre [vid. infra].

Bookchin diferenciava entre a ecologia autêntica, radical, que el defendia, e o mero ambientalismo. Mas também criticava correntes como o primitivismo ou a ecologia profunda às que, mália o seu radicalismo, considerava contraproducentes por individualistas (e portanto contrárias à mobilização de massas propugnada polo libertarismo) e por proclives ao misticismo e irracionalismo. Sua é a expressão lifestyle anarchism ou "anarquismo de estilo de vida", que el contrapunha, de forma depreciativa, ao anarquismo social. O livro em que apresentou essa diferença em 1995 gerou um extenso debate na comunidade anarquista, dentro da que criou divisão e enfrontamentos talvez mais alá do desejável. Nessa década, a dos '90, o seu rechaço ao individualismo que el via presente em muitos âmbitos do anarquismo levou-no a rejeitar esta última doutrina, com a que se identificara durante décadas, e a defender no seu lugar o comunalismo. Uma mudança de nome que não implicava nenguma renúncia ideológica senão, pola contra, uma aposta mais decidida pola dimensão social e transformadora do movimento.


Teses sobre o municipalismo libertário

(Setembro 9 de 1984).

TESE I.

HISTORICAMENTE, a teoria e a prática social radical centrárom-se sobre as duas zonas da actividade social humana: o lugar de trabalho e a comunidade. A partir da criaçom da Naçom-Estado e da Revoluçom Industrial, a economia foi adquirindo umha posiçom predominante sobre a comunidade ––nom só na ideologia capitalista, senom também nos diferentes socialismos, libertários e autoritários, que fôrom aparecendo no último século––. Esta mudança de posiçom do socialismo de umha postura ética a umha económica é um problema de enormes proporçons que tivo ampla discusom. O que é mais importante dentro deste ponto som os socialismos em si, com os seus preocupantes atributos burgueses, estranamente adquiridos, um desenvolvimento principalmente revelado pola visom marxista de chegar à emancipaçom humana através do domínio da natureza, um projecto histórico que presumivelmente estabelece a "dominaçom do homem polo homem"; é o razoamento marxista e burguês do nascimento de umha sociedade de classe como "pré-condiçom" à emancipaçom humana.

Desafortunadamente a asa libertária do socialismo ––os anarquistas–– nom avançarom consistentemente na prevalência do moralista sobre o económico. Embora quiçá o desenvolvêrom a partir do nascimento do sistema fabril, locus classicus de exploraçom capitalista, e de, nascimento do proletariado industrial como "portado" da nova sociedade. Com todo o seu fervor moral, a adaptaçom sindical à sociedade industrial e a imagem do sindicalismo libertário como infraestrutura do mundo liberado, supujo umha mudança apreziável no ênfase intencional do comunitarismo face o industrialismo; de valores comunais a valores fabris [1]. Alguns trabalhos que adquirírom santidade doxográfica dentro do sindicalismo, servírom para enaltecer o significado da fábrica e, de forma mais geral, o lugar do trabalho dentro da teoria radical, e isso por nom falar do papel mesiánico do "proletariado". Os limites desta análise nom necessitam ser igualmente analisados neste artigo. Em forma superficial, parece-me que estám justificados com os factos acaecidos na época da Primeira Guerra Mundial e os anos 30.

Hoje em dia a situaçom é distitna, e o facto de que podamos criticá-los com a sofisticaçom que nos dá a perspectiva de décadas, nom nos dá direito a patrocinar o descrédito do socialismo proletário pola sua falta de visom futura.

Porém debe fazer-se a matizaçom: a fábrica e, com a história, o lugar de trabalho, foi o lugar principal nom só da exploraçom, senom também de hierarquias, a isto há que engadir a família patriarcal. A fábrica nom serviu precisamente para "disciplinar", "unir" e "organizar" o proletariado capacitando-o para a mudança revolucionária, senom para escravizá-lo nos hábitos da subordinaçom, a obediência e a penosa rebotizaçom descerebrada. O proletariado, ao igual que todos os sectores oprimidos da sociedade, volve à vida quando se despoja dos seus hábitos industriais e entre na actividade livre e espontânea de comunizar, isto é, o processo vital que dá significado à palabra "comunidade". Entom os trabalhadores despojam-se da sua natureza estrita de classe, que nom é senom a contrapartida do estatus de burguesia, e revela-se a sua natureza humana. A ideia anárquica de comunidades descentralizadas, colectivamente gestionadas, estatais, e com umha democracia directa e a ideia da confederaçom de municipalidades ou "comunas", fala por si só, assim como numha formulaçom mais expressa através dos trabalhos de Proudhom e Kropotkine, expressando o papel transformador do municipalismo libertário como umha coluna vertebral de umha sociedade liberadora, enraizada no princípio ético anti-hierárquico de unidade da diversidade, autoformaçom e autogestom, complementaridade e apoio mútuo.

[1] Como exemplo particularmente deprimente, só há que ler El organismo económico de la Revolución (Barcelona, 1936), traduzido ao inglês como "After the revolution", dito trabalho influencia enormemente à CNT-FAI.

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