07/12/2010

A Outra Europa que desperta

António Martins. Artigo tirado de aqui.


Em Roma, eles ocupam as reitorias e escalam os tetos das universidades, onde se instalam. Daí, buscam as ruas. Paralisam rotas turísticas (e aeroportos como o Galileu Galilei, que serve Florença). Promovem invasões-relâmpago de monumentos como a Torre de Pisa e o Coliseu – de onde cantaram, em 25/11: “Hoje, nós somos os leões”. Em Londres, fizeram terça-feira (30/11) a segunda grande manifestação em uma semana e se envolveram em mais um confronto com a polícia — sob neve, vento e frio de zero graus. Ocupam 32 prédios universitários, entre eles as administrações das aristocráticas Cambridge e Oxford.

Os estudantes europeus estão de volta. Sua mobilização é resposta direta aos planos dos governos da União Europeia (UE) – que, diante da crise financeira, optaram por cortar direitos sociais e serviços públicos (leia nossa análise e sua atualização). Mas certas as características das novas lutas são marcantes. Recuperam e atualizam, em certos aspectos – irreverência, autonomia, criatividade – elementos da tradição de 1968. Mas as formas de ação rebeldes combinam-se com uma postura que vai muito além da denúncia e do protesto. A resistência aos planos dos governos (corte de verbas e elevação brutal das taxas escolares, em essência) não resulta em defesa da universidade atual.

Ao contrário: os movimentos querem uma reforma universitária – porém radicalmente democratizadora. Articulam-se (especialmente na Itália) com pós-graduandos e pesquisadores, o que dá um caráter multi-generacional a sua ação. A agitação nas ruas é complementada por debate permanente nas universidades e apresentação, via internet, de propostas bem-articuladas de mudança. A campanha não é coordenada por organizações estudantis tradicionais, mas por redes recém-constituídas, que não têm relação direta com partidos e se articulam principalmente pela internet. Fala-se em ação direta, mas não se rejeita o diálogo com a institucionalidade.

Os primeiros resultados são animadores: no Reino Unido, em face da mobilização estudantil, setores do governo de centro-direita vacilam em chancelar, no Parlamento, o ataque aos direitos. Na Itália, os protestos estão ampliando o desgaste do gabinete de Sílvio Berlusconi: o primeiro-ministro pode sucumbir a uma moção de desconfiança que será votada no Parlamento em 14/12.

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A investida dos governos europeus à universidade pública é um dos desdobramentos das políticas de “austeridade fiscal” adotadas pela UE no início do ano. Na Itália, uma ampla mudança no sistema educacional, iniciada em 2008 (a chamada “reforma Gelmini”, em alusão à ministra da Educação e Universidade, Mariastela Gelmini) corre o risco de ser piorada pela lei de Orçamento deste ano, que está em votação no Parlamento e promove corte generalizado de recursos.

Implantada abertamente em nome da “competitividade” e da “estabilização das finanças públicas”, a (contra-)reforma afeta o ensino em todos os níveis. Reintroduz a figura do “professor único” nas séries iniciais (eliminando o sistema atual de três professores). Em apelo ao conservadorismo, restabelece a avaliação dos estudantes por meio de sistema decimal de notas. Reduz a diversidade de opões de cursos, na escola secundária. Na Universidade pública, promove fusão de carreiras, restringe o número de vagas, rebaixa os orçamentos para pesquisa, estimula a privatização parcial (convida fundações privadas a participarem do financiamento dos institutos, em troca de direcionamento das atividades universitárias para seus interesses particulares). Para alcançar tais objetivos, reduz fortemente a representação estudantil nos conselhos dos institutos.

No Reino Unido, as medidas são ainda mais cruas. O governo – de coalizão entre o Partido Conservador (direita) e o Liberal-Democrata (centro-direita) anunciou em outubro um corte de 40% no orçamento das universidades públicas. A medida foi apresentada como primeiro passo para implementar as recomendações do Relatório Browne, um documento parlamentar que propõe a retirada de qualquer subsídio público à educação superior.

Coordenado pelo lorde Browne of Madingley, ex-excecutivo-chefe da British Petroleum, o texto prevê transferir para os próprios estudantes o ônus pela manutenção das universidades. As anuidades escolares triplicarão, se o plano for adiante, passando para 9 mil libras (cerca de R$ 25 mil). Os 3,3 bilhões de libras (R$ 8,8 bi) hoje destinados ao ensino superior desaparecerão literalmente. O sentido geral da contra-reforma foi apontado num artigo do crítico literário Stephan Collini, para a London Review of Books. Trata-se de romper a tradição do Estado do Bem-Estar Social inglês e desqualificar a educação universitária como bem comum – reduzindo-a à condição de um mercado levemente regulado pelo Estado…
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Tanto na Itália quanto no Reino Unido, tais políticas de privatização e corte de direitos dependem do Parlamento. A presença de vasta maioria conservadora nos dois legislativos asseguraria, em princípio, aprovação tranquila. A insubmissão dos estudantes é a surpresa que está modificando o panorama.

Em ambos países, a mobilização tem, além dos protestos criativos de rua, uma cena típica: as dezenas de universidades ocupadas. Na Itália, há uma curiosa divisão de trabalho. Os estudantes tomam os prédios administrativos – reitorias e salas de conselhos, tipicamente. Os pesquisadores sobem ao teto das instituições. Lá, organizam mobilizações e debates. Sua ação é articulada – de modo semi-informal, mas muito eficiente – pela chamada Rede 29 de Abril. Foi constituída numa assembleia nacional de pesquisadores universitários realizada em Milão, na data que dá nome à iniciativa (ver documento de fundação e vídeo do encontro).

Rejeita-se o auto-entrincheiramento. Os prédios ocupados
não são fortalezas a serem defendidas da polícia,
mas bases para centenas de manifestações de rua

A partir de então, deflagrou-se um intenso processo de denúncia da “reforma” Gelmini e, em especial, formulação de alternativas. O site internet da rede deixa claro: “não somos apenas protesto”. Lá, um conjunto de documentos analisa a estrutura da universidade italiana, seus impasses atuais, os possíveis efeitos da proposta do governo e, em especial, as bases para uma saída de sentido oposto. No mesmo endereço, uma seção curiosa, Direto do Teto, oferece imagens das mobilizações e… das cidades italianas vistas de cima. Os pesquisadores filmaram, em vídeo, cenas como sua subida à parte mais alta dos edifícios, as reuniões que lá realizam, os debates com personalidades italianas. O teto da célebre Università La Sapienza (em Roma) recebeu, entre outras, as visitas de todos os líderes de partidos da moderada oposição ao premiê Silvio Berlusconi. Os eventos podem ter sido decisivos para levá-los a assumir, no Parlamento, a oposição à contra-reforma.

Já as ocupações estudantis foram capazes de evitar o auto-entrincheiramento – um problema comum, quando se recorre a esta forma de luta (inclusive no Brasil). Os prédios ocupados não são vistos como fortalezas a serem defendidas do Estado ou da polícia, mas como a base para uma impressionante sequência de manifestações de rua. Elas ocorrem quase todos os dias desde 23/11, quando a votação do projeto do governo pareceu mais próxima. Espalharam-se por centenas de cidades.

Sua marca principal não é número – mas diversidade, capilaridade e criatividade. Ninguém espera, convocações centralizadas (embora elas existam, como se verá). Organizados a partir dos institutos que ocuparam, os estudantes promovem cortejos, marchas, rápidas intervenções urbanas (flashmobs). Elas fazem, frequentemente, alusão à cultura, ao saber, ao curso de quem se manifesta. Na madrugada da última terça-feira (29/11), por exemplo, a internacionalmente famosa Academia de Brera (de artes), em Milão, foi ocupada. Na manhã seguinte, os alunos decidiram em assembleia oferecer, à cidade, a cada dia, uma blitz artística e um bloco criativo – conceitos que incluem, entre outras atividades, apresentação de filmes e teatro de rua. Também resolveram substituir as aulas tradicionais por debates sobre a “auto-reforma” da Universidade (terão, para tanto, o apoio dos pesquisadores) e pela instalação de “coletivos de auto-formação”.

Ações como esta multiplicam-se às centenas. Têm em comum pontos como a não-violência, a valorização e garantia do serviço público (em Brera, por exemplo, a ocupação preocupou-se em não interromper o acesso do público ao museu e outras instalações da Academia), a projeção de uma imagem de abertura ao diálogo. Intransigência, ignorância e brutalidade devem estar associadas ao governo, não ao movimento. Este imenso conjunto de iniciativas é coordenado por alguns movimentos, que se articulam horizontalmente, em forma de rede, e se expressam principalmente pela internet.

Entre estes, estão Link (que chama os defensores da contra-reforma de “Ladrões de Futuro” e convoca ironicamente os ainda desmobilizados: “Enquanto você estuda, tua faculdade pode desaparecer”), Unione degli Studenti (“União dos Estaudantes”, onde destaca-se uma área destinada a “Outra Reforma” da universidade), Rete della Conoscenza (“Rede do Conhecimento”, uma articulação entre os dois primeiros, destinada a refletir sobre a mobilização), Uniriot (com um acompanhamento constante das mobilizações e links com o movimento inglês), Unione degli Universitari (“União dos Universitários”, uma confederação de associações estudantis que se vê com sindicato e parece mais corporativista).
A organização da luta é autogestionária,
mas os estudantes não ignoram a política institucional.
Como garantir direitos sem pressionar o Estado?
A maior parte destas característas está presente com a mesma intensidade nas mobilizações do Reino Unido – mais um sinal de que podemos estar diante de uma mudança de padrão. Em 6 de fevereiro deste ano, reuniram-se em Londres representantes de diversos campi universitários onde havia embriões de campanhas contra o corte de verbas e a elevação das anuidades. Lançaram a Campanha Nacional contra Tarifas e Cortes (National Campaign Against Fees and Cuts – NCAFC, em inglês). Como na Itália, não há uma direção estabelecida, mas reuniões (abertas) de coordenação regional nacional.

As ocupações de universidades têm o mesmo caráter irreverente e criativo das italianas (salvo, é claro, pela inexistência de um elenco equivalente de monumentos históricos e paisagens magníficas). Os vídeos disponíveis no site da NCAFC revelam a presença numerosa nas escolas ocupadas; o esforço de auto-formação (teórica e, como seria de esperar num país de enorme musicalidade, em matérias como solidarity dance ou freedom dance); a horizontalidade; a forte participação de imigrantes.

As manifestações de rua são mais centralizadas que na Itália. Houve duas jornadas nacionais até o momento: em 24 e 30 de novembro. Em cada uma, cerca de 150 mil estudantes protestaram, em dezenas de cidades. Em Londres, a polícia reagiu de forma violenta. Em resposta, surgiu a campanha CopWatch (“Observatório da Polícia”), que convida os cidadãos a registrar e denunciar abusos das forças estatais de segurança. Assim como na Itália, os estudantes contam com apoio senior para debate teórico e formulação de alternativas. Na Inglaterra, surgiram redes como Humanities Matter (“As Ciências Humanas são decisivas”). Estimulam a produção de análises sobre o estado e futuro da universidade, a mobilização de apoios entre intelectuais e cientistas, a proposição de outras reformas possíveis.
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Duas semanas de mobilização intensa foram capazes de produzir mudanças notáveis no panorama político da Itália e Reino Unido – e tremores ainda mais importantes podem ocorrer em breve. Isto foi possível, em boa medida, graças a outra característica inovadora dos movimentos, nos dois países. Embora pratiquem e valorizem formas autogestionárias de organização da luta, os estudantes não voltam as costas para a política institucional. Eles sabem que não será possível preservar ou ampliar direitos sem pressionar o Estado. Os pesquisadores italianos abriram, como se viu, diálogo com a centro-esquerda. Em contrapartida, as sedes dos partidos que mais atuam em favor da contra-reforma (Conservadores, no Reino Unido; Popolo della Libertà-PdL, de Berlusconi, na Itália) estiveram entre os alvos principais das manifestações de rua.

Os primeiros efeitos são visíveis. Na Inglaterra, o glamour inicial da coalizão de centro-direita sofreu forte desgaste. Eleito em maio, o primeiro-ministro David Cameron procurou apresentar-se, nos primeiros meses de mandato, como defensor de uma participação inédita da sociedade civil na gestão do Estado: o plano Big Society. A luta dos estudantes está desvendando a verdadeira face do projeto: reduzir a garantia, pelo Estado, dos direitos sociais; envolver a sociedade não como gestora empoderada de seu próprio destino, mas como administradora de serviços públicos enfraquecidos ou sucateados.
Novas jornadas de luta estão marcadas. Na Inglaterra, em 9/12,
para tentar derrotar a contra-reforma no Congresso.
Na Itália, tenta-se, em 14/12, derrubar o governo Berlusconi…

As críticas à privatização da universidade, e em especial à triplicação das anuidades escolares, ameaçam provocar uma primeira crise no governo. Embora ainda dividido, o Partido Liberal-Democrata, sócio menor na coalizão no poder, ameaça abster-se na votação sobre a contra-reforma universitária. Nesse caso, ela poderá ser derrotada se forte pressão popular reverter o voto de cerca de vinte parlamentares do Partido Conservador.
Na Itália, a crise é ainda mais grave. No final de novembro, em meio ao início dosprotestos estudantis e após meses de desgastes, a coalizão liderada por Silvio Berlusconi sofreu uma cisão. Um bloco liderado pelo deputado Gianfranco Fini, presidente do Parlamento e aliado histórico do do primeiro-ministro, deixou o PdL para formar um novo partido, denominado Futuro e Liberdade.

O governo perdeu a maioria absoluta e agora depende de negociações com outras forças, para passar qualquer medida no Legislativo. Em 30 de setembro, a contra-reforma Gelmini foi aprovada pela Câmara (devendo voltar ao Senado). Um dia depois, porém, deu-se reviravolta espetacular. Os partidos que se afastaram de Berlusconi propuseram uma moção de desconfiança contra o premiê. Ela paralisa a atividade legislativa até ser submetida ao voto dos deputados – em 14 de dezembro. Caso majoritária, provocará a queda do governo e reembaralhará o cenário da política institucional. São possíveis, inclusive, eleições antecipadas, em especial na hipótese, bastante plausível, de a crise financeira europeia expandir-se e atingir com força a Itália (já há sinais dessa contaminação desde a virada do mês).

O novo movimento estudantil captou rapidamente os tremores e a oportunidade que eles oferecem. No Reino Unido, uma terceira jornada nacional de grandes manifestações de rua está marcada para 9 de dezembro – o dia em que o Legislativo votará as medidas de privatização e aumento das anuidades universitárias. “Marcha sobre o Parlamento: nem cortes, nem taxas. Garantir os serviços públicos e tributar os ricos”, anuncia o cartaz mais recente do NCAFC.

Na Itália, os estudantes estão servindo de fagulha para uma grande mobilização popular que pressionará o Parlamento pela queda do governo, em 14 de dezembro. Ela está atraindo velozmente a adesão dos movimentos sociais, após anos de letargia. “Retomemos o futuro”, convoca a manchete principal no site de Uniriot. E explica: “A força e radicalidade de centenas de milhares de estudantes nas ruas está vencendo. Agora, façamos cair o governo”.
Em termos gerais, a Europa permanece aturdida e em regressão. Ao contrário do que ocorre em outras regiões do mundo, os governos decidiram reagir à crise internacional com políticas de “ajuste fiscal” que concentram riqueza e reduzem direitos. Os seguidos fracassos desta decisão (quebra da Grécia e Irlanda, tormentas financeiras iminentes em Portugal e Espanha, dificuldades à vista na Itália e Bélgica) não foram capazes de fazê-los enxergar a realidade. É animador saber que a resposta vem das sociedades – e com as cores e potências da inovação, autonomia e nova cultura política.

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