24/03/2011

Líbia: o invasor dividido

António Martins. Tirado de aqui.

Obama e Robert Gates: o chefe do Pentágono aconselhou a não fazer a guerra

Nas guerras contemporâneas, os cenários movem-se muito rápido e tornam as avaliações sempre provisórias. Mas na manhã de terça-feira (22/3), três dias após o início da invasão da Líbia, um balanço não parece indicar desfecho rápido – nem fácil – para a investida militar. Estados Unidos, Inglaterra e França devastaram o poder aéreo de Gaddafi e atingiram centros de comando em Tripoli, a capital – o que certamente provocou mutas vítimas civis.

Mas o ditador mantém controle do exército, avança sobre cidades controladas por opositores e mobilizou apoio popular contra a invasão. Crescem as dúvidas sobre os grupos que a mídia apresenta, hoje, como “rebeldes”. Não está à vista uma solução que possa ser apresentada como “êxito” da guerra. Em consequência, crescem as críticas e os riscos de defecção entre os que apoiaram de início o ataque. Em pouco tempo, a guerra parece ter exposto algumas das contradições agudas das disputas globais pelo poder.

A primeira é a capacidade real – porém limitada – de os Estados Unidos intervirem em qualquer parte do mundo. Ao contrário do que havia declarado o presidente Obama, horas antes de vir ao Brasil, é Washington, claramente, quem deflagrou e comanda a invasão (leia texto de Bruno Cava). Mas não se trata de uma situação confortável nem no plano internacional, nem no interno.

A margem de manobra da Casa Branca é reduzida, em seu próprio território, pela oposição à guerra, que cresce entre a sociedade, o Congresso e o próprio exército. Ontem (21/3), parlamentares dos dois maiores partidos criticaram o início de uma guerra sem qualquer consulta ao Congresso. No início do ano, o analista político Robert Dreyfuss reportara, na revista alternativa The Nation, que a oposição aos imensos e crescentes orçamentos militares começou a se difundir. Antes restrita a um pequeno grupo da esquerda do Partido Democrata, ela passou a sensibilizar um setor do Partido Republicano e do próprio movimento conservador Tea Party.


Por fim, como lembra Immanuel Wallerstein num artigo recente publicado em Outras Palavras (também no nosso blogue), as próprias forças armadas passaram a se opor à guerra. Durante dias, o chefe do Pentágono, Robert Gates, manifestou-se publicamente contra ela, alertando para as dificuldades e riscos do envolvimento dos Estados Unidos num terceiro conflito simultâneo. Gates foi ao final vencido por uma ofensiva deflagrada, dentro do governo, pela secretária de Estado Hillary Clinton.


No terreno internacional, há outras dificuldades. Embora aprovada com velocidade surpreendente, a resolução 1973 da ONU, que autorizou (em 18/3) os ataques contra a Líbia, é frágil. Ontem mesmo (21/3), Brasil e China, dois países que se abstiveram durante a votação, pediram o fim imediato dos bombardeios. Na Rússia, outro voto neutro, o primeiro-ministro Vladimir Putin comparou a ofensiva dos Estados Unidos ao anti-islamismo das cruzadas (ele discursava para operários da indústria bélica, sugerindo que seu país deve aumentar os gastos com armamentos…). Ainda mais importante, o egípcio Amr Moussa, secretário-geral da Liga Árabe fustigou a investida militar: “Isso não é zona de exclusão aérea. Queremos a proteção dos civis [líbios], não seu bombardeio”.

Os EUA parecem conscientes de que sofrerão forte desgaste, se estiverem à frente de um conflito duradouro. Entrevistado esta manhã, no Chile, onde prossegue seu giro latino-americano, o presidente Obama afirmou que deseja passar rapidamente (“em dias, não semanas”) a liderança a outro protagonista. Mas quem?

A OTAN, Aliança militar do Atlântico Norte, seria uma saída óbvia. Dirigida pelos EUA, é porém- integrada por 28 países. Ajudou a reduzir a exposição norte-americana (e partilha as despesas…) na ex-Iugoslávia (anos 1990) e Afeganistão (a partir de 2001). Mas parece incapaz de assumir este papel agora, devido a outro fenômeno novo surpreendente: a busca de novos espaços geopolíticos, pelos países que antes acomodavam-se à posição secundária de “periferia”.

O primeiro-ministro da Turquia, Recep Erdogan, voltou a criticar ontem o ataque militar, em discurso ao Parlamento. Há semanas ele assumiu uma posição favorável ao diálogo, no conflito líbio. E tem bloqueado o envolvimento da OTAN na guerra, manejando com coragem o poder de veto conferido a todos os Estados-membros da aliança.

Gaddafi tem utilizado com habilidade este impasse. Ele já não pode desfechar ataques aéreos contra a oposição. Sua tentativa de lançar uma ataque militar relâmpago contra o reduto oposicionista de Benghazi, na manhã de sábado, fracassou por muito pouco: as tropas governistas já haviam bombardeado a cidade, e estavam prestes à conquistá-la, quando o início da ofensiva ocidental as forçou a recuar. Mas o ditador resiste com garra.
Rebeldes feridos após ofensiva
Rebeldes feridos após ofensiva

Ontem, falando à TV estatal por telefone, a partir de local desconhecido, disse estar preparado para uma guerra longa – o pior pesadelo para os invasores. Em nome da soberania do país, mobilizou, nas ruas de Tripoli, centenas de manifestantes, que desafiaram os bombardeios. E hoje, o exército leal ao regime, cuja capacidade de fogo persiste, lançou ofensivas terrestres contra as cidades de Zintan, na fronteira com a Tunísia e Misrata. Estão sendo submetidas a bombardeio pesado, segundo relata a Al Jazeera.

Quais os cenários para o futuro da guerra? Em relação a isso, as contradições no interior da aliança ocidental parecem ainda mais intensas. Entre ontem e hoje, Obama e o primeiro-ministro britânico, David Cameron, sugeriram que seus governos vêem como “desejável” a queda de Gaddafi – embora admitissem que este objetivo não está previsto pelo Conselho de Segurança da ONU. Mas os chefes militares da operação fizeram declarações explícitas contra tal missão. “Absolutelly not”, respondeu ontem o chefe das forças militares britânicas, David Richards, quando lhe indagaram se Muammar Gaddafi é um possível alvo. “Não é parte de nossa missão”, afirmou o general americano Carter Ham, comandante das forças norte-americanas na África e de toda a operação contra a Líbia.

Por trás desta incerteza parece estar um terceiro grande impasse revelado pela guerra. A enorme potência que as revoluções democráticas árabes revelaram ter, inclusive em condições muito adversas (como a repressão por grupos de capangas pró-regime, na Praça Tahir), parece esvair-se, quando surge um confronto militar aberto. A cidade de Benghazi é um exemplo claro desta característica.

Por volta de 20 de fevereiro, quando as forças pró-Gaddafi foram expulsas da cidade, ela parecia seguir os passos de Tunis e do Cairo. Comitês populares, com forte presença de jovens e mulheres, organizavam-se para assumir os serviços públicos (veja reportagens no El País e Guardian). Então, o regime endureceu e iniciou a reconquista por meios militares das regiões rebeladas do país. Benghazi armou-se e endureceu.

A transformação política por que a cidade passou não está esclarecida. É um dos episódios da revolta árabe que merece estudo mais profundo. Mas tanto nos relatos sobre o que lá se passa quanto nas fotos dos últimos dias (veja, por exemplo, o Huffington Post), o que se vê são apenas pequenos grupos de homens fortemente armados. A ponto de uma reportagem no New York Times, publicada hoje, comparar o comportamento de seu comitê de imprensa ao dos homens da mídia oficial do regime de Gaddafi…

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