04/09/2010

Patagónia à venda

Pepe Escobar, jornalista do Asian Times. A tradução é de Caia Fittipaldi, Vila Vudu. Retirado de Outras Palavras. Aliás, é mister reparar em que este artigo é a segunda parte de trabalho maior. A primeira parte, “In Tierra del Fuego, Darwin still rocks”.

Quando eclodir a Grande Guerra das Águas – esperada para 2020 – a Patagónia será posta a prémio; ter água implicará riqueza infinitamente maior do que, hoje, ter petróleo ou gás.


Catarata de Salto Grande, Patagónia. Foto de Geoff Livingston, FlickR



A “deserta e estéril” Patagónia (na avaliação inicial de Charles Darwin) são nada menos que 230 mil quilómetros quadrados de bacias de rios que desaguam no Atlântico. São 4 mil quilómetros quadrados de gelo continental e glaciares – além de uma das maiores reservas de água doce do planeta.
Vivemos hoje os estágios avançados de uma guerra global sem fim à caça de petróleo e gás (há dos dois, aliás, na Patagónia). Relatório crucial da Unesco já avisava, em 2000, que nos cinquenta anos seguintes praticamente todos os seres que habitam o planeta enfrentariam problemas relacionados à falta de água ou à contaminação de grandes massas de água. Quando eclodir a Grande Guerra das Águas – esperada para 2020 – essa Patagónia de lagos azuis translúcidos e glaciares milenares será posta a prémio; ter água implicará riqueza infinitamente maior do que, hoje, ter petróleo ou gás.
Mentes analítico-bélicas no Pentágono e na Agência Central de Inteligência (CIA) dos EUA não conseguirão deter os sonhos molhados de uma Patagónia secessionista, que será uma espécie de última Arábia Saudita líquida da Terra. População rarefeita (menos de 2 milhões de habitantes), com toda aquela água, abundantíssima energia hidroeléctrica e 80% das reservas de petróleo e gás natural da Argentina. O grau de descaso e negligência de que se ressentem os habitantes da Patagónia, em relação a Buenos Aires, pode ser comparado ao que se sente no Baluquistão, no Paquistão, em relação a Islamabad. Pesquisas recentes mostraram que o desejo de viver numa Patagónia independente sempre está acima de 50% (e chega a 78% entre os mais jovens e os desempregados).
A descrição de uma rota de colisão e desastre, de quatro séculos de “desenvolvimento” patagónio, teria aproximadamente o seguinte feitio. No começo foram os povos nativos. Depois vieram os navegadores ibéricos, os piratas ingleses, todos os tipos de cientistas europeus aplicados, os missionários religiosos, os exilados que sonhavam fazer da Patagónia uma versão austral da América. Então chegaram os latifundiários – do Chile ou da Holanda, do País de Gales ou da Polónia, da Escócia ou Dinamarca.
Livrar-se das populações nativas foi colonialismo nu e cru. Os patagónios do norte foram exterminados pela infame e eufemística Campanha do Deserto, de 1879; os do sul foram convertidos, à força, em força de trabalho para o agro-business. E então, nos anos 1990, chegaram os bilionários do “primeiro mundo”.
Como sabem todos os bilionários encantados com a vida selvagem e os seus executivos enfarpelados, a venda da Patagónia começou em 1996, no governo do ultra-neoliberal Carlos Menem. Nas suas próprias palavras, Menem desejava vender “o excesso de terra” do país que presidia. Não há legislação federal, na Argentina, que regule a venda de terras a estrangeiros. Só no final da década de 1990, venderam-se mais de 8 milhões de hectares de terra. Segundo o exército argentino, mais de 10% do território nacional pertence hoje a estrangeiros – e as vendas prosseguem. O problema não é a venda; o problema é o controle, virtualmente nenhum, sobre os projectos propostos para investimento.
Se for abonado, ainda comprará o que quiser, onde quiser – inclusive as áreas dos espectaculares parques nacionais. Cada província fixa regras próprias. Se encontrar o funcionário certo e levar consigo a mala certa carregada com os dólares certos, o mundo – à moda de Tony Montana 1 – é seu. Não surpreende que praticamente todos os moradores das províncias de Rio Negro ou Santa Cruz digam que o gabinete do presidente da câmara é a principal agência de venda de terras da cidade. Os mesmos moradores inevitavelmente lamentam que a Patagónia esteja a ser comprada por estrangeiros – de Ted Turner à família Benetton. E duas das maiores empresas de petróleo da Patagónia pertencem a estrangeiros; uma delas, estatal, foi vendida à Espanha; a outra, privada, à Petrobrás brasileira.
Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse – versão local, no fim do mundo – são Tompkins, Turner, Lewis e Benetton. São a colheita do século 21 dos conquistadores, aventureiros e piratas da Patagónia – de Francis Drake e George Newbery a Butch Cassidy e Sundance Kid (o rancho deles continua lá, em Cholilla, resto de pueblo que combinaria perfeitamente no cenário das áreas mais miseráveis do Novo México). Os estrangeiros sempre sonharam com esse fim do mundo. A beleza violenta desse lugar – como adiante se verá – leva às lágrimas muito homem feito.
Doug Tompkins é guru “verde” californiano, fundador de duas organizações, The North Face e Esprit. Na Patagónia é conhecido como “o dono da água”. É o maior proprietário privado de recursos naturais da Patagónia chilena, e da região de Corrientes, na Argentina; e é dono de várias estâncias, todas estrategicamente distribuídas pelo mapa. Quando Tompkins bateu os olhos pela primeira vez no sul da Patagónia, do lado chileno, e depois no noroeste da Patagónia, do lado argentino, em 1961, chorou como um bebé. Depois voltou – e pôs-se a comprar.
Ted Turner, fundador da CNN e fanático por pesca de trutas e dono de uma villa espectacular, em área de 5 mil hectares, no sul da província de Neuquen, de onde controla completamente o acesso a um dos rios mais virgens da Patagónia. Tem outra propriedade de 35 mil hectares na mesma província, mais outra, de 5 mil hectares, na Terra do Fogo. Ted só comprou terra nos EUA e na Patagónia.
Villa Traful é um vale verde, privado, que cerca o espectacular lago de mesmo nome – e faz pensar que dessa matéria são feitos todos os Xangrilás, antes do advento do Facebook. Comprar terras em Traful, nos anos 1990s, era sopa. Quem sabia jogar o jogo rapidamente virou proprietário da terra pública em torno do lago. Agora, a festa acabou. Só Jorge Sobisch, de família de emigrados croatas, ex-governador da província de Neuquen que quer ser presidente, já praticamente vende tudo, todos os dias, para gigantescas massas de turistas.
Mas, acima de tudo e todos, toda essa terra pertence a Ted Turner. Turner é proprietário de La Primavera, estância cinematográfica de 5 mil hectares na boca do rio Traful. Ali pesca, como abençoado, a melhor truta e o melhor salmão que a natureza consegue gerar. Jane Fonda era doida por La Primavera. Tompkins era hóspede frequente, além de George Bush pai e Henry Kissinger. A área é policiada por satélite. Estive lá no inverno, tudo vazio e gelado. Assim, não tive o prazer de navegar em águas que pertencem a Ted Turner. Claro. Ted jamais se deixa ver na Vila Traful – mas sabe-se que visita a estância La Primavera algumas vezes por ano.
La Primavera foi fundada, de facto, por um dentista norte-americano e ex-vice cônsul dos EUA em Buenos Aires, George Newbery, em 1894. George e Ralph Newbery (pai do famoso aviador Jorge, cujo nome hoje decora o portal de entrada de um dos aeroportos de Buenos Aires) convenceram-se de que, para povoar a Patagónia, o melhor seria importar cowboys do Texas.
Assim, já desde o início do século 20, temia-se, em todo o norte da Patagónia, uma onda de colonização yankee. Mas a fonte de cowboys exilados do Texas logo secou. La Primavera foi vendida para um inglês, depois para um francês, depois para um argentino, até que, finalmente, pousou no colo de Ted Turner, que andava profundamente envolvido num projecto conservacionista – ou expansão territorial – de 2 milhões de hectares em Montana, Novo México e Nebraska. Mas, sobre a Patagónia, ele jamais negociou nem cedeu um palmo. Coisas de pescador de trutas.
Brit Joseph Lewis, dono da 6ª maior fortuna do Reino Unido, conhecido na Patagónia como “Tio Joe”, por causa de incontrolável mania de fazer filantropia, controla todos os 14 mil hectares de terra em volta do sublime, indescritível Lago Escondido, a 92 km de Bariloche, junto à fronteira com o Chile. Controla também toda a bacia do premiado rio Azur. O ultradiscreto Lewis, que vive entre Londres, Orlando, as Bahamas e a Patagónia é alto tubarão da especulação financeira, além de accionista da pesquisa genética. As garras de seu Tavistock Group estão pousadas sobre tudo, do petróleo e gás da Sibéria, aos sapatos e roupas marcas Puma e Gottex.
A Xangrilá andino-patagónica de Lewis não fica longe de El Bolson, a meca dos hippies argentinos nos anos 1970s, convertida, por transmigração dos espíritos, na primeira câmara ecológica do início dos anos 1990s. Nas florestas, ao estilo Tolkien, há árvores multimilenares, os alerces, de madeira lahuan – os organismos vivos mais antigos que há na Argentina, os terceiros entre os mais antigos do planeta. Assim como se vêem alerces por todos os lados e até onde a vista alcança, também se vêem até onde a vista alcança sinais de que, hoje, Lewis só pensa, mesmo, em fazer o trabalho que caberia às autoridades provinciais e nacionais – quer dizer: em construir um Estado de facto, dentro do Estado.
Em apenas alguns poucos anos, Lewis comprou terras em metragem equivalente a três quartos da cidade de Buenos Aires – mas sob a forma de florestas milenares, glaciares, lagos e rios intocados. Por pouco, não comprou o próprio lago, o que a lei não permitiu. Mas, sim, comprou toda a terra à volta do lago, o que significa que, se você quiser chegar até o lago, tem de viajar por 18 km, em estrada dentro de sua propriedade. Conhecer essa Xangrilá só é possível com ajuda do alto, ou seja, dos guardas de Lewis. Há suspeitas de que Lewis tenha tentado comprar as nascentes de vários rios da região. E, considerando que o Grupo Tavistock está pesadamente envolvido em pesquisa genética e biotecnologia, há suspeitas, também, de que já esteja a extrair e exportar as espécies mais raras que vivem (viviam) na Cordillera.


1 - Antonio Montana, conhecido como “Tony Montana”, é o personagem interpretado por Al Pacino no filme Scarface (1983). Sobre o filme, ver http://www.imdb.com/character/ch0003932/.

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