Há vinte anos, Alemanha e Europa deixárom passar umha ocasiom histórica para fazer as cousas um pouco melhor.
Os alemans chamam "pacífica revoluçom" ao processo que concluiu na reunificaçom nacional de 1990. Aquele fito da história europeia puxo fim a um drama nacional e a umha anomalia continental: a separaçom de seres humanos e parentes dumha mesma nacionalidade por razons de Estado, a divisom dumha grande naçom que se unificou afinais do XIX, em 1871, e a aussência de liberdades essenciais. É natural que vinte anos depois de 1990, muitos alemans celebrem aquela normalizaçom nacional, porque há motivo, e até que faga lenda dela.
Os alemáns, especialmente os do Leste, que fôrom os únicos que exercêrom a sua cidadania perante o Estado, podem sentir-se fachendosos de muitas cousas. Podem sentir-se orgulhosos, e isto há que dizê-lo bem algo, de que a sua ditadura caira sem disparar, o que foi um mérito tanto dos governados como dos governantes. Podia ter-se produzido um Tiananmen em Leopzig, Dresde, ou Berlim Leste, e nom o houvo.
Porém, vinte anos som já um prazo considerável para falar com certa sobriedade de distáncia das cousas, e para além das lendas, a simples realidade é que o magnífico movimento social dos alemáns do Leste, que a perestroika soviétiva puxo em marcha e que determinou que as autoridades da RDA abriram o muro e acederam a queda do seu regimem pacificamente, contribuiu para umha Europa mais capitalista, conservadora e até militarista num sentido nom de guerra fria mas de intervencionismo "quente".
Podia ter sido doutra forma, mas o caso é que tal como se fixo, a reunificaçom esquivou todos os cenários que podiam ter feito a Europa mais social, mais independente e mais moderna do ponto de vista da sua contribuiçom a um mundo viável, quer dizer, mais afastado da guerrra e do império. Isso também foi responsabilidade partilhada de governados e governantes.
Paisagens floridas
Passada a sua gesta instantánea que derribou a dictadura, o movimiento do Leste nom foi capaz de formular, e muito menso de pressionar para tentar realizar, um programa político, para além do inicial "somos o povo" e do seguinte "somos um povo". Os disidentes e intelectuais da Alemanha do Leste nom tinham, obviamente, experiência política - a grande diferença com os polacos curtidos por umha longa tradiçom de resistência activa- e nom fôrom capazes de propor rem sólido a umha populaçom que se rindiu ao que o posteriormente Ministro de Interior Otto Schily designou como "os plátanos" ("Bananen"): as luzes e expectativas dumha rápida melhora material, hábil e rapidamente cozinhadas polos veteranos políticos da direita empresarial de Bonn. Essa expectativa foi o que determinou a vitória da direita nas primeiras eleiçons livres da RDA de março de 1990.
O entom Chanceler alemám, Helmut Kohl, prometeu aos alemáns do Leste "paisagens floridas" (blühenden Landschaften) e realizou-nos num primeiro momento, polo menos na imaginaçom, ao estabelecer em maio a paridade 1-1 entre o deusche mark e o marco do Leste para popanças de 6000 marcos (umha fortuna na RDA, e dous meses de ordenado de jornalista da RFA entom) e de 1-2 para patrimónios mais altos. Os alemáns do Leste sentírom-se ocmo se lhes tocara a lotaria. Naquela euforia carregada de promesas de abundáncia, disolvêrom-se os programas e discursos, maioritariamente verdes e socialistoides, que manejavam os seus líderes civis, escritores, intelectuais e desidentes.
Lembremos que o Neues Forum advogava por umha "forte participaçom dos trabalhadores", a Initiative für Frieden und Menschenrechte queria, "estruturas descentralizadas e autogestionadas" a Vereinigte Linke propunha um "controlo colectivo dos trabalhadores sobre as empresas e a sociedade" e falava dumh "socializaçom de verdade" em vez dumha "socializaçom formal-estatista" e que o SPD do Leste dizia cousas semelhantes. O governo de transiçom da RDA criou umha instituiçom fiduciária (Treuhandanstalt) em cujas maos se puxo a administraçom de toda a propriedade do país com a missom de "mantê-la para o povo da RDA".
Todo isso foi apagado e varrido polas eleiçons, e, dous meses depois, em junho de 1990, o primeiro governo eleito do país, já dominado polas elites da CDU de Helmut Kohl, converteu o Treuhandanstalt num aparato para a privatizaçom, via restituiçom (a antigos proprietários) ou venda, da propriedade pública. Umha possibilidade de terceira via socializante, foi convertida, sem a menor consulta social, em mera restauraçom da ordem anterior à existência da RDA mediante a privatizaçom do património nacional. Nessa restauraçom dos alemáns do Leste, antigos teóricos co-proprietários do doce, fôrom excluídos e desposseídos, o que Schily qualificou de "gigantesca expropriaçom".
Para 1994, 8.000 empresas do Leste já estavam em maos de "inversores privados" do Oeste, tinham sido fechadas ou adquiridas a preço de bagatela, e 2'5 milhons de alemáns do Leste ficaram sem trabalho, porque o tecido industrial do seu antigo país tinha desaparecido.
A Alemanha que nom pudo ser, trocou-se por plátanos, pola garantia imediata dum consumo resplandecente. O escritor Ingo Schultze di que, "houvo umha oferta marabilhosa que se impuxo sobre qualquer consideraçom crítica". A cena recorda à de aqueles brancos coloniais que mudavam colares de contas e espelhinhos, por ouro e marfim aos primeiros nativos africanos. A economia alemá ainda arrastra algumhas sérias conseqüências daquilo. A sociedade também: o amargo sentimento de desposesom e desencanto que expressa ainda hoje umha parte considerável dos alemáns do Leste, é o resultado... Porém a jogada dumha reunificaçom sem lanhos para a direita triunfou. E disso se tratava.
A possiblidade dumha nova Alemanha, com umha nova constituiçom que abolira a vigente proibiçom de greve política ou a existência dumha polícia política no oeste, o BFV, umha Alemanha sem tropas americanas e sem pertença à NATO - o que teria acabado definitivamente com esta organizaçom e com a subordinaçom histórica de Europa a Washintong- e que abrira a porta a novo a um novo Modell Deutchland com determinadas concesons do capital a umha orde mais social na naçom em troca dumha reunificaçom nacional, todo isso, arrojou-se como um anel à auga.
A questom fundamentel de toda revoluçom é a questom da propriedade. Para valorar as revoluçons europeias de 1990, há que fixar-se no que passou nela. A teor dos resultados sócio-económicos do movimento social alemám oriental de 1989/90, é óbvio que nom se pode falar de "revoluçom", mas bem dumha tentativa falida de reforma que seguiu umha sucedida queda da ditadura qeu nom teria tido lugar sem a surpreendente mudança no centro imperial (Moscovo). Sem chegar a níveis russos, as "privatizaçon" na Europa do Leste disparárom o roubo, a especulaçom e a desigualdade em todo o continente até níveis desconhecidos, até em Alemanha, onde o número de milhonários aumentou 40% no leste do país após a reunificaçom.
Nova-velha orde europeia
Na orde exterior, para os EUA o único importante da reunificaçom era que, "Alemanha seguina na NATO porque dessa forma a influência de América na Europa ficava garantida". Assim o afirma Condoleezza Rice, que entom era conselheira da Casa Branca para o tema alemám, na sua entrevista desta semana com Der Spiegel. Rice repete este ponto em seis ocasions, deixando bem clarinho que esse era o tema central da jogada. " O que nom fora isso equivaleria a umha capitulaçom de América", di. Kohl sabia que gararantindo-lhes a continuidade da NATO teria os americanos da sua parte. No tocante aos soviéticos, simplesmente, nom tinham umha política para tirar-lhe partido a sua histórica retirada de Europa central/oriental, da que Alemanha era o centro. Como explico no meu livro sobre a transiçom russa, em Moscovo propiciou-se umha "queda optimista da orde europeia".
A retirada soviética foi espléndida no seu sentido geral, um exemplo de ocaso imperial voluntário e pacífico, mas também completamente falida na sua negociaçom, por mor do optimismo intrínseco de Gorbachov e da aussência de concepçons, ou da vontade para negociar a sério como no caso da "casa comum europeia", com um sistema de segurança unificado "de Lisboa a Vladivostok", etc. Com os soviéticos nesse estado, digamos ingénuo, e os americanos assegurados na sua única preocupaçom, as reticências de franceses, polacos ou británicos à reunificaçom, fôrom pam comido para Kohl.
A maioria dos alemáns, do Leste e do Oeste - e isto reconhece-o o próprio Kohl nas suas memórias- prefeririam umha Alemanha fora da NATO. Os inquéritos de fevereiro de 1990 outorgavam um apoio de 60% a esse cenário. Nem Moscova, nem as forças políticas germanas jogárom com isso e a ocasiom perdeu-se. A conseqüência foi umha guerra em Jugoslávia, cujo sentido essencial foi dar razom de ser a umha NATO em paro, e agora o Afeganistám, onde a maioria das naçons europeias estám colaborando miseravelmente numha criminal necedade imperial carente de toda perspectiva. A inercial participaçom militar europeia no Afeganistám, contrasta muito com a soidade que Washington conheceu na Europa dos sessenta e setenta durante a guerra do Vietname, quando até o Reino Unido se negou a enviar tropas.
Alguns historiadores descrevem a Alemanah como o país das revoluçon falidas por excelência. Com a sua gloriosa reunificaçom de 1990, o país fixo honra a essa tradiçom. A reunificaçom tivo lugar, mas o seu vector popular nom impuxo nengumha mudança significativa de futuro na nova realidade, e deixou-se seqüestrar pola direita e os poderes fácticos do oeste cujo programa era umha restauraçom. O resultado da anexom do Leste, tanto a nível alemám como continental, foi mais do mesmo.
Todo o Leste de Europa (agás a Jogoslávia nom alinhada, o que explica muito por quê se promocionou desde fora a desintegraçom nacional, que, desde logo, também tinha claros factores internos) seguiu a mesma pauta: por umha banda as sociedades liberárom-se e normalizárom-se em muitos aspeitos, um bem indiscutível, mas o preço foi umha hegemonia das forças conservadoras e umha continuidade da orde subordinadas posterior a 1945, agora com umha só potência, que explicam muito do lamentável aspeito que oferece o nosso continente vinte anos depois.
Privado do espantalho do "comunismo", em Europa o sistema fai-se mais brutal e desinibido. Se de ele apenas dependera, levaria-nos de regresso, e dum tiro, ao século XIX no social e nom político (o um nom vai sem o outro), proibindo o direito à greve, convertendo em ainda mais caricaturesco o actual pluralismo e regressando a velhas doenças europeias, que hoje assomam por toda a parte ao calor da crise: racismo, despreço do débil, egoismo social...
É verdade que poderia ter sido ainda pior, e nom por casualidade empezamos com isso, mas também o é, e isso é o que importa de verdade para o futuro, que Alemanha e toda Europa deixárom passar, há vinte anos, umha ocasiom histórica para fazer as cousas algo melhor.
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