A história proibida da aliança entre Washington e o homem que ordenaria os ataques de 11 de setembro
A ordem formal para detonar o último esconderijo de Bin Laden foi dada por Barack Obama na manhã de sexta-feira, informou nesta manhã (2/5) o New York Times. Antes de rumar para o Alabama, onde acompanhou o socorro às vítimas de tornados violentos, o presidente determinou que forças especiais da central de inteligência dos EUA – a CIA desencadeassem o ataque. Instalado numa casa em Abbottabad, a apenas 50 quilômetros da capital do Paquistão, o líder da Al Qaeda teria resistido ao comando que o localizou. Segundo fontes norte-americanas, foi ferido na cabeça e em seguida, estranhamente, sepultado no mar. As circunstâncias exatas da operação ainda são desconhecidas.
Ironicamente, a CIA, encarregada de conduzir a operação que liquidou Bin Laden, está estreitamente associada ao surgimento do terrorista. Pouco se falará a respeito, nos próximos dias, mas tanto o homem de barbas longas e olhar calmo quanto a própria Al Qaeda forma conscientemente criados pelos Estados Unidos, no contexto da disputa contra a União Soviética, na “guerra fria”.
Os fatos estão estão disponíveis em algumas publicações alternativas norte-americanas, entre as quais destacam-se, o site Z-Net, a revista The Nation. Para esta escreve Robert Fisk, um repórter veterano e especializado em questões de Oriente Médio. Ele escreve fala com a autoridade de quem se encontrou várias vezes, na condição de jornalista, com Bin Laden.
A última delas, conta, foi em 1997, nas montanhas do Afeganistão. Avistou o saudita na pose e nos trajes em que aparece costumeiramente na imprensa ocidental. Roupas afegãs tradicionais, refestelado em sua caverna, ar tranqüilo. Bin Laden aparentou um conhecimento muito superficial sobre a situação do mundo. Atirou-se sobre o jornal que Fisk tinha consigo. Deu a entender que a leitura lhe trazia muitas novidades, mas abandonou a atividade depois de meia hora. Preferiu falar sobre sua crença na proteção que lhe seria assegurada por Alá. Relatou os muitos episódios em que, ao enfrentar os ocupantes soviéticos do Afeganistão, salvou-se porque os foguetes que foram atirados sobre seus esconderijos deixaram de explodir. Afirmou não temer a morte, porque “como muçulmano, acredito que, quando morremos em combate, vamos para o Paraíso”. Mas não deixou, nem por um instante, o abrigo em que se encontrava. Fisk registra: era “uma relíquia dos dias em que combateu os soviéticos: um nicho de oito metros de altura escavado na rocha, à prova até mesmo de ataques de mísseis”.
Em nome da vitória sobre os soviéticos, acordo com os extremistas
Num outro texto — um artigo analítico assinado por Dilip Hiro, intitulado “O custo da ‘vitória’ afegã” The Nation revive as circunstâncias da aliança que acabaria envolvendo Washington e Bin Laden. O cenário é o Afeganistão; a época, a última fase da Guerra Fria. Em 1979, um golpe militar havia levado ao poder grupos ligados à União Soviética (URSS). Anticomunista fervoroso, Zbigniew Brzezinsky, assessor de Segurança Nacional do então presidente Jimmy Carter, vislumbra uma oportunidade de passar da defesa ao ataque. Não quer apenas reinstalar em Kabul um governo aliado ao Ocidente. Pretende disseminar, entre as populações muçulmanas da URSS, um tipo de pensamento religioso capaz de incitá-las ao máximo contra o governo de Moscou. The Nation frisa: havia alternativas, mesmo para os que, como o assessor de Segurança Nacional, estavam empenhados em promover a Guerra Fria. Exitiam no Afeganistão “diversos grupos seculares e nacionalistas opostos aos soviéticos”. Ao invés de apoiá-los, no entanto, a Casa Branca parte para o que julga ser uma cartada genial. Impulsiona as organizações afegãs mais fundamentalistas, reunidas, desde 1983, na Aliança Islâmica do Mujahedin Afegão (IAAM, em inglês).
Os instrutores valorizam ao máximo a guerra santa (Jihad) contra Moscou. A Casa Branca quer matar dois coelhos com uma só paulada. A suposta defesa do islamismo contra os ateus soviéticos serve para consolidar, no Paquistão, o poder de Zia ul-Haq, fiel aliado do Ocidente. O terceiro elo da coalizão é a Arábia Saudita, onde outro governo pró-americano, embora muito rico, necessita de reforço ideológico. Ao longo de alguns anos, os príncipes sauditas serão convidados a “doar” 20 bilhões de dólares para a cruzada da IAAM. Através da CIA, os Estados Unidos comparecerão com mais US$ 20 bi. Os rios de dinheiro verde servirão para recurtar e formar guerrilheiros fanatizados e armá-los até os dentes. Fazem parte de seu arsenal mísseis anti-helicópteros que serão decisivos para enfrentar e vencer tanto o governo pró-URSS quanto as próprias tropas soviéticas, que, em favor de seu aliado, ocuparam o país em 1979.
Um milionário saudita adere a estranhos “lutadores da liberdade”
É esse clima de extremismo e intolerância suscitado por Washington que atrairá o saudita Osama bin Laden ao Afeganistão. No início dos anos 80, quando chegou ao país, ele era apenas o jovem herdeiro milionário de uma família de empresários do ramo da construção. Estava fascinado pela jihad patrocinada pelos EUA. Foi o primeiro saudita a aderir a ela, e levou consigo, ao longo do tempo, pelo menos 4 mil compatriotas. Tornou-se líder dos “voluntários” no Afeganistão. Aproximou-se dos dirigentes do IAAM, que, graças ao apoio recebido da Casa Branca, constituiriam anos depois o governo Taliban. Construiu abrigos reforçados para depósito de armas, participou de ações guerrilheiras. Jamais lhe faltou apoio moral do Ocidente. O repórter Robert Fisk relata: “Estava no Afeganistão em 1980, quando Laden chegou. Ainda tenho minhas notas de reportagem daqueles dias. Elas recordam que os guerilheiros mujahedin queimavam escolas e cortavam as gargantas das professoras, porque o governo tinha decidido formar classes mistas, com meninos e meninas. O Times de Londres os chamava de ‘lutadores da liberdade’. Mais tarde, quando os mujahedins derrubaram (com um míssil inglês Blowpipe) um avião civil afegão com tripulação e 49 passageiros, o mesmo jornal os chamou de ‘rebeldes’. Estranhamente, a palavra ‘terroristas’ nunca foi usada para qualificá-los”
A partir de 1989, com o colapso do governo pró-soviético no Afeganistão e da própria União Soviética, os “voluntários” começaram a voltar a seus países. Ao retornarem ao mundo árabe, explica Dilip Hiro, formaram um grupo à parte, que se tornou conhecido como os “afegãos”. Tinham marcas muito características. A intolerância e o desprezo pela vida humana eram os mesmos cultivados sob comando e por determinação consciente dos Estados Unidos. Haviam adquirido, nos anos da luta anti-soviética, alta capacitação em práticas terroristas. Eram, contudo, menos inexperientes do ponto de vista político. Passaram a observar que países como a Arábia Saudita e o Egito eram governados por elites tão submissas aos Estados Unidos quanto era subordinado aos soviéticos o governo afegão contra o qual lutaram.
A cobra volta-se contra o ninho em que se criou
A guerra do Golfo os voltou de vez contra Washington. Encerrada a campanha contra o Iraque, em 1991, a Casa Branca descumpriu a promessa de retirar da Arábia Saudita — país onde estão as cidades sagradas de Meca e Medina — as bases militares e os milhares de soldados mobilizados contra Saddan Hussein. Bin Laden e seus liderados lembraram que isso contraria a Sharia , lei islâmica. Em 1993, o rei Fahd, talvez o mais fiel aliado dos EUA no mundo árabe, ainda cortejou o milionário, chegando a ponto de nomeá-lo para um Conselho Consultivo real. Em 94, depois de novos desentendimentos, Bin Laden foi expulso da Arábia Saudita. Em 96, declarou uma jihad contra a presença norte-americana no país. Afirmou então que “expulsar do ocupante americano é o mais importante dever dos muçulmanos, depois do dever da crença em Deus”. Dois anos depois, uma declaração conjunta assinada por uma frente de organizações fundamentalistas formada por Bin Laden exortava: “A determinação de matar os americanos e seus aliados — civis e militares — é um dever individual para todo muçulmano que possa fazê-lo em qualquer país onde isso for possível, com objetivo de libertar de suas garras a Mesquita de Al-Aqsa [em Jerusalém] e a Mesquita Sagrada [Meca]. Isso está em consonância com as palavras de Deus todo poderoso”.
Em seu relato para The Nation, Robert Fisk lembra que Bin Laden não é o primeiro aliado com quem a Casa Branca se relaciona intimamente durante certo tempo, para mais tarde, quando já não necessita de seus serviços, acusá-lo — com ou sem motivos — de terrorista. Ele cita os casos de Saddan Hussein, visto como herói quando atacou com armas químicas o Irã; ou de Iasser Arafat, considerado “super-terrorista” quando liderava a luta pela libertação da Palestina e mais tarde “respeitável homem de Estado”, ao firmar com Israel acordos de paz jamais cumpridos.
Bastaria olhar para a América Latina para encontrar outros múltiplos exemplos de relações privilegiadas entre Washington e terroristas, praticantes de golpes de Estado, governantes tirânicos, corruptos, torturadores. Num outro sentido, menos direto, porém mais ameaçador, a aliança com o terror está, aliás, sendo reeditada neste exato momento. Bin Laden usa a opressão dos EUA e de Israel contra o mundo árabe como pretexto para justificar sua intolerância e atos criminosos. Todas as declarações dos governantes norte-americanos feitas após os atentados de 11 de setembro indicam que a Casa Branca pretendem apoiar-se no risco real do terror para desencadear uma ofensiva militar e política que, se não for barrada, transformará o planeta num local muito mais violento, antidemocrático e desigual. Talvez por isso, as sociedades tenham o direito de dizer que, contra a barbárie dos extremistas e do Império, a única saída é a construção de um mundo novo.
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