15/12/2011

O outro Steve Jobs

Vicenç Navarro. Artigo tirado de aqui e traduzido por nós.

A morte de Steve Jobs, fundador e dirigente da empresa Apple, foi o espetáculo mediático empresarial mais teatral vivido neste ano. Durante as últimas semanas vimos uma enorme mobilização dos maiores meios de informação internacionais, baixo a batuta do establishment empresarial estadounidense (o que se chama em EEUU a Corporate Class), para celebrar a vida do que foi canonizado unanimemente por tais meios. Um dos maiores rotativos do país assegurou inclusive que tivera "uma vida exemplar ou extraordinária", que mostrava o enorme potencial que um ser humano pode atingir baixo o capitalismo estadounidense. Nesta construção mediática apresentou-se a Steve Jobs como uma pessoa de origens humildes que atingiu pelo seu próprio mérito a cimeira do mundo empresarial, criando novos produtos que beneficiaram a toda a humanidade. Nesta projeção mediática, Steve Jobs é o self-made man, empreendedor por antonomasia que, a base de génio e ambição, chegou a uns níveis de grandeza que poucos atingem no nosso mundo.

Para não ser menos, os rotativos de maior difusão e influência em Espanha utilizaram também adjetivos superlativos para o descrever. Definiram-lhe como "exemplar", "extraordinário", "inspirador", "magnífico" ou "um homem que quis dar amor na sua dedicação a satisfazer às massas", "pioneiro", digno de "admiração", "respeito" e "agradecimiento", "fonte de inspiração para os empreendedores espanhóis", "um grande criador de postos de trabalho", e assim um longo etcétera. Poderia continuar e continuar com uma longa lista de cantos e louvores à figura do empreendedor cujo génio supôs o sucesso do capitalismo.

Nesta divinização (e não acho exagerado este termo para definir o clamor unânime de louvores) ignoram-se vários factos da sua biografia que dão outra versão da personagem. Em realidade, Steve Jobs era muito representativo do empreendedor que fez uma enorme fortuna a base de utilizar e explodir para benefício próprio bens comuns sem os quais não atingisse o seu sucesso. É mais, a sua fortuna baseou-se, em parte, em uma enorme exploração de outros seres humanos. Vejamos os dados, começando pelas suas características como empresário empleador. Apple, a empresa de Steve Jobs, não fabrica os seus produtos em EEUU. Fá-lo em Shenzen, uma cidade da China conhecida como o Silicon Valley chinês, onde trabalham 420.000 trabalhadores em condições miseráveis. O grupo empresarial Foxconn dirige tal conglomerado de indústrias que produzem aparelhos eletrónicos. Neste local, incluídas as fábricas de Apple, explode-se brutalmente aos seus trabalhadores (não é estranho que trabalhem seis dias à semana 16 horas ao dia) em condições militares nas suas correntes de montagem. Existe um ambiente de terror bem documentado pela obra de Mike Daisey (The agony and the ecstasi of Steve Jobs) em nenhuma parte mencionada na bacanal de elogios escritos a razão da homenagem à sua figura.

A sua fortuna pessoal (estimada em 8.500 milhões de dólares) e os enormes benefícios da sua empresa baseavam-se, em parte, nesta súper exploração de outros seres humanos. O número de suicídios, consequência das horríveis condições de trabalho, foi denunciado em vários meios internacionais. Segundo o diário londrino Daily Mail, aos trabalhadores das fábricas de Apple na China força-se-lhes a assinar um contrato no que se comprometem, eles e as suas famílias, a não denunciar e a não levar à companhia aos tribunais em caso de acidente, dano, morte ou suicídio.

A insensibilidad para as condições de trabalho nas suas empresas refletia uma atitude muito representativa do grande empreendedor do século XX. O seu antagonismo, quase hostilidade, para a classe trabalhadora, era bem conhecido. Como assinala Eric Alterman no seu artigo titulado "Steve Jobs. Uma vergonha americana" ("Steve Jobs. An American Disgrace" publicado em The Nation. 28-11-11), Steve Jobs aconselhava ao presidente Obama a imitar a China e permitir às empresas estadounidenses fizessem, não só na China, senão também em EEUU, o que quisessem, sem nenhum tipo de proteção aos trabalhadores nem ao médio ambiente.

A sua obsessão era acumular dinheiro, sem nenhum travão em isso. Era o "perfeito empreendedor" da Corporate America, que se nos quer apresentar como modelo e exemplo. Não se conhece que desse dinheiro a atos sociais benéficos, como os súper ricos costumam fazer naquele país como estratégia de marketing para melhorar a sua imagem. Em realidade, ridiculizó a Bill Gates por criar uma fundação que leva o seu nome, atribuindo um suposto atraso tecnológico das empresas de Bill Gates (a hostilidade de Steve Jobs para Bill Gates era bem conhecida) ao "excessivo interesse de Bill Gates em ajudar aos pobres". Steve Jobs era uma personagem que pertencia ao mundo definido por Charles Dickens.

Uma última observação. As empresas Apple e a grande maioria de "inventos da indústria eletrónica" baseiam-se no conhecimento da investigação básica produzida em outras instituições, frequentemente centros académicos financiados publicamente pelo Governo federal de EEUU, especializados em temas militares ou aeroespaciales. Internet é um claro exemplo disso. O conhecimento que produziu Internet, por exemplo, procedia dos investimentos públicos. Parece ignorar-se que o Governo federal de EEUU tem uma das políticas industriais mais desenvolvidas na OCDE, investindo enormemente em investigação e desenvolvimento. A indústria eletrónica explodiu tal conhecimento público para os seus fins privados. Sem desmerecer a importância da investigação aplicada e da criação intelectual, há que assinalar que a escada que lhes permite subir foi construída por outros, ponto também esquecido nesta biografia de uma personagem representativa do que significa o capitalismo sem luvas e sem limites.

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