17/12/2011

A Rússia dos indignados

Artigo tirado do portal Esquerda.net (aqui).

As eleições na Rússia aconteceram como de costume, com falsificações massivas e com a pressão dos poderes para assegurar a vitória do partido do poder “Rússia Unida”. O que muda, é a amplitude dos protestos contra estas falsificações. Por Carine Clément.
A polícia tem reprimido os manifestantes que contestam o resultado eleitoral na Rússia.
A polícia tem reprimido os manifestantes que contestam o resultado eleitoral na Rússia. Foto Ilya Varlamov/Flickr
 
Desta vez, uma grande parte da população levanta-se para testemunhar: “Nós não votámos em vós!”. Os números significam pouca coisa (lembremo-los na mesma: 49,54% pela “Rússia Unida”, 19,16% pelo Partido Comunista, 13,22% pela “Rússia Justa” e 11,66% pelo partido do nacionalista demagógico Jirinovski). O partido do poder perdeu, pois, a maioria constitucional na Duma e passou para baixo da fasquia dos 50%.

Mas para uma grande parte dos comentadores, este número sobrevaloriza o verdadeiro resultado da “Rússia Unida” em 10 a 15%. E, de qualquer maneira, é um resultado puramente “desenhado”, como dizem os russos. Resulta de uma concessão feita ao descontentamento crescente duma grande parte da população face ao “partido dos burlistas e dos ladrões” (assim como é correntemente designado o partido no poder, fórmula inventada e popularizada pelo bloguista Alexeï Nabalny).

Com efeito, no início da campanha, os governadores regionais recebiam do Centro Federal objectivos da ordem dos 60-70% dos votos. Por falta de sorte, este gesto de príncipe não foi suficiente para acalmar a cólera, muito pelo contrário.

Desde o dia seguinte às eleições, quase 10.000 pessoas estavam nas ruas a manifestar-se em Moscovo, um pouco menos em São Petersburgo. Mais de 300 pessoas foram detidas em Moscovo, à volta de 200 em São Petersburgo. O que não impediu as mobilizações de continuarem durante os dias seguintes, assim como as detenções. [No sábado, 10 de Dezembro, a manifestação, em Moscovo, foi de uma amplitude sem precedentes. Segundo a correspondente de RFI, Anastasia Becchio: “Um polícia que escuta os discursos resume a situação: “Vamos poder pôr uma cruz sobre as nossas férias de ano novo.” Réd.]

Como explicar esta reviravolta da situação, quando a maioria dos eleitores e eleitoras, desde um certo tempo, se tinham habituado a que os seus votos não valessem grande coisa? Quem são estas pessoas que saem à rua apesar da ameaça de detenções?

A mobilização resulta, em grande parte, da impopularidade crescente do partido no poder, não só facto da sua política anti-social, mas igualmente e sobretudo por causa da arrogância dos seus representantes, do seu desprezo pelos simples cidadãos, da sua corrupção e atracção pelo lucro.

O slogan mais popular durante a campanha eleitoral, em todo o caso entre os que se interessam por pouco que seja pela política, era “Votai por qualquer partido, à excepção do dos vigaristas e ladrões!”. E a esperança nasceu de conseguir ridicularizar esse partido de burocratas e dirigentes presunçosos que acreditam que tudo lhes é permitido.

Muito mais que aquando das eleições precedentes, os simples cidadãos mobilizaram-se para ser observadores aquando das eleições, para um ou outro partido da oposição ou mesmo de maneira independente (uma campanha para incitar as pessoas a voluntariarem-se para serem observadores, foi levada a cabo, entre outros, pela associação “GOLOS” denunciada pelo poder por estar dependente de “potências estrangeiras”).

E uma coisa é ouvir falar vagamente de fraudes, uma outra é ser-se expulso manu militari do local de voto porque se é demasiado incómodo, é assistir ao enchimento das urnas, é ver chegar autocarros inteiros de votantes estritamente recrutados, é ter um protocolo nas mãos e encontrar números completamente diferentes no sítio oficial da Comissão Eleitoral central ou regional. Na internet abundam vídeos e testemunhos indignados publicados por estes observadores. É pessoal, é assombroso, choca!

Muitos de entre estes observadores desceram à rua, muitos dos seus amigos, colegas, parentes. E de resto, todos e todas que se activam nas redes sociais da Net e todos quantos, desiludidos, esperavam uma derrota mais marcada da Rússia Unida. Muitos jovens, muito mais impertinentes que os seus antepassados, que trazem um novo estilo, uma outra relação com a autoridade. 

Imensa gente nova que nunca tinha, até aqui, posto os pés em nenhuma manifestação. E alguns, de entre estes noviços, foram, desde a primeira vez, parar ao posto de polícia, à espera de julgamento até 48 horas, em comissariados nada preparados para deter tantas pessoas, amontoadas umas em cima das outras, sem alimentos. Para finalmente se verem condenados a penas que vão até aos 15 dias de detenção!

Pois bem, a julgar pelos testemunhos que atravessam os muros das prisões, em vez de ficarem intimidados e de fazer uma confissão pública, estes “noviços” começam greves de fome e radicalizam-se. Ou então retomam o caminho da rua, uma vez libertados.

Indignação face às falsificações, a brutalidade e o cinismo nas fraudes, a cólera de serem assim despojados dos seus votos, a solidariedade para com aqueles que foram injustamente detidos por terem simplesmente querido manifestar pacificamente a sua rejeição a eleições falsificadas – eis os ingredientes da mobilização que se torna doravante bola de neve.

Com, além disso, o apoio de fazedores de opinião populares no seu domínio. Entre eles, há de tudo: jornalistas, cantores e outros artistas, cronistas (incluindo mundanos). É também um sinal, quando estas pessoas criticam abertamente: os protestos de rua tornar-se-ão moda? Eram até aqui o monopólio dos “falhados” ou dos “idiotas”.

Tanto mais que, por uma vez (não tinha acontecido desde a Perestroïka), os acontecimentos passam-se na capital, é Moscovo, a burguesia farta, a intelectual, a privilegiada, que dá o exemplo. Os media não podem ignorar manifestações tão massivas em Moscovo (à parte as duas cadeias de televisão oficiais); o país inteiro segue atentamente o que se passa e começa a agir. No 10 de Dezembro [artigo escrito no 9 de Dezembro 2011] uma jornada nacional de protesto contra as falsificações prepara-se, um pouco por todo o país.

Os partidos da oposição parlamentar desempenham papéis secundários, apanham o comboio em marcha (e ainda, nem todos e nem em todas as regiões, e em medidas mais ou menos importantes). As pessoas organizam-se, em primeira instância, a si próprias, através das redes sociais e da Net. Ou então utilizam os acontecimentos organizados pelos partidos políticos, mas para deles se apropriarem completamente.

Uma palavra, em particular, sobre a direita liberal (os Boris Nemtsov, Ilia Iachine ou Garry Kasparov apresentados pela imprensa francesa como figuras de proa da mobilização). Primeiro, a mobilização é completamente espontânea e “grass root” [vinda de baixo, do terreno], sem líderes reconhecidos e sobretudo sem filiação partidária, nem com os partidos da oposição sistémica (representados na Duma federal), nem com os da oposição não sistémica.

Quando muito, podemos falar de simpatias por tal ou tal líder de opinião (nomeadamente o bloguista já citado Navalny). Mas nenhum partido, nenhum movimento – político ou social – pode gabar-se de organizar o movimento de cólera actual, ainda menos de o representar. Ora, é justamente o que se activam a fazer, em primeiro lugar, as vedetas do show político citadas mais acima, que dirigem organizações anti-Poutine do tipo “Outra Rússia” ou Solidarnost. Querer fazer-se passar pelo elemento mais representativo da mobilização actual na Rússia, é enganar-se redondamente, é confundir a “Revolução Laranja” da Ucrânia com o movimento de revolta espontânea, largamente auto-organizada e repudiando toda instrumentalização (as pessoas querem precisamente reapropriar-se da sua voz!) que se desenvolve actualmente na Rússia. 

Como prova da piedade democrática de Nemtsov, por exemplo, basta citar o último escândalo recente: na noite de 8 para 9 de Dezembro, nas costas dos organizadores oficiais, Nemtsov acordou com a Câmara de Moscovo transferir o grande ajuntamento do 10 de Dezembro da Praça da Revolução para a Praça “Bolotnaïa” (que faz bem jus ao seu nome “pantanoso”) – sem consultar nenhuma das pessoas chave da mobilização e enquanto um dos organizadores oficiais, Sergueï Udaltsov, (Frente de esquerda) jazia num leito de hospital, depois de uma greve de fome começada na prisão. E que uma pessoa farol, simbolicamente para o movimento, Alexeï Navalny, curtia a sua pena de prisão de 15 dias, consequência da manifestação do 5 de Dezembro em Moscovo.

Outra característica a anotar: a presença bastante tímida dos movimentos sociais e a fortiori dos sindicatos. Aqui, há o receio de se envolverem num combate claramente político e há falta de flexibilidade destes movimentos para se abrirem a causas não directamente relacionadas com o seu objecto primário de luta.

Mas se os movimentos sociais participam pouco, enquanto tais, a maior parte dos seus militantes estão no terreno. Em Moscovo, por exemplo, Evgenia Tchirikova, líder do movimento de defesa da floresta de Khimki (subúrbio de Moscovo) e estrela ascendente dos novos movimentos sociais, faz parte das figuras emblemáticas da mobilização na capital [ver o artigo neste sítio: “A batalha de Khimki”].

Em suma, é uma atmosfera de democracia de rua que se instala, bastante desconhecida na Rússia pós-soviética até agora. O acordar daqueles que se recusam a deixar-se manipular sem dar a voz. Um grande teste para a durabilidade e as perspectivas deste movimento terá lugar amanhã, 10 de Dezembro, aquando da jornada nacional de protesto. (9 de Dezembro 2001).

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