05/07/2010

A anatomia do medo

Immanuel Wallerstein. Artigo tirado de aqui. Tradução de Luís Leiria, revista pelo autor.


O medo é a mais universal emoção pública na maioria do mundo actual. Este medo não é irracional, mas não conduz necessariamente a formas sábias de lidar com os presumíveis perigos. O modo como actua pode ser claramente compreendido em dois acontecimentos importantes do passado recente. O primeiro foi a dramática queda da Bolsa de Valores de Nova York a 6 de Maio deste ano – uma queda que espantou a todos e durou apenas poucos minutos. O segundo foram as revoltas em Atenas, que já causaram três mortes e que continuam.

O que aconteceu na Bolsa? Parece que, naquela manhã, a média do Dow Jones industrial caíra cerca de 300 pontos. Foi uma descida considerável (cerca de 3%), mas que não parecia uma reacção incomum a uma combinação de más notícias em várias frentes nos Estados Unidos, a que se juntaram as crescentes incertezas sobre as probabilidades de a Grécia evitar a bancarrota.

Mas, de repente, no fim da tarde, o Dow caiu mais 700 pontos com rapidez incrível. Foi a maior queda de transacções jamais registada num só dia. Ninguém a previu, e aparentemente deixou os operadores estupefactos. Algumas acções importantes caíram 90% e passaram a valer um cêntimo. Então, os operadores “assistiram, boquiabertos”, e quase com a mesma rapidez que acontecera a queda, ao Dow a subir de novo, terminando com uma perda de “apenas” 371,80 pontos – para o aparente alívio dos operadores do mercado.

Evidentemente que todos procuraram uma explicação. A primeira fornecida foi que um único operador tinha um “dedo gordo” e pode ter introduzido uma operação de milhares de milhões, quando o que queria eram milhões. O problema com esta explicação foi que ninguém conseguiu localizar esta pessoa ou demonstrar que ele existe ou teve, de facto, um “dedo gordo”.

Começou então a circular uma explicação alternativa. A Bolsa de Nova York tem um mecanismo de desaceleração quando as operações parecem estar demasiado rápidas. Mas outras bolsas não têm o mesmo mecanismo. Assim, dizem alguns, os operadores, diante da desaceleração da Bolsa de Nova York, decidiram transferir as operações para outras bolsas. Alguns sugerem outra variante desta explicação: a culpa foi das chamadas estratégias algorítmicas de operação, que envolvem mecanismos automáticos de compra e venda pré-programados para fazer essa transferência. A falta de coordenação entre as várias bolsas, diz-se, é culpa dos regulamentos, e agora alguns argumentam que todas as bolsas deveriam ter mecanismos de desaceleração conjuntos. Para outros, a queda pode ter sido causada por um mecanismo automático, assim não se pode culpar máquinas em vez de pessoas.

Todas estas explicações podem ou não ser válidas. Mas omitem o facto de que, em vários pontos, intervieram decisões humanas – para reagir ao início da queda, para desacelerar as operações, para começar outra vez a comprar e permitir a subida do Dow. E é aqui que entra o factor medo.

Uma Bolsa de Valores envolve, por definição, risco e incerteza. Mas os operadores dependem fundamentalmente de sentir que as flutuações são relativamente pequenas e que ocorrem dentro de uma amplitude expectável. Quando as flutuações começam a ficar selvagens, ou seja, extensas e súbitas, os operadores entram compreensivelmente em pânico. E quando entram em pânico, inevitavelmente acentuam as flutuações posteriores. É um círculo vicioso.

No exacto momento em que os operadores de Nova York entraram em pânico, viam nos seus ecrãs os conflitos de rua em Atenas. Isso ainda os preocupou mais, por duas razões. Estavam mergulhados na incerteza acerca de como seria a decisão final dos países da União Europeia de ajudar a Grécia (ou mesmo se o fariam). Estavam mergulhados na incerteza acerca das implicações que teria nos bancos dos EUA, da Europa ocidental e do Japão a acção europeia (ou inacção) sobre os problemas da Grécia. E estavam mergulhados na incerteza sobre se a potencial falência da Grécia traria consigo um desemaranhamento global do mercado mundial.

Mas, acima de tudo, tinham razão de temer os conflitos gregos. Os conflitos eram o resultado dos temores da Grécia. O que mais preocupava os gregos era a grande probabilidade de sofrer uma redução drástica dos seus rendimentos reais nos próximos anos. Estavam furiosos por causa disso e com muito medo. E não estavam nada convencidos de serem os culpados, e de terem de pagar por isso.

Mas os temores dos cidadãos gregos são claramente apenas a ponta do iceberg, como muito bem sabem os líderes dos governos e os operadores das bolsas de todo o mundo. O problema do governo grego é bastante simples. A sua arrecadação fiscal é demasiado pequena e o seu nível de gastos demasiado alto para os seus rendimentos correntes e num futuro previsível. Por isso, ou aumenta os impostos (se os conseguir colectar) ou corta gastos, ou ambas as coisas – e drasticamente. Mas este é também o problema da Alemanha, da França, da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos, e a lista prolonga-se. Nem os poucos países que parecem ter, de momento, as suas cabeças fiscais acima da linha d'água (como o Brasil e a China) estão isentos deste contágio. Os gregos estão a tomar as ruas em protesto. Mas isto vai espalhar-se. E, à medida em que se espalhar, o mercado mundial tornar-se-á ainda mais volátil, e os medos vão crescer, não diminuir.

A principal resposta política em todo o lado foi ganhar tempo com papel moeda emprestado ou impresso. A esperança é que, de alguma forma, no tempo do empréstimo ocorra um renovado crescimento económico que restore a confiança, pondo fim aos pânicos latentes e reais. Os políticos agarram cada pequeno sinal deste crescimento e exageram a sua interpretação. O bom exemplo é o aplauso recente à criação de empregos nos Estados Unidos, quando esta foi menor que o crescimento da população no mesmo período.

O medo não é irracional. É a consequência da crise estrutural do sistema-mundo. Não pode ser resolvida com os adesivos que os governos estão a usar para tratar as sérias doenças que enfrentamos actualmente. Quando as flutuações se tornam muito grandes e rápidas, ninguém pode fazer planos racionais. Assim, as pessoas deixam de agir como actores razoavelmente racionais numa economia-mundo relativamente normal. E é este grau de medo avolumado que é a realidade fundamental da era presente.



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Sociólogo e professor universitário norte-americano. Wallerstein interessou-se pela política internacional quando ainda era adolescente, acompanhando a actuação do movimento anticolonialista na Índia. Obteve os graus de B.A. (1951), M.A. (1954) e Ph.D. (1959) na Universidade de Columbia, Nova Iorque, onde ensinou até 1971.
Tornou-se depois professor de Sociologia na Universidade McGill, Montreal, até 1976, e na Universidade de Binghamton, Nova York, de 1976 a 1999. Foi também professor visitante em várias universidades do mundo.

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