Sara Roy. A reportagem apareceu pela primeira vez em The Nation. A tradução para o galego-português é de Caia Fittipaldi, Vila Vudu. Sara Roy é pesquisadora sênior do Centro de Estudos do Oriente Médio, da Universidade de Harvard. Seu novo livro, Hamas and Social Islam in Palestine (Princeton University Press, 2010) está no prelo. Esta reportagem foi publicada em fevereiro de 2010.
Estive em Gaza em 2009, minha primeira visita desde último ataque israelense ao território. Fiquei petrificada ante o que vi, em local que conheço muito bem há mais de 25 anos: a terra devastada, em frangalhos, a vida das pessoas tão gravemente ameaçada. Gaza decai sob o peso de uma sempre continuada devastação, incapaz de funcionar normalmente. O vácuo que ameaça de todos os lados vai-se enchendo de desespero e ausências que minam até os raros, últimos atos de resistência e otimismo que ainda encontram alguma via de expressão. O que mais me impressionou foi a candura desse povo, mais da metade do qual são crianças, e a obscenidade, a indecência, o crime que é aquele tipo de punição coletiva infindável.
O desmonte, o desmanche da economia e da sociedade em Gaza foram deliberados, resultado de uma política de Estado – conscientemente planejada, implementada e imposta. Embora a maior parcela de responsabilidade por esse crime caiba a Israel, os EUA e a União Europeia, dentre outros, também são culpados, assim como também é culpada a Autoridade Palestina na Cisjordânia. São todos cúmplices na ruína dessa bela terra. E assim como a desgraça de Gaza foi conscientemente orquestrada, assim também estão sendo conscientemente criados os obstáculos para impedir qualquer recuperação.
Gaza tem longa história de sujeição, que assumiu novas dimensões depois da vitória eleitoral do Hamás, em janeiro de 2006. Imediatamente depois daquelas eleições, Israel e alguns países doadores suspenderam contatos com a Autoridade Palestina; imediatamente depois, a ajuda direta também foi suspensa, e veio o boicote financeiro internacional imposto à Autoridade Palestina. Naquele momento, Israel, que já estava confiscando os impostos e taxas que recolhe mensalmente em nome da Autoridade Palestina e não repassa, efetivamente pôs fim à possibilidade de os habitantes de Gaza trabalharem em Israel; e reduziu drasticamente o comércio externo de Gaza.
Com a escalada da violência de israelenses e palestinos, que levou à morte de dois soldados israelenses e à captura do soldado Gilad Shalit em junho de 2006, Israel fechou todas as fronteiras de Gaza, autorizando a entrada, exclusivamente, de alguns produtos para finalidades humanitárias, o que marcou o início do sítio, que chega hoje ao 4º ano de duração.
A captura de Shalit precipitou assalto militar massivo de Israel contra Gaza no final de junho de 2006, a chamada “Operação Chuvas de Verão” , que visou especificamente a infraestrutura, para tentar desestabilizar o governo liderado pelo Hamás: foram atacados os prédios públicos, os ministérios da Autoridade Palestina; começaram os racionamentos de combustível, eletricidade, água; e os serviços de esgotos foram reduzidos. Essa operação-guerra quase corpo a corpo, diária, durou até outubro de 2006.
Em junho de 2007, depois de o Hamás chegar ao poder na Faixa de Gaza (o que aconteceu depois de meses de violência interna e de uma tentativa de golpe do partido Fatah contra o governo do Hamás) e da dissolução do governo de unidade nacional, a Autoridade Palestina efetivamente se partiu em duas: formou-se em Gaza um governo de facto, liderado pelo Hamás – e rejeitado com estardalhaço por Israel e pelo ocidente; e formou-se na Cisjordânia o governo oficialmente reconhecido, liderado pelo presidente Mahmoud Abbas. O boicote contra a Cisjordânia da Autoridade Palestina foi levantado, mas o boicote contra Gaza foi intensificado.
Para aumentar ainda mais a miséria de Gaza, o gabinete de segurança de Israel decidiu, em 19/9/2007, declarar a Faixa “entidade inimiga”, controlada por “organização terrorista”. Depois dessa decisão, Israel impôs novas sanções, entre as quais o banimento quase completo de qualquer comércio, controle absoluto sobre os movimentos de ir e vir da maioria dos gazenses, inclusive dos trabalhadores. No outono de 2008, foram proibidas todas as importações de combustível para Gaza. Essas políticas contribuíram para transformar os habitantes de Gaza, de povo com direitos políticos e nacionais, em “problema humanitário” – casos de pobreza e miséria pelos quais se responsabiliza hoje a comunidade internacional.
Não bastasse os principais países doadores internacionais, sobretudo os EUA e a União Europeia, terem participado do regime de sanções contra Gaza, eles também privilegiaram a Cisjordânia em seu trabalho programático. As estratégias dos doadores são agora de apoiar e fortalecer a fragmentação e o isolamento da Cisjordânia e da Faixa de Gaza – objetivo político de Israel desde o processo de Oslo – e de dividir os palestinos em duas entidades distintas, oferecendo com prodigalidade para um dos lados, ao mesmo tempo em que o outro lado é privado de tudo e criminalizado.
Esse comportamento dos principais países doadores reflete mudança significativa no modo como veem e abordam o conflito Israel-Palestina: a antiga posição, de oposição à ocupação israelense, está sendo trocada por uma nova posição, de apoio à ocupação e, portanto, de reconhecimento.
É o que se vê na ampla e não criticada aceitação da política colonialista israelense e no aprofundamento da separação de Cisjordânia e Gaza, com completo isolamento de Gaza. Essa mudança no modo de pensar dos países doadores também pode ser observada na nenhuma disposição de nenhum desses doadores para confrontar nem a anexação de facto de terras palestinas nem o novo movimento dos israelenses para reformular o conflito – que passa a estar centrado exclusivamente em Gaza… sendo Gaza identificada exclusivamente ao Hamás e, portanto, apresentada como ‘terrorista’ e excluída do mundo ‘civilizado’.
Dentro do paradigma “anexação (da Cisjordânia)/‘terroristização’ (da Faixa de Gaza)” qualquer resistência pelos palestinos, estejam na Cisjordânia ou em Gaza, à ocupação repressiva por Israel, incluindo qualquer tentativa significativa de reativar a vida econômica, são hoje consideradas por Israel e por alguns dos países doadores como movimentos ilegítimos e ilegais.
Nesse contexto o regime de sanções contra Gaza pode ser argumentalmente justificado – regime de sanções que jamais foi mitigado desde o final da guerra. O comércio normal (do qual a microscópica economia de Gaza depende desesperadamente) continua proibido; importações e exportações tradicionais praticamente já sumiram de Gaza. De fato, com pequenas e muito específicas exceções, nenhum material de construção e nenhuma matéria prima entram legalmente na Faixa, desde 14/6/2007. De fato, segundo a Anistia Internacional, apenas 41 caminhões carregados com materiais de construção entraram legalmente em Gaza, entre o fim do ataque israelense em meados de janeiro/2009 e dezembro/2009. Isso, em condições em que o setor industrial de Gaza precisaria de 55 mil caminhões carregados de materiais para reconstruções urgentes e indispe nsáveis. Além disso, no ano que decorreu a partir da proibição, as importações de diesel e gasolina de Israel para Gaza para uso privado ou comercial só foram autorizadas em pequenas quantidades e só em quatro ocasiões (embora a Agência para Socorro Humanitário da ONU [ing. United Nations Relief and Works Agency, UNRWA] receba fornecimento periódico de diesel e petróleo). Em agosto passado, 90% da população de Gaza vivia sob racionamento de eletricidade (cortada por 4-8 horas/dia), e os 10% restantes viviam sem nenhuma eletricidade – realidade que não foi alterada até hoje.
O bloqueio de Gaza provocou também o colapso praticamente total do setor privado. Pelo menos 95% dos estabelecimentos industriais de Gaza (3.750 empresas) foram destruídas ou forçadas a fechar ao longo dos últimos quatro anos, o que implicou perda de entre 100 mil e 120 mil postos de trabalho. As 5% restantes operam com 20-50% da capacidade. As amplas restrições ao comércio também contribuíram para a erosão continuada do setor agrícola de Gaza – agravada ainda mais pela destruição de 5 mil acres de terra agricultável e 305 poços de irrigação, durante o ataque israelense de dez.-jan.2009. Essas perdas incluem a destruição de 140.965 pés de oliveiras, 136.217 limoeiros, 22.745 outras árvores frutíferas, 10.365 tamareiras e outras 8.822 árvores e arbustos.
As terras antes irrigadas estão hoje secas; e o subsolo, contaminado por esgotos e água salgada, torna os campos praticamente imprestáveis. Inúmeras tentativas, de agricultores de Gaza, para replantar ao longo do ano passado, falharam, quase sempre por causa do esgotamento e da contaminação dos solos, com altos níveis de nitratos. O setor agrícola de Gaza também foi muito duramente prejudicado pela zona ‘neutra’ criada por Israel no norte e a leste de Gaza (e pelo Egito, na fronteira sul), exatamente onde estão as terras mais férteis da Faixa. A zona mede oficialmente 300m de largura por 55km de comprimento; mas, segundo a ONU, fazendeiros com terras localizadas a 1.000m da fronteira tem sido afastados a tiros pelo exército israelense. Aproximadamente 30-40% de toda a terra agricultável de Gaza está confinada nessa zona ‘neutra”. O setor agrícola de Gaza vive hoje situação de colapso total.
Distorções assim tão profundas na economia e no desejo da sociedade de Gaza – ainda que se recriem as melhores condições possíveis – exigem décadas para que sejam corrigidas. A economia depende hoje largamente dos empregos no setor público, das organizações de ajuda humanitária e das atividades do contrabando, o que comprova a crescente informalização da economia. Ainda antes do ataque israelense do ano passado, o Banco Mundial já constatava uma redistribuição de riqueza em Gaza, do setor privado formal, para os operadores do mercado negro.
Há inúmeros exemplos, mas um, particularmente ilustrativo, é o setor bancário. Poucos dias depois de Gaza ser declarada “entidade inimiga”, os bancos israelenses anunciaram a intenção de encerrar todas as transações diretas com bancos sediados em Gaza e só negociar com as instituições irmãs em Ramallah, na Cisjordânia. Nesses termos, os bancos sediados em Ramallah tornaram-se responsáveis pela transferência de moeda para as subsidiárias na Faixa de Gaza. Mas as regulações israelenses proíbem transferência de grandes quantidades de moeda sem prévia aprovação pelo ministério da Defesa e outras agências do aparelho de segurança israelense. Consequentemente, ao longo dos dois últimos anos, o setor bancário de Gaza enfrenta sérios problemas para atender às necessidades de dinheiro de seus clientes. Essa situação, por sua vez, fez surgir um setor bancário informal que, hoje, é em larga medida controlado por gente ligada ao governo do Hamás, o que converteu o próprio Hamás em principal agente de intermediação das finanças em Gaza. Consequentemente, esses agentes de troca de moeda, que podem facilmente gerar capitais, são, de fato, mais fortes do que o sistema bancário formal, que não troca moeda nem gera capitais nem os faz girar.
Outro exemplo da informalidade econômica crescente em Gaza é a economia dos túneis, que começou a emergir há muito tempo, como primeira resposta ao bloqueio, e criou uma linha vital de abastecimento para uma população que vivia numa prisão a céu aberto. Segundo economistas locais, cerca de 2/3 da atividade econômica em Gaza é hoje orientada para o contrabando de bens que entram em (mas não saem). Mesmo essa última linha vital de abastecimento pode ser diminuída em breve, se o Egito – com a colaboração de engenheiros do governo dos EUA – concluir as obras de construção de uma muralha de aço, parte dela enterrada até o subsolo, ao longo da fronteira com Gaza, numa tentativa para conter o contrabando e o ir e vir de pessoas. Se a muralha chegar a ser completada, terá cerca de 8 km de comprimento e 15m de profundidade.
Os túneis, que Israel tolera em nome de manter inalteráveis as regras do bloqueio, são também importante fonte de renda para o governo do Hamás e as empresas associadas a ele, o que efetivamente enfraquece as modalidades tradicionais e formais de negócios e qualquer possibilidade de reconstruir um setor viável de comércio e negócios. Desse modo, o bloqueio de Gaza levou a um processo lento mas regular pelo qual se substituiu o setor formal de negócios por outro, quase totalmente marginal e paralelo, um mercado negro, que resiste e rejeita qualquer tipo de registros, regulação ou transparência e que, desgraçadamente, tem o máximo interesse em que as coisas mantenham-se exatamente como estão hoje.
Pelo menos duas novas classes econômicas emergiram em Gaza, fenômeno que teve antecedentes no período de Oslo: uma dessas classes tornou-se extraordinariamente rica, em boa parte por causa da economia de mercado negro dos túneis; a outra é constituída de alguns empregados do setor públicos, pagos (pela Autoridade Palestina na Cisjordânia) para não trabalhar (para o governo do Hamás). Assim, não apenas muitos trabalhadores de Gaza foram forçados a parar de produzir por ação de pressões externas; há hoje, além disso, uma nova categoria de pessoas recompensadas por não produzir – o que não deixa de ser espantosa ilustração-exemplo da realidade cada dia mais distorcida na qual a população de Gaza tem de sobreviver. Tudo isso levou a disparidades econômicas visíveis e monstruosas entre os que têm e os que não têm – como se constata no consumismo pervertido, em restaurantes e shopping-centers, nos quais só pisam os que têm.
Praticamente não há atividade produtiva na economia de Gaza, onde se vê uma espécie de consumismo do desespero entre pobres e ricos, mas que, no caso dos pobres, não supre sequer as necessidades mais básicas. Ainda não apareceram bilhões da ajuda internacional oferecida; e a imensa maioria dos gazenses vivem em situação de miséria absoluta. A combinação de um setor privado esgotado e economia estagnada levou a altíssimas taxas de desemprego (31,6% na cidade de Gaza; 44,1% em Khan Younis). Segundo a Câmara de Comércio Palestina, o desemprego real já se aproxima de 65%. Pelo menos 75% das 1,5 milhão de pessoas que vivem em Gaza dependem hoje de ajuda humanitária para suprir necessidades básicas de sobrevivência; há dez anos, eram 30%.
Relatórios da ONU mostram que o número de habitantes de Gaza que vivem hoje nas condições mais abjetas de pobreza – os que absolutamente não conseguem alimentar a família – triplicou e já atinge 300 mil, aproximadamente 20% da população.
O acesso a quantidades de comida suficientes para matar a fome continua a ser problema crítico, e parece estar tornando-se mais agudo depois de suspenso o ataque israelense contra Gaza, de setembro de 2009 até o início de janeiro de 2010: estatísticas mostram que Israel só permite que os palestinos recebam nunca mais (e às vezes menos) de 25% do que seriam necessário para suprir sua carência alimentar; em vários momentos, essa porcentagem desceu a 16% do mínimo necessário para não morrer de fome ou por efeitos da desnutrição.
Nas duas últimas semanas de janeiro, esses índices desceram: entre 16 e 29 de janeiro, entraram em Gaza, em média, 24,5 caminhões de comida e suprimentos, por dia. Dado que seriam necessários 400 caminhões/dia para alimentar a população, Israel permitiu que chegasse a Gaza apenas 6% da comida necessária, nesse período de duas semanas.
São números obscenos. Gaza precisa de aproximadamente 240 mil caminhões de comida e suprimentos por ano para “suprir as necessidades da população e responder ao esforço de reconstrução”, segundo a Federação Palestina das Indústrias. Segundo a FAO e o programa World Food, “Há provas de que a população de Gaza está sendo mantida em plano mínimo, segundo padrões humanitários.” Em Gaza se registram os mais baixos índices da relação peso/idade – indicador de desnutrição crônica, já detectada entre crianças com menos de 5 anos, cuja incidência subiu de 8,2% em 1996, para 13,2% em 2006.
A agonia de Gaza não termina aí. Segundo dados da Anistia Internacional, 90-95% da água obtida do aquífero Gaza é “imprópria para beber”. Praticamente todos os depósitos subterrâneos de água em Gaza estão contaminados com nitratos, em quantidades muito superiores às admitidas pela OMS – em algumas áreas os números são seis vezes superiores ao padrão máximo admitido –, ou são águas salobras. Gaza já não tem nenhuma fonte regular de água limpa. Segundo relatório de um país doador, “Em nenhum outro lugar do mundo há tantas pessoas expostas a tão altos níveis de nitratos por períodos tão longos de tempo. Jamais se viu situação semelhante e não há estudos que nos ajudem a entender os danos que sofrerão essas pessoas expostas, por tanto tempo, ao envenenamento por nitrato” – o que é ainda mais perigoso no caso das crianças.
Segundo Desmond Travers, um dos co-autores do Relatório Goldstone, “se essas questões não forem discutidas e essa situação corrigida, em breve Gaza será diagnosticada como área não habitável, pelos padrões da Organização Mundial de Saúde”.
É possível que altos níveis de contaminação por nitratos tenham contribuído para alterações chocantes na taxa de mortalidade infantil entre palestinos na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. A taxa de mortalidade infantil, amplamente usada como indicador de saúde das populações, não se alterara desde 1990 até recentemente. Hoje dá sinais de aumento. Isso, porque as causas de mortes de crianças mudaram: de doenças infecciosas e diarreias, para prematuridade, baixo peso ao nascer e malformações congênitas. São sinais alarmantes (e discrepantes na Região), porque as taxas de mortalidade infantil estão em declínio em praticamente todo o mundo em desenvolvimento, inclusive, por exemplo, no Iraque.
O povo de Gaza sabe hoje que foi abandonado. Disseram-me alguns, na rua, que a única vez que chegaram a ter esperança de serem ajudados foi quando estavam sob bombardeio, porque então, pelo menos, o mundo tinha notícias de Gaza e talvez prestasse atenção. Gaza é hoje lugar onde a miséria é fantasiada de sobrevivência e caridade é bom negócio.
Contudo, apesar dos esforços de Israel e do ocidente para mostrar Gaza como paraíso de terroristas, a população resiste. Talvez resistam, sobretudo, contra a possibilidade de render-se, não a Israel, mas ao ódio. Há tanta gente que ainda fala de paz, de tentar resolver os conflitos… Seja como for, hoje, em Gaza, nada disso é motivo para otimismo. Tudo, em Gaza, é motivo para desespero.
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