09/12/2010

Oriol Martí: 'Cumpre recuperar a tradiçom de fraternidade e ajuda mútua dos comunistas do século XIX'

Oriol Martí i Casas. Artigo tirado de aqui. No mês de Junho de 2009, Oriol Martí i Casas visitou Galiza convidado polo Grupo de Estudos A Fouce.



O médico e militante comunista dedicou parte do seu tempo a umha sessom de formaçom sobre drogodependências e capitalismo, transmitindo parte dos seus conhecimentos de décadas a um grupo de militantes galegos. A segunda das suas palestras centrou-se em exclusiva na sua trajectória activista, desde as origens no comunismo catalám, até os retos que afronta a militáncia em pleno século XXI. O texto que reproduzimos a continuaçom foi publicado como caderninho de formaçom polo Grupo de Estudos A Fouce, e agora disponibilizamo-lo na rede.

Para começar, gostávamos que nos comentasses a grandes traços qual é a tua trajectória militante.
Bem. Eu som de Barcelona. Procedo dumha família da classe média catalanista, mui vencelhada ao culturalismo. Desde que tenho consciência política, exactamente desde os dezasseis anos, considero-me comunista. Um pouco por essa tendência pendular tam frequente, por oposiçom a esta tradiçom familiar, que nom considero suficientemente avançada, que nom considero radical, pois fago-me comunista, e deixo um pouco de parte a reivindicaçom nacional, à que voltarei mais tarde, como comentarei.
Nos tempos universitários recebo um magistério fundamental, o de Manuel Sacristám, o conhecido filósofo marxista, e nesse momento assento muitas cousas teoricamente. A minha participaçom –por nom entrar agora em demasiados detalhes- situa-se em distintos colectivos marxista-leninistas, caso de Bandera Roja, do Partido Comunista Internacional...ainda, há umha experiência pessoal importante que me marca. Começo a minha dedicaçom na medicina, o meu ofício como médico, em bairros da periferia de Barcelona. Bairros que acolhêrom as enxurradas de imigrantes das décadas de 50 e 60, nomeadamente estremenhos e andaluzes, e que tinham mesmo umha imigraçom que procede de muito antes, de antes da guerra. E aí topo-me com umha classe obreira que me surprende. Umha classe obreira de origem foránea, mas que fala um catalám perfeito, um catalám com sotaque autóctone. E umha classe média, aliás, que exibe orgulhosamente a simbologia catalá: a bandeira cuatribarrada, o escudo do Barça, a virge de Montserrat. Conhecendo-os, tratando com eles, decato-me do que há de falso nessa tradiçom marxista, representada por certa historiografia que diz que o nacionalismo é pequeno burguês, que os comunistas devíamos falar espanhol, que é "a língua do proletariado", que a causa catalá vem da burguesia...e descubro que nom, descubro essa tradiçom que já tem assinalado outros investigadores marxistas. Que dizem estes autores? Que já na pré-guerra o nacionalismo catalám é um nacionalismo popular, apoiado nas classes trabalhadoras e na classe média. Que se organiza autonomamente no Partit Socialista Unificat de Catalunya, reconhecido na IIIª Internacional, um caso sem parangom na Europa.
E existem outras experiências que me marcam. Umha é pessoal. Conheço Carlos Lucio, um engenheiro, na altura militante da Organizaçom Comunista Internacional. Como era tam habitual na época, pois Carlos Lucio é enviado a outro país para artelhar a sua organizaçom. E o país é o País Basco. E acontece umha cousa curiosa, que é que a OCI nom se organizará no País Basco, e sem embargo a organizaçom socialista ETA ganhou um outro militante. E assi acontece, Carlos Lucio integra-se em ETA e um tempo depois cai num enfrentamento com a guarda civil. Esta é umha pessoa que me marca.
Ainda há mais. A partir de entom, fam-se assíduas as minhas visitas ao País Basco, "subo ao norte", conheço essa realidade e pratico a militáncia internacionalista. Sempre digo que a minha primeira naçom é Catalunha, e a segunda o País Basco. E ainda pode haver outras, isto depende de vós (risos) Trabo entom umha importante amizade com Alfonso Sastre, que como sabedes é um comunista espanhol que se exília ao País Basco e sempre foi solidário com a esquerda independentista. Dele sempre recordo umha frase marcante, que me pronunciou, e fixade-vos que ele é de origem espanhola: "Oriol, nunca te fies dos espanhóis, nunca, porque nunca cumprem as suas promessas." Vou conjugando progressivamente o meu marxismo com a libertaçom nacional, desenvolvendo aquela tese de Argala, o dirigente de ETA, que dizia que "Euskal Herria é um marco autónomo da luita de classes." E desmentia assi aquela tese pró-soviética, do oficialismo dos partidos comunistas, que afirmavam: "um estado, um partido, umha só classe obreira." Entre as pessoas que me condicionam, pessoal e politicamente, está Santi Brouard. Com ele partilho profissom –era médico- e inquedanças militantes. Pensai que, no eido da saúde e da medicina social, e nesse magma ou rizoma que se chama MLNV, participo da constituiçom da associaçom Askagintza, contra as drogodependências, que é das fundaçons, das minhas participaçons militantes, das que mais orgulhoso me sinto. E bom, no caso concreto do Santi, lembro umha conversa que tivem com ele. Falamos antes dum fim de semana, no que eu tinha pensado subir ao norte, com a ideia de combinarmos, e ele dixo-me "verás, Oriol, neste fim de semana nom pode ser", por algum compromisso que tinha. E eu dixem-lhe, "pois para o vindouro, porque eu hei volver a subir, e nom há problema". E esta foi a última conversa que tivem com ele, porque na seguinte terça feira enteiro-me que um pistoleiro do GAL o tiroteou na sua clínica em Bilbao.
Continuo a minha militáncia em Catalunha. No meu país, o grande peso da luita obreira e popular leva-o "o partido", e "o partido", sem discussom nenhuma, é o PSUC. A ele corresponde todo o protagonismo da oposiçom antifranquista, até que a reforma política faz esgaçar os sectores mais reformistas. Porque nesta organizaçom, como em muitas outras, havia pessoas que aguardavam as oportunidades para se promocionar, para ser deputados, e que logo cumprírom as suas expectativas. Falo dos Solé Tura, dos Ernest Lluch...Bem, pois no ano 1982, e como produto do desencantamento da transiçom, e da traiçom dos líderes, constituem o Partit dels Comunistes de Catalunya (PCC). Esta organizaçom arrasta umha boa base militante, de quadros obreiros, de intelectuais, de líderes do movimento vizinhal. Alguns tínhamos a esperança de criar um partido duro, um núcleo comunista forte que dinamizasse as luitas, à maneira de Herri Batasuna no País Basco. O certo é que nos trabucamos. Vereis: o cerne do partido eram militantes proletários, mas da aristocracia obreira do cinto industrial de Barcelona. Gente com umha adesom cega ao estalinismo e ao socialismo vigorante na URSS. O seu sonho eram as férias de verao nos balneários de Hungria ou Roménia, acompanhados de todo o aparelho corrupto da Europa central e do leste. Quando o consulado da URSS organizava festas em Barcelona, estes militantes acodiam aos saraos, com todo tipo de luxos, que esta gente oferecia. O choque com este sector foi grande, porque aliás tinham um rechaço visceral aos trabalhadores nom manuais, quer dizer, aos intelectuais, que podia ter umha certa explicaçom, por umha longa história de traiçons...mas enfim, desprezavam a teoria, e continuavam umha tradiçom nefasta do comunismo hispano: abnegaçom militante, generosidade, mas nulidade para o pensamento. Isto explica o fácil assentamento do estalinismo, e a compreensom nula da questom nacional. Nunca entendêrom a questom basca, que sempre vírom como umha maldiçom que os perseguia.
Seja como for, em companhia de outros camaradas continuamos a participar no partido, com a esperança de termos força como foco crítico. Assi chegamos a meados da década de 90. Estamos às portas do X Congresso, e o PCC inicia umha aproximaçom a sectores sinistros, a um tal Francisco Frutos, um dirigente reformista e grande-espanhol que vos soará a todos. Nesses momentos, e com motivo do Congresso, escrevo um dos textos políticos dos que estou mais orgulhoso: Contra el rojopesimismo, versión actual del eurocomunismo, leninismo, puro y duro. 9 hermosas razones para dar un no alegre, rotundo, entusiasta y combativo a las tesis del X Congreso del PCC (Partit dels Comunistes de Catalunya). A verdade é que apenas nos apoiou umha minoria, e a defesa do documento motivou umha caça às bruxas implacável, umha campanha de acossa à que nom faltou nada, mais que o fusilamento... já sabeis como o estalinismo trata os filhos díscolos, nom?
Aqui a situaçom fai-se insostível e, sobretodo por nom ver saída nenhumha, abandono o partido, junto com outros militantes mui válidos. Nom por razons pessoais, porque som umha pessoa mui resistente ao mobbing político; nom, pura e simplesmente por nom ver saída política nenhuma. Nesta época, mediados da década de 90, inicio umha experiência da que estou mui orgulhoso; com camaradas bascos, ponhemos em andamento a Rede Basca Vermelha-Basque Red Net, o primeiro portal comunista na rede. Tem um sucesso importante até que o felom juiz Garzón decide fechá-la, nas datas posteriores ao 11-M, por ser parte do "entorno da ETA" (o juiz Garzón é dessas pessoas polas que, por razons insondáveis, um se encontra sem querê-lo umha e outra vez na vida, como já vos explicarei mais tarde). Pois encerram a página e aqui nom acontece nada porque, como bem sabedes, em Espanha quem mandam de verdade som o juiz Garzón e o Ministro de Justiça.
Situamo-nos aproximadamente no ano 1997. Aqui começa de verdade a minha imbricaçom profunda no movimento independentista catalám. Perguntaredes-vos o porquê, em datas tam tardias. Um pouco foi por esse movimento pendular ao que me referi, essa rejeiçom à tradiçom familiar, e esse vencelho com a luta de classes; mas também e sobretodo a própria natureza do independentismo catalám desde a década de 60. Explico-me: trás a derrota da guerra espanhola, o independentismo reorganiza-se na década de 60 por volta, sobretodo, do Front Nacional de Catalunya. Este independentismo enquadra-se quase exclusivamente num ámbito de classe: o da pequena burguesia antiga, o dos sectores de pequenos proprietários, pequenos comerciantes, e algumha juventude universitária. Esta aliás é umha classe em descomposiçom, e os independentistas nom dam conectado com maiorias trabalhadoras importantes, sucede-se umha série de cisons inacabável...e eu sinto-me bastante de costas a esta tradiçom.
A meados-finais dos 90, vai irrompendo progressivamente umha nova geraçom. A anterior ficou esfarelada polo cisionismo e, como colofom, pola redada massiva dessatada nos Jogos Olímpicos, a conhecida como "Operaçom Garzón", e da que eu fum vítima também. Mais adiante desglossarei quais som os rumos deste independentismo na actualidade. A minha presença nestes novos contornos que se vam conformando é entusiasta mas, isso si, sempre mantendo umha distáncia prudente. Porquê? Porque o noventa por cem dessas pessoas que participam do novo independentismo, por idade, poderiam ser meus filhos; e como existe umha cousa que se chama "poder adulto", isto é, a nossa capacidade para condicionarmos grupos de gente menos experiente, pois entendo que é mais correcto ficar à margem. E portanto dedico-me a labores de formaçom, a dar doutrina e receber doutrina. Dou palestras ao longo do país, e em tempos mais recentes som um dos promotores da Universitat Comunista dels Països Catalans. Utiliza os espaços da Universidade pública, em Barcelona, para dar conteúdos alternativos. Continuo com a minha teima: a formaçom, isso que sempre descuidou o comunismo hispano, e que deu consequências tam funestas. O estudo é fundamental, junto com o trabalho e a luta, como constituinte da personalidade humana e dos projectos colectivos. Eu sempre fico com aquela imagem, que se calhar conheceis, da mulher vietnamita, num campo de arroz: trabalhando no agro, com um meninho ao lombo, e o fusil no ombreiro.

Quais pensas que devessem ser as chaves do marxismo do século XXI? Que é o que nom serve dessa tradiçom?

Há que rematar com o estalinismo e os seus restos. Essa é a minha proposiçom fundamental. A que me refiro com isto? Primeiro, a certas questons organizativas, sobretodo a isso dos personalismos, dos "secretários gerais". Por exemplo, na Catalunha existe umha organizaçom que é Endavant (OSAN), que é um colectivo comunista, é um colectivo independentista. Que se reclama de Lenin, mas nom tem essa fixaçom polo liderato, essa estrutura verticalista, essa consideraçom quase mítica dum "secretário geral" (de feito, nom tem secretário geral). Além disso, o que já comentei, referente ao papel da formaçom, do pensamento crítico, contra a obediência, o dogmatismo. E finalmente, um aspecto fundamental que nom tratámos ainda: a separaçom da vida pessoal e da vida militante. Essa é das heranças envenenadas do estalinismo, que ainda pesa, a causante dumhas duplas morais terríveis, e de estruturas políticas machistas que causavam um grande sofrimento. Na militáncia, entregas abnegadas, obediências ao partido...na vida pessoal, gosto polo luxo, pola boa vida. Crede-me, vi muitos casos desses. Gente que eram grandes militantes, mas que na verdade queriam um carro potente, dupla residência, beber os vinhos mais caros...e eu pensava: "você nom é um comunista, porque o comunista quer que todos vivam bem; mas você o único que quer, você mesmo, é viver como os ricos". E assi faziam. Depois existia umha outra cousa terrível. Os dirigentes em reunions importantíssimas, onde se decidia o futuro do proletariado e da causa (e ao final nom se decidia nada de nada), e as mulheres, as maes, na morada, a cuidar os nenos. O patriarcado assenta-se assi. Porquê o 90% das cúpulas políticas, mesmo na esquerda, som homens? Repito, esta é a herança do estalinismo, isto temos que desterrá-lo.

Nos teus estudos sobre drogodependências falas do importante papel que tenhem as sectas, como "substitutos do útero social". Podem-se incluir as sectas políticas, as sectas da esquerda revolucionária, nesta categoria?

Podem. Sectas há-as de muitos tipos. E proliferam em sociedades como a nossa, com altos graus de anomia, e pouca densidade simbólica. Que quer dizer anómia? Pois normas sociais pouco claras, que é um aspecto que caracteriza as sociedades pós-modernas, as sociedades occidentais do capitalismo terminal. O homem e a mulher querem normas. Querem saber se se pode fazer ou nom; por dizê-lo com outras palavras, se o semáforo está verde ou vermelho. Mas nom se pode viver permanentemente em ámbar. O capitalismo terminal, e aqui boa parte da esquerda trabucou-se, tem tal flexibilidade, tal toleráncia, tal capacidade de assimilar, que propicia umha multidom de comportamentos que ao final alimentam a incerteza, a dúvida, a falta de rumo na vida. Velaí um caldo de cultivo para as sectas. Ainda há mais. Falta densidade simbólica. As sociedades occidentais perdêrom entramados culturais autóctones, ritos que eram formas de controle social, explicaçons do mundo...e substituírom-nos pola cultura do capitalismo mundializado, polo consumo. O que um autor africano chamou a passagem do homo sapiens biodiverso ao homo coca-colensis. Isto fomenta também um grau de sofrimento social extra, potencia o agravamento das dependências humanas, e velaí o papel das sectas. Nom é por acaso que seja em países como Japom, com umha conurbaçom de 40 milhons de pessoas, umha autêntica megalópole onde reina a soidade.

Sectas políticas? Claro, pode havê-las, coincidem vários traços fortes. Um pequeno grupo composto por personalidades fracas e mui dependentes, que precisam dumha explicaçom do mundo omnipotente, que dá soluçom a todas as dúvidas; um liderato autoritário-paranoide. E com esses ingredientes, a capacidade de fabricar um útero social substitutório, que suple todas as fasquias da vida das pessoas. Porque pensai, um militante revolucionário pode ser a um tempo um pai exemplar, jogador dumha equipa de futebol, membro da comissom de festas, da sociedade gastronómica... qualquer militante saudável, mesmo se é um militar, mesmo se é um militante dumha organizaçom armada, está imbrincado socialmente, tem pontes tendidas cara vários ámbitos. O contrário que o que se passa nas sectas, e também nas sectas esquerdistas. Nom tes mais dimensom social que a da secta; tes o teu líder, e tes a tua explicaçom do mundo, por poucas palavras: "o proletariado, organizado em partido através da sua vanguarda, e bla bla bla..." Mas repito, a imbricaçom social é o melhor antidoto contra isto todo.

E quais pensas que devem ser os sectores sociais que volvam a artelhar umha alternativa comunista?
Antes pensava-se –e pensava-se muito no PCC, onde eu militava- no proletário industrial. O obreiro da cadeia de montagem que, depois de repetir milhons de vezes o mesmo gesto, tomava consciência, passando de ser "a classe em si" para se fazer "a classe para si". A história demonstrou-nos que disto nom nasceu umha consciência verdadeira. Eu, nos meus estudos, falo bastante do que chamo o "novo proletariado". Essa juventude, dos países occidentais, na actualidade, no capitalismo terminal, carregada de qualificaçons, de másteres, de licenciaturas...e que porém nom consegue acomodo no mercado laboral, e vive na precariedade permanente. Aí, dessa frustraçom acumulada, acho que pode sair um movimento interessante. E nom de oferecer grandes programas. Eu, o que acho que deve fazer o comunismo, o que deve fazer a esquerda, é aproveitar esses malestares sociais a flor de pele, esses malestares sociais crescentes, para dar alternativas, para canalizá-los. Na linha do que vos digo: "tu estudache tal cousa, tes tal qualificaçom, mas nom vas poder trabalhar disto na vida, porque a divisom internacional do trabalho, num marco capitalista, vai impedi-lo". Pensai que o trabalho –nom o trabalho assalariado, o trabalho como actividade antropológica- é dos princípios fundantes e estruturantes da personalidade. Entom há que dizer: "E porquê nom podes trabalhar disto? Porque vivemos no capitalismo". E a partir daí, desenvolver a participaçom da gente, e desenvolver actividades nas que a gente se realize, se sinta em plenitude.
Despois há outros dous aspectos que me parecem fundamentais. Em relaçom com a sobrequalificaçom, em relaçom com as expectativas frustradas, pensai que sodes a primeira geraçom, a primeira geraçom de muitas, que tem a certeza de ir viver pior que os seus pais. Isto, pola vez primeira em vários séculos, é umha tendência longa que está a rachar , e que provoca umha tensom social crescente, crescente e aproveitável.
Um outro aspecto a mentar é sobre a importáncia do marco territorial da nossa luita. Muitas vezes, a esquerda, desesperada pola situaçom, aqui na Europa, diz: o futuro passa polo Terceiro Mundo, ou o futuro passa por Cuba, ou por Venezuela. Que passa por alô? Claro que passa, mas passa também por Catalunha, por Galiza, polo País Basco...e polo lugar onde nos toque lutar. Isto temos que assumi-lo. Lembro sempre um texto magnífico da Fracçom do Exército Vermelho, suponho que conheceis, gente tremendamente coerente, tam coerente que em alguns casos pagou a sua aposta com a mesma vida; pois bem, num texto, num texto que tem já corenta anos, dizia que o "mato" do militante europeu, o espaço geográfico do militante europeu, era a metrópole, era a conurbaçom. Si, ao contrário que no Terceiro Mundo, o nosso mato som essas redes urbanas longas, entrecruzadas por autoestradas, comboios, aeroportos e centros comerciais, grandes prédios. Este é o espaço da nossa luita, como diziam estes militantes alemáns. Diziam-no há corenta anos, e é precisamente agora quando se vê a justeza da sua análise. Em resumo, que o futuro passa por aqui, por este marco concreto, e assi devemos assumi-lo.



Desviando-nos do tema que estás a tratar, e retomando o fio da tua biografia, gostávamos que nos falasses da repressom. Porque foche umha das vítimas de Baltasar Garzón nas famosas redadas de 1992 contra o independentismo catalám.
Fum. Umha das perto de sessenta vítimas de Garzón naquele verao de 1992. Nom vou contar aspectos concretos da detençom, porque nom se diferenciam grande cousa dos que pode contar qualquer umha pessoa atingida polo mesmo. Mas si é pertinente algumha reflexom. Como sabeis, a chamada "Operaçom Garzón" levou por diante várias dúzias de pessoas relativamente conhecidas na sociedade catalá; grande parte delas fomos torturadas. A pretensom do operativo era variada. Dumha parte, garantir a paz social naqueles Jogos Olímpicos, evitando qualquer contestaçom social forte; outra, reventar o núcleo que ficava de Terra Lliure, a organizaçom armada que actuara ao longo da década de 80; e outra, potenciar Esquerra Republicana como o novo independentismo, moderado e "democrático". E com efeito, parte importante da militáncia catalá –incluida de Terra Lliure- passa a este partido, potenciado polo Ministério de Interior. De qualquer dos três pontos de vista que tomarmos de referência, a operaçom foi um sucesso.
A mim detenhem-me na minha clínica, em Barcelona, enquanto atendo um paciente. Entram uns personagens sinistros com óculos de sol na consulta, pistola em mao, e levam-me preso. Depois já me enteiro que estes personagens, como nom podia ser de outra maneira, fam parte da "nunca ponderada y benemérita guardia civil". Boto cinco dias, conhecendo pola vez primeira na própria pele o que é a tortura planificada e científica. Estivera detido em outra ocasiom, e soubera o que é levar umha malheira que te deixa parvo, mas nom conhecia isto. A perda de referências de espaço e de tempo; estratagemas de engano, como ensinar-te um relógio num momento determinado, para que te fixes na hora, e te comeces a angustiar. E depois a finíssima tortura psicológica, que toca aspectos mui pessoais. Como anedota, conto-vos um caso: num determinado momento, estou tumbado num habitáculo minúsculo em que me meteram, às escuras, sem referência de nada, e um guarda civil achega-se e dize-me: "vás-te comer tanta trena que nom poderás pagar a hipoteca, o teu negócio terá que fechar e vas ficar sem casa". Isto, num momento assi, de desorientaçom, de confusom, é um golpe que che bate verdadeiramente fundo. Na realidade, o mal-trato procurava obter umha confissom falsa, umha auto-inculpaçom. A guarda civil, fixai-vos como som, pensava em mim como o homem de ETA em Catalunha. Fixai-vos. Demonstram que pouco conhecem o inimigo, porque a minha solidariedade internacionalista com a causa basca foi sempre pública e notória. Mas como sabeis os espanhóis nunca se preocuparom com conhecer o inimigo, chegou-lhe com machucá-lo.

Que determina a resistência nessas condiçons? A ideologia, o carácter...?
Tenho reflectido muito sobre isso. Olho, nom podo dizer que eu controlasse a situaçom. Nom conto nenhum heroísmo. Nom controlei a siutaçom nunca. Ora, polo menos acho que nom me desbaratei, que nom me descompugem. Porquê? Por três razons. Primeiro, pola minha consciência comunista, forte, presente desde os dezasseis anos. Dous, por conhecer-me um pouco a mim mesmo. Por saber quem som, por ser ciente das minhas fraquezas...eu psicoanalisara-me, no seu dia, e acho que isto valeu. E finalmente, por ser umha pessoa resistente, um desportista, porque eu som corredor de maratom.
Contodo, e apesar de nom desbaratar-se de todo, a tortura fina, planificada e científica é mui difícil de enfrentar. Eu, quando me perguntam, utilizo um símil psicoanalítico que me parece esclarecedor. O psicoanálise, sabeis, apoia-se nas partes sas da personalidade para atacar as doentes. Pois a tortura actua ao contrário: apoia-se nas tuas partes doentes para colonizar as sas. E assi, bebe dos traumas, dos medos, das neuroses, para intoxicar o resto da tua psique. Nisso consiste. Mas repito, para combatê-la: fortaleza na consciência política; fortaleza de carácter; e fortaleza física. Eu por vezes, falando destas cousas zango-me muito, porque vejo militantes novos que frivolizam, que hi hi, que ha há...e digo eu, que é isto? Somos militantes revolucionários, e isto faz parte do ofício, há que estar prontos, porque lhe pode acontecer a qualquer pessoa.

Para rematar, podias-nos fazer umha breve radiografia no independentismo actual em Catalunha?
Diria-vos várias cousas. A primeira, é que o independentismo em geral medra, em termos absolutos. Temos-lho que agradecer, antes do mais, aos espanhóis, porque estám a potenciar esta tendência. Os anos de Zapatero som fabulosos: que se a desfeita dos comboios de cercanias, o financiamento, o recorte do estatuto, os ataques à língua. Acontecem duas cousas de natureza distinta. Como sabeis, Catalunha é um país de acolhida que, nos últimos anos, está a abrir as suas portas a centos de milhares de pessoas. Como digo eu, a catalá é umha sociedade que padece sobrequecimento, porque nom tem serviços abondo para acolher esta enxurrada. Nota-se nos transportes, nota-se na sanidade, nota-se no ensino. E isto, ainda que for em termos burgueses, provoca descontentamento: vivemos mal, e ainda vamos viver pior se continuamos em Espanha. Isto combina-se com a pressom cultural espanhola, mui forte dum tempo a esta parte, e que alimenta também a rejeiçom.

No independentismo de esquerdas, no independentismo comunista, eu acho que as expectativas som razoavelmente boas. Já nom me detenho no independentismo neoliberal, que o há, ou mesmo em expressons do independentismo de extrema direita, que procede da década de 30, e sempre tivérom acobilho em Esquerra Republicana. No independentismo com o que me identifico, noto tendências interessantes. Constitui umha nova geraçom, mas umha nova geraçom onde a gente começa a ter filhos. Vas a manifestaçons, vas a actos, e ves parelhas novas, de perto de trinta anos, com as suas crianças. Prova de que a gente continua a militar, e a um tempo monta a sua vida; e prova de que imos artelhando umha cadeia geracional. Isto é importante, nunca o tivemos os cataláns, penso que nunca o tivestes os galegos, e si que o tivérom em troca os bascos. Porque os bascos sabeis que levam cinco séculos, ininterruptos, a resistirem a ocupaçom e a defender as suas instituiçons; e desses cinco séculos, dous séculos, os dous últimos, em guerra aberta com Espanha, guerra com todas as letras, ainda que hoje se desenvolva como um conflito de baixa intensidade. Por nom perder o fio, os independentistas iniciamos entom essa certa continuidade geracional. E ligando com o que dizia antes, eu digo-lhe a esta gente nova: "preocupai-vos de militar, mas preocupai-vos sobretodo da criança, que é fundamental", porque logo chegam essas cissons vida pessoal-vida militante que som terríveis.
Entom, acho que o independentismo está a acertar. Tenta criar umha sociedade civil alternativa, apoiada nos casals, umha cousa semelhante a este local onde estamos a ter esta conversa; e a potenciar o trabalho local e eleitoral. O eleitoral, claro, que tem os seus riscos, porque como em toda parte, em Catalunha há gente que gosta do poder, e quando ve poder, ainda que for pequeno...mas esse é outro debate agora. O crescimento, portanto, é sostido. Ainda que nom som ingénuo, e nom me trabuco, penso, e também lho digo aos companheiros: estám-nos a deixar medrar, estám-nos a observar, e quando chegar o momento, lançarám um pau repressivo severo, que deixará gente na cadeia. Mas assi som os processos políticos, também o nosso. A repressom nom vai desaparecer, porque enquanto houver luta, e descontentamento, haverá golpes repressivos.

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