04/04/2011

Entrevista a Noam Chomsky: Líbia e as crises que se avizinham

Avram Noam Chomsky. Artigo tirado de aqui e verquido por nós para o galego-português.

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O filólogo e ativista político Noam Chomsky.

1. Quais são as razões que movem os EUA nos relacionamentos internacionais, no sentido mais amplo? Isto é, quais são as razões dominantes e os temas que se podem detetar quase sempre nas opções das políticas dos EUA, em qualquer local do mundo? Quais são as razões mais concretas, embora também dominantes, e os temas das políticas dos EUA em Oriente Próximo e o mundo árabe? E, por último, quais acha você que são os objetivos mais imediatos da política dos EUA na situação atual em Líbia?

Uma maneira útil de abordar a questão é perguntar-se quais NÃO são as razões dos EUA. Podemos averiguá-las de diferentes maneiras. Uma delas é ler a literatura profissional sobre relacionamentos internacionais: com bastante frequência, o seu relato da política é o que a política não é, um tema interessante que não vou desenvolver aqui.

Outro método, muito relevante neste caso, é escutar aos líderes e comentaristas políticos. Suponhamos que se diz que as razões da ação militar foram humanitárias. Em si mesma, esta afirmação não contém informação: praticamente todos os recursos à força se justificam nesses termos, inclusive o fazem os piores monstros, que podem, com total irreleváncia, chegar a convencer da verdade do que estão a dizer. Hitler, por exemplo, pôde achar que estava a apoderar-se de partes de Checoslováquia para pôr fim aos conflitos étnicos e levar ao seu povo os benefícios de uma civilização avançada, e pôde achar também que a sua invasão da Polónia ia pôr fim ao "terror selvagem" dos polacos. Os fascistas japoneses que arrasaram a China provavelmente achavam que esta  sua desinteressada iniciativa estava destinada a criar um "paraíso terrenal" e proteger à doente população dos "bandidos chineses". Inclusive Obama pode ter achado o que disse no seu discurso presidencial o 28 de março sobre as razões humanitárias para a sua intervenção em Líbia. E outro tanto pode dizer dos comentaristas.

Podemo-las submeter, no entanto, a uma prova muito simples, para determinar se as nobres intenções podem ser tomadas em sério: chamam os autores à intervenção humanitária e a "responsabilidade de proteger" às vítimas dos seus próprios crimes ou às dos seus clientes? Tomemos, por exemplo, a Obama: convocou a uma zona de exclusão aérea durante a assassina e destruidora invasão israelita, respaldada por Estados Unidos, de Líbano, em 2006, sem nenhum pretexto crível? Talvez, não explicou com orgulho durante a sua campanha presidencial que ele patrocinava uma resolução do Senado de apoio à invasão, na que se pedia o castigo do Irão e Síria pela impedir? Fim da discussão. De facto, praticamente toda a literatura da intervenção humanitária e o direito a proteger, escrita ou falada, desaparece depois desta prova singela e adequada.

Pelo contrário, das razões REAIS pouco se fala, e um tem que escudrinhar os arquivos documentais e históricos para as descobrir, seja o Estado que seja.

Quais são então as razões dos EUA? A um nível muito geral, a evidência parece-me que demonstra que não mudaram muito desde os estudos de planejamento de alto nível iniciados durante a Segunda Guerra Mundial. Os planificadores em tempo de guerra davam por sentado que os EUA sairiam da guerra em uma posição de domínio abrumador, e instaram ao estabelecimento de uma Grande Zona em que os EUA mantivessem um "poder inquestionàvel" com "supremacia militar e económica", que garantisse ao mesmo tempo a "limitação de qualquer exercício da soberania" por parte de outros Estados, que pudesse interferir com os seus desígnios globais. A Grande Zona devia incluir o Hemisfério Ocidental, o Longínquo Oriente, o Império britânico (que incluía as reservas de energia de Oriente Próximo) e a parte de Eurásia que fosse seja possível, ao menos o seu centro industrial e comercial no oeste do continente europeu. Está muito claro, baseando-se em registos documentais que "o presidente Roosevelt tinha por objetivo a hegemonia dos Estados Unidos no mundo da pós-guerra", para citar a precisa valoração do respeitável historiador britânico Geoffrey Warner. E, mais importante, os minuciosos planos de tempo de guerra levaram-se à prática pouco depois, como podemos ler nos documentos desclassificados dos anos seguintes, e como podemos observar na prática. As circunstâncias mudaram, por suposto, e as táticas ajustaram-se em consequência, mas os princípios básicos são bastante estáveis, até o presente.

Com respeito a Oriente Próximo -"a região de maior importância estratégica do mundo", em palavras do presidente Eisenhower- a principal preocupação foi e segue sendo as suas incomparáveis reservas energéticas. O controlo destas daria o "controlo substancial do mundo", como viu muito cedo o influente assessor liberal A.A. Berle. Estas preocupações costumam ocupar um local prominente nos assuntos relativos a esta região.

No Iraque, por exemplo, quando as dimensões da derrota dos Estados Unidos, já não podiam ocultar-se, a retórica foi deslocada por um honesto anúncio dos objetivos da política. Em novembro de 2007, a Casa Branca emitiu uma declaração de princípios na que fazia questão de que o Iraque devia conceder às forças militares dos EUA  o acesso por tempo indefinido, e também em que se devia dar preferência aos investidores estadounidenses. Dois meses mais tarde, o presidente informou ao Congresso que ia passar por alto qualquer legislação que pudesse limitar o estacionamento permanente das forças armadas dos EUA no Iraque ou "o controlo por parte dos Estados Unidos dos recursos petrolíferos do Iraque", exigências que abandonou pouco depois ante a resistência iraquiana, ao igual que teve que abandonar os objetivos anteriores.

Conquanto o controlo do petróleo não é o único fator na política de Oriente Próximo, oferece em mudança algumas diretrizes bastante acertadas, dantes como agora. Em um país rico em petróleo, a um ditador de confiança garante-se-lhe uma liberdade de ação quase total. Nas últimas semanas, por exemplo, não teve reação alguma quando a ditadura de Arábia Saudita utilizou a força em massa para esmagar qualquer signo de protesto. Outro tanto no Kuwait, onde umas pequenas manifestações foram esganadas imediatamente. E em Bahrein, quando as forças armadas dirigidas por Arábia Saudita intervieram para proteger ao monarca da minoria sunita das demandas de reformas por parte da população chií reprimida. As forças governamentais não só desmantelaram o acampamento da Praça da Pérola -a Praça Tahrir de Bahrein- senão que chegaram a demoler a estátua da Pérola que é o símbolo de Bahrein e da que se tinham apropriado os manifestantes. Bahrein é um caso particularmente sensível, já que alberga a Sexta Frota dos EUA a força militar mais poderosa, com muito, da região, e também porque o Leste de Arábia Saudita, na porta da o lado, é também em grande parte chií e tem as maiores reservas petroleiras do reino. Por um curioso acidente da geografia e a história, a maior concentração de hidrocarburos do mundo rodeia parte-a norte do Golfo, em regiões de maioria chií. A possibilidade de uma aliança tácita chií foi o pesadelo dos planificadores desde faz muito tempo.

Nos estados que carecem de grandes reservas de hidrocarburos, as táticas variam, embora pelo geral se ajustam sempre ao mesmo esquema regular quando um dos nossos ditadores tem problemas: apoiá-lo o maior tempo possível e, quando resulta impossível, fazer pública declaração de amor à democracia e os direitos humanos, tratando ao mesmo tempo de salvar a maior parte do regime que seja possível.

O palco é aburridamente familiar: Marcos, Duvalier, Chun, Ceasescu, Mobutu, Suharto e muitos outros. E hoje, Tunísia e Egipto. Síria é um osso duro de *roer e não há uma alternativa clara à ditadura que apoie os objetivos de EUA. Iemen é um lamazal em que a intervenção direta provavelmente criaria problemas ainda maiores a Washington. De modo que aí a violência estatal só produz declarações piedosas.

Líbia é um caso diferente. Líbia é rica em petróleo, e embora os EUA e o Reino Unido proporcionaram com frequência um apoio otável ao seu cruel ditador, até agora, este não é de confiança. Prefeririam um cliente mais *obediente. Ademais, o vasto território de Líbia está pouco explorado, e os especialistas da indústria petroleira acham que pode ter abundantes recursos petrolíferos sem explodir, que um governo mais previsível poderia abrir à exploração ocidental.

Quando começou um levantamento não violento, Gadafi esganou-nos violentamente e explodiu uma  rebelião que libertou Bengazi, a segunda cidade maior do país, e parecia a ponto de asediar a fortaleza de Gadafi no oeste. As suas forças, no entanto, mudaram o curso do conflito e chegaram muito perto de Bengazi. Um massacre era provável, e como o assessor de Obama para Oriente Próximo, DennisRoss, assinalou "todo mundo culpar-nos-ia por isso". Isso seria inaceitável, ao igual que uma vitória militar que potenciasse o poder e a independência de Gadafi. Ante esta tesitura, os EUA uniram-se às Nações Unidas na resolução 1973, que estabelece uma zona de exclusão aérea a cargo da França, o Reino Unido, e os EUA, em que este país poderia ter um papel secundário.

Não se fez nenhum esforço para limitar a ação à criação de uma zona de exclusão aérea ou sequer a manter no mandato mais amplo da resolução 1973.

O triunvirato interpretou imediatamente a resolução como uma autorização para a sua participação direta do lado dos rebeldes. Impôs-se pela força um alto o fogo às forças de Gadafi, mas não aos rebeldes. Pelo contrário, deu-se-lhes apoio militar à medida que avançavam para o oeste, e em seguida fizeram-se com as principais fontes de produção de petróleo de Líbia, e estiveram prontos para seguir adiante.

O flagrante desprezo da resolução 1973 das Nações Unidas cedo começou a causar-lhe dificuldades à imprensa, já que era demasiado grave ignorá-lo. No New York Times, por exemplo, Karim Fahim e David Kirkpatrick (o 29 de março) perguntavam-se "como poderiam justificar os aliados os seus ataques aéreos contra as forças do coronel Gadafi em torno de [o seu centro tribal de] Sirte se, como parece ser o caso, goza de amplo apoio na cidade e não representa uma ameaça para os civis". Outra dificuldade técnica é que a resolução 1973 do Conselho de Segurança exige um embargo de armas que se aplique a todo o território de Líbia, o que significa que qualquer contribua externo de armas à oposição teria que ser encoberto (mas, de outro modo, não problemático).

Há quem argumenta que o petróleo não pode ser uma razão, porque as companhias ocidentais já desfrutavam de acesso ao botim baixo Gadafi. Este razoamento ignora as preocupações dos EUA. O mesmo poderia ter-se dito do Iraque baixo Saddam, ou do Irão ou Cuba durante muitos anos, e ainda hoje em dia. O que Washington pretende é o que Bush anunciou: controlo ou, pelo menos, clientes de confiança. Documentos internos estadounidenses e britânicos sublinham que "o vírus do nacionalismo" é o seu maior temor, não só no Oriente Próximo senão em todas partes. Regimes nacionalistas que pudessem levar a cabo ilegítimos exercícios de soberania, violando os princípios da Grande Zona. E que pudessem tratar de dirigir os recursos a cobrir as necessidades populares, como Nasser ameaçava ocasionalmente com fazer.

Vale a pena assinalar que as três potências imperialistas tradicionais -França, Reino Unido, EUA- estão quase isoladas na realização destas operações. Os dois principais estados da região, Turquia e Egipto, provavelmente poderiam ter imposto uma zona de exclusão aérea, mas só oferecem um morno apoio à campanha militar do triunvirato. As ditaduras do Golfo estariam felizes de ver desaparecer ao errático ditador líbio, mas apesar de estar sobrecarregadas de hardware militar de último modelo (servido generosamente polos EUA  e Reino Unido para reciclar os petrodólares e assegurar a sua obediência), só se atrevem a oferecer uma participação simbólica (Qatar.)

Conquanto apoiam a resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU (UNSC), os países africanos -aparte de Ruanda, aliado dos EUA- opõem-se em geral à forma em que aquela foi interpretada, a toda a pressa, pelo triunvirato, e em alguns casos esta oposição é muito firme. Para conhecer as políticas da cada um dos estados africanos se veja o artigo do queniano Charles Onyango-Obbo (http://allafrica.com/stories/201103280142.html).

Para além da região há pouco apoio. Ao igual que Rússia e China, Brasil se absteve de em a votação da ONU da resolução 1973, instando em altero para um completo alto o fogo e ao diálogo. Índia também se absteve na resolução, se baseando em que as medidas propostas podem "agravar uma situação já difícil para o povo de Líbia", e também pediu medidas políticas e não o uso da força. Inclusive Alemanha absteve-se. Itália também se mostrou reácia, em parte quiçá porque é muito dependente dos contratos petroleiros com Gadafi. Ademais, podemos recordar o genocídio que levou a cabo Itália no este de Líbia, a zona agora libertada, depois da primeira Guerra Mundial, do que talvez conservem algumas lembranças .


2. Pode alguém contrário às intervenções, que ademais crê na autodeterminação das nações e as pessoas, apoiar uma intervenção já seja realizada pela ONU ou individualmente por alguns países?

Há dois casos a considerar: (1) uma intervenção autorizada pela ONU, e (2), uma intervenção sem autorização da ONU. A não ser que achemos que os Estados são sagrados na forma que se estabeleceram no mundo moderno (pelo geral mediante uma violência extrema), e que estão dotados de direitos que anulam todas as considerações imagináveis, então a resposta é a mesma em ambos casos: sim, ao menos em princípio. E não vejo motivo para discutir esta crença, pelo que a vou deixar de lado.

Relativo ao primeiro caso, a Carta (das Nações Unidas) e as resoluções posteriores outorgam ao Conselho de Segurança uma considerável latitude para a intervenção, e esta se levou a cabo, por exemplo, no caso da África do Sul. Isto, por suposto, não implica que todas as decisões do Conselho de Segurança devam ter a aprovação de "alguém contrário às intervenções, que ademais crê na autodeterminação das nações e as pessoas"; outras considerações entram em jogo em casos específicos, mas, uma vez mais, a não ser que outorguemos aos Estados contemporâneos um estatus de entidades praticamente sagradas, o princípio é o mesmo.

Quanto ao segundo caso -o que se propõe com respeito à interpretação que faz o triunvirato da resolução 1973, junto a outros muitos exemplos- a resposta é outra vez afirmativa, ao menos em princípio, a não ser que tomemos o sistema estatal global como algo inviolável na forma estabelecida na Carta das Nações Unidas e outros tratados.

Sempre há, por suposto, um ónus da prova muito pesada que é preciso suportar para justificar a intervenção pela força, ou qualquer outro uso da força. O ónus é especialmente alto na segunda hipótese, em casos de violação da Carta, ao menos para os Estados que professam o respeito da lei. Devemos ter em conta, no entanto, que a potência hegemónica mundial recusa esta postura, e se autoexclui das Cartas das Nações Unidas e da OEA, junto a outros tratados internacionais. Ao aceitar a jurisdição do Corte Internacional de Justiça, quando esta se estabeleceu (conforme à iniciativa dos EUA) em 1946, Washington excluiu-se dos cargos de violação dos tratados internacionais, e posteriormente ratificou o Convénio para a Prevenção e a Repressão do Genocídio, de 1948. com reservas similares. Todas elas confirmadas pelos tribunais internacionais, já que os seus procedimentos requerem a aceitação da jurisdição. De maneira mais geral, a prática dos EUA é introduzir reservas cruciais aos tratados internacionais que ratifica, eximindo-se na prática dos mesmos.

É suportável o ónus da prova? Não tem muito sentido discutir isto de maneira abstrata, mas há alguns casos reais que poderiam nos ajudar. No período posterior à Segunda Guerra Mundial, há dois casos de recurso à força que, embora não podem considerar-se como intervençoes humanitárias, poderiam ser legitimamente compatíveis: a invasão por parte da Índia do Paquistão Oriental, em 1971, e a invasão vietnamita de Camboja, em dezembro de 1978; em ambos casos, para pôr fim a atrocidades em massa. Estes exemplos, no entanto, não entram no canon ocidental de intervenção humanitária, já que sofrem da falácia da instituição errónea: não os levaram a cabo os ocidentais. É mais, os EUA opôs-se a eles encarniçadamente, no momento álgido das atrocidades, e depois castigou severamente os "malfeitores" que terminaram com as matanças da atual Bangladesh e da Camboja de Pol-Pot. Vietname não só foi duramente condenado, senão também castigado com uma invasão chinesa apoiada por Estados Unidos, e com o apoio militar e diplomático britânico-estadounidense aos jemeres vermelhos camboianos nos seus ataques desde as suas bases de Tailândia.

Conquanto o ónus da prova pode-se suportar em ambos casos, não é fácil pensar em outros. No atual caso de intervenção pelo triunvirato de potências imperiais que estão a violar nestes momentos a resolução 1973 das Nações Unidas de 1973, o ónus é muito pesado, dado o seu horrível historial. No entanto, seria demasiado forte sustentar que nunca se pode suportar, em princípio. A menos, por suposto, que consideramos os estados-nação na sua forma atual como essencialmente sagrados. A prevenção de um massacre provável em Bengazi não é pouca coisa, com independência do que um pense sobre as razões.

3. Pode uma pessoa interessada em que os dissidentes de um país não sejam massacrados na sua busca da autodeterminação, se opor legitimamente a uma intervenção que tem por objeto, sejam quais sejam as suas razões, evitar uma massacre?

Ainda aceitando, por pura hipótese, que a intenção é genuína, que cumpre o critério simples que mencionei ao princípio, não vejo como responder a este nível de abstração: depende das circunstâncias. Poderíamos opor à intervenção poderia opor-se, por exemplo, se esta é provável que conduza a um massacre muito pior. Suponhamos, por exemplo, que os líderes dos EUA ., real e honestamente, tivesse a intenção de evitar um massacre em Hungria em 1956 e bombardeasse Moscovo. Ou que o Kremlin, genuína e honestamente, tivesse a intenção de evitar um massacre em El Salvador, na década de 1980, mediante o bombardeio dos EUA. Tendo em conta as consequências previsíveis, todos estaríamos de acordo em que essas ações "inconcebíveis" poderia ser legitimamente contestadas.

4. Muitos vêem uma analogia entre a intervenção em Cosova, de 1999, e a atual intervenção em Líbia. Pode explicar as principais similitudes, em primeiro lugar, e também as principais diferenças, em segundo termo?

De facto, muitas pessoas percebem esta analogia, o que é uma homenagem ao incrível poder dos sistemas de propaganda ocidentais. Dá a casualidade de que contamos com excelente documentação dos antecedentes da intervenção em Cosova, que inclui duas detalhadas recopilaçoes do Departamento de Estado, extensos relatórios sobre o terreno dos observadores "ocidentais" da Missão de Verificação do Kosovo, fontes da OTAN e a ONU, uma comissão de investigação britânica e muitos mais elementos. Os relatórios e estudos coincidem estreitamente nos factos.

Em resumo, podemos dizer que não se tinha produzido nenhuma mudança substancial sobre o terreno nos meses prévios ao bombardeio. Tanto as forças sérvias como a guerrilha do ELK cometiam atrocidades "as desta última força, de maior gravidade, em ataques desde a vizinha Albânia" durante o período em questão, ao menos de acordo às mais altas autoridades britânicas (Grã-Bretanha foi o membro mais agressivo da aliança). As grandes atrocidades em Cosova não foram a causa dos bombardeios da OTAN sobre Sérvia, senão a sua consequência, uma consequência totalmente previsível. O comandante em chefe da OTAN, o general estadounidense Wesley Clark, informava à Casa Branca semanas dantes dos bombardeios de que estes provocariam uma resposta brutal pelas forças sérvias sobre o terreno, e, ao começo do bombardeio, disse à imprensa que esta resposta era "previsível".

Os primeiros refugiados cosovares registados pela ONU produzem-se em datas muito posteriores ao começo dos bombardeios. Com uma só exceção, a acusação de Milosevic, durante os bombardeios, baseada em grande parte em relatórios de inteligência anglo-estadounidenses, limitou-se aos crimes cometidos após o bombardeio, e sabemos que não podia ser tomada em sério pelos líderes dos Estados Unidos e Reino Unido, que nesse mesmo momento estavam a apoiar ativamente crimes ainda piores. Ademais, tinha boas razões para achar que uma solução diplomática estava ao alcance; efetivamente, a resolução da ONU imposta após 78 dias de bombardeio foi mais bem um compromisso entre a posição sérvia e a da OTAN ao começo.

Tudo isto, inclusive estas impecáveis fontes ocidentais, o trato com verdadeiro detalhe no meu livro A New Generation Draws the Line. Novas informações que corroboram todo isso apareceram desde então. Por exemplo, Diana Johnstone informa de uma carta ao chanceler alemã, Angela Merkel, o 26 de outubro de 2007, que lhe envia Dietmar Hartwig, ex-chefe da missão européia em Cosova dantes de que fosse retirado o 20 de março com o anúncio do bombardeio, que estava em uma posição muito boa para saber o que estava a acontecer. Este escreve:
Não há um só relatório apresentado no período compreendido entre finais de novembro de 1998 e a evacuação em vésperas da guerra que mencione que os sérvios cometeram delitos graves ou sistémicos contra os albaneses, nem também não teve um só caso que se refira a incidentes ou delitos de genocídio ou assimiláveis a este. Pelo contrário, nos meus relatórios registei em repetidas ocasiões que, tendo em conta os ataques do ELK a cada vez mais frequentes contra o Governo sérvio, se demonstrou que a aplicação da lei por parte deste foi feita com uma notável moderação e disciplina. O objetivo claro e citado com frequência pelo Governo sérvio consistiu em observar rigorosamente o acordo Milosevic-Holbrooke [de outubro de 1998] para não dar nenhuma desculpa à comunidade internacional para intervir. (...) Teve enormes "diferenças de percepção" entre o que as missões no Kosovo têm estado informando aos seus respetivos governos e capitais, e o que estes filtraram posteriormente aos meios de comunicação e ao público. Esta discrepância só pode ser vista como um elemento de preparação em longo prazo para a guerra contra Iugoslávia. Até o momento em que abandonei  Cosova, nunca ocorria o que os meios de comunicação e, ainda mais, os políticos afirmavam sem cessar. Em consequência, até o 20 de março 1999 não tinha nenhuma razão para a intervenção militar, o que faz ilegítimas as medidas adotadas posteriormente pela comunidade internacional. O comportamento coletivo dos Estados membros dantes e após o estourido da guerra dá pé a sérias preocupações, porque a verdade foi liquidada e a UE perdeu fiabilidade.
A história não é física cuántica, e sempre há uma ampla margem para a dúvida. Mas é raro que as conclusões tenham um respaldo tão firme como neste caso. De um modo muito revelador, é totalmente irrelevante. A doutrina que prevalece é que a OTAN interveio para deter a limpeza étnica, embora os partidários dos bombardeios que toleram ao menos uma piscadela aos abundantes elementos fácticos qualificam o seu apoio ao dizer que os bombardeios eram necessários para deter as possíveis atrocidades: devemos atuar ainda produzindo atrocidades a larga escala para deter as que poder-se-iam produzir se não bombardeássemos. E há justificativas ainda mais impactantes.

As razões desta prática unanimidade e paixão são bastante claras. O bombardeio produziu-se em uma virtual orgia de autoglorificação e pavor por parte das potências, que poderia ter impressionado a Kim il-Sung. Analisei-o em outro local, e não deveríamos permitir que siga no esquecimento este notável momento da história intelectual. Após este espetáculo, o desvincule tinha que ser simplesmente glorioso. A nobre intervenção em Cosova proporcionou este desvincule, e esta ficção deve ser zelosamente mantida.

Voltando à pergunta, há uma analogia entre as representações autocompracentes de Cosova e Líbia: ambas intervenções estão animadas por nobres intenções, segundo a versão novelada. O inaceitável mundo real sugere em mudança analogias bastante diferentes.

5. Do mesmo modo, muita gente vê uma analogia entre a atual intervenção no Iraque e a intervenção em curso em Líbia. Neste caso, pode explicar as similitudes e as diferenças?

Não vejo as analogias significativas aqui também não, exceto que duas dos Estados participantes são os mesmos. No caso do Iraque, as metas são as que ao final acabaram por reconhecer. No caso de Líbia, é provável que o objetivo seja similar, ao menos em uma feição: a esperança de que um regime cliente fiável apoie os objetivos ocidentais e proporcione aos investidores ocidentais um acesso privilegiado à riqueza petroleira rica de Líbia, que, como assinalei, pode ir bem mais lá do que se conhece atualmente.

6. Que espera você, nas próximas semanas, que aconteça em Líbia e, nesse contexto, quais acha você que deveriam ser os objetivos de um movimento, nos Estados Unidos, contra a intervenção e a guerra com respeito às políticas dos EUA?

Por suposto, é incerto, mas as perspetivas prováveis "hoje, 29 de março" são ou bem uma partição de Líbia em uma região oriental, rica em petróleo e dependente em grande parte das potências ocidentais imperiais, e uma região ocidental pobre baixo o controlo de um tirano brutal de limitadas capacidades; ou bem uma vitória das forças respaldadas por Occidente. Em qualquer caso, o que o triunvirato provavelmente espera é um regime menos problemático e mais dependente em local do atual. O desvincule provável é o que se descreve com bastante exatidão, acho que pelo diário árabe com sede em Londres Al-Quds Al-Arabi, no seu número do 28 de março. Conquanto reconhece-se a incerteza da predição, prevê que a intervenção pode deixar em Líbia "dois estados, um para os rebeldes no Leste, rico em petróleo; e um, pobre, em mãos de Gadafi no oeste (...) Uma vez assegurados os campos de petróleo, podemos encontrar-nos/encontrá-nos ante a um novo emirato petroleiro em Líbia, um país escassamente habitado, protegido por Occidente e muito similar aos estados-emirato do Golfo Pérsico". Ou bem, a rebelião apoiada por Occidente poderia continuar até o final para eliminar o irritante ditador.

Os que se preocupam pela paz, a justiça, a liberdade e a democracia deve tratar de encontrar maneiras de prestar apoio e assistência aos libios que tratam de forjar o seu próprio futuro, livre das limitações impostas pelas potências estrangeiras. Podemos ter esperanças sobre a direção a seguir, mas o futuro deve estar nas suas mãos.

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