17/03/2014

Sete teses sobre o direito a decidir e o direito a decidir

Gerardo Pisarello. Artigo tirado de SinPermiso (aqui). O Negrito é de nosso. Pisarello vem de renunciar a sua participação na candidatura às europeias como representante de ICV na listagem de IU.

 

Muito do que penso foi já dito neste extenso e rico debate. A risco de repetir questões já propostas, resumirei a minha posição, de maneira o mais esquemática possível, em alguns pontos que me parecem importantes.

1. O direito a decidir comporta uma atualização do direito republicano de autodeterminação

O direito de autodeterminação aparece historicamente como a faculdade de uma comunidade política de decidir de maneira livre o seu estatuto jurídico. Este direito a replantejar o contrato social no seu conjunto remete ao menos a Rousseau e tem claras conotações republicano-democráticas. O seu objetivo é garantir a autonomia individual e coletiva. Daí que se pregue da comunidade como tal, mas também da cada um dos seus membros de pleno direito.

O direito a decidir não pode se considerar senão uma atualização deste direito clássico. Tal como se formula hoje, o direito à autodeterminação apela à possibilidade de que os membros de uma comunidade política possam definir, através de maiorias claras e livremente conformadas, qual é o enquadramento jurídico pelo que desejam se reger. Para apoiar este direito, como é evidente, não faz falta ser nacionalista. Basta com aceitar alguns princípios republicanos e democráticos elementares.

2. O direito de autodeterminação tem um conteúdo evolutivo e conotações diferentes em diferentes contextos.


Como todo o direito, o direito de autodeterminação não apresenta um conteúdo único através do tempo. É uma resposta a uma situação de pressão externa que impede ou obstaculiza a expressão plenamente livre da vontade dos membros de uma comunidade política. No entanto, vai variando de acordo ao contexto histórico.

O direito de autodeterminação nasce com as revoluções modernas, no enquadramento das lutas contra a arbitrariedade monárquica. Uma das suas primeiras manifestações é a independência, como ocorre nos Estados Unidos. Independência que é apresentada, justamente, como expressão de auto-governo, de self-government.

Na Europa, atravessa vários momentos. Os seus primeiros reconhecimentos jurídicos e políticos remontam-se a inícios do século XX. O direito de autodeterminação desempenha um papel central nas reivindicações democráticas que seguem à queda de impérios multinacionais derrotados durante a guerra (como o austro-húngaro).

Depois da segunda pós-guerra, o direito de autodeterminação consolida-se e se juridifica. O enquadramento deste processo é a ascensão dos movimentos de libertação nacional e dos processos de descolonização. O direito de autodeterminação é reconhecido nos dois grandes Pactos de direitos humanos de 1966. Em ocasiões, Nações Unidas reconhece-o aos povos em situação de sustentação colonial. Outras vezes, em mudança, configura-se como um direito universal reconhecido a todos os povos sem distinção. Os seus envolvimentos práticos são claras: inclui o direito à independência, pactuada ou não, e a outros tipos de estatutos jurídicos, como a livre associação ou a integração em um Estado já existente.

3. A vigência atual do direito de autodeterminação aparece unida ao princípio democrático.

Nos últimos tempos, o direito de autodeterminação admitiu múltiplas variantes e fundamentos jurídicos. Em alguns casos foi reconhecido explicitamente na Constituição (por exemplo na lei fundamental etíope, de 1994). Outras vezes vincula-se a construções jurídicas específicas, não contempladas expressamente no texto constitucional, mas fundadas no princípio democrático. É o caso do Ditame do Tribunal Supremo do Canadá sobre Quebeque. Ou do Acordo entre os Governos da Escócia e de Reino Unido que permitiu pactuar uma consulta pela independência.

Em outras palavras: o direito de autodeterminação não só se reconhece hoje aos povos em situação colonial. Também se admite: a) quando há uma situação de agravatória reiterada (como o desconhecimento ou a negação da personalidade linguística, cultural, jurídica, de uma comunidade política); ou b) quando existe uma demanda subjetiva forte, isto é, uma vontade clara e maioritária, livremente conformada, do exercer.

Desde esta perspetiva, uma vez mais, o chamado direito a decidir dos membros de uma comunidade não é senão uma atualização do direito de autodeterminação. Que apela não só nem tanto aos agrávios do passado como à existência de uma vontade presente, clara e maioritária, do pôr em prática através de uma consulta ou de um referendo.

4. No caso de Catalunya (embora não só), a reivindicação do direito de autodeterminação está longe de ser uma invenção recente.

As primeiras reivindicações do direito de autodeterminação retrotraim-se a inícios do século XX. E são uma resposta ao que poder-se-ia chamar o "problema espanhol". Isto é, à incapacidade do Estado, de dar encaixe à diversidade cultural, linguística, jurídica, existente no seu território. Esta incapacidade expressou-se de maneira muito clara em diferentes momentos: durante o Estado monárquico e centralista do século XIX, durante o franquismo e, com modulações, após a transição à monarquia parlamentar.

A reivindicação do direito de autodeterminação foi especialmente forte em Catalunya, primeiro, e depois no País Basco, na Galiza e outros territórios. O ponto de partida desta exigência é dupla. Desde um ponto de vista objetivo, o reconhecimento destas terras como "povos" a partir dos mesmos critérios que Nações Unidas utiliza quando fala de "povo francês" ou de "povo alemão" (isto é, território, características linguísticas e culturais, etcétera). Desde um ponto de vista subjetivo, a existência de expressões reiteradas de auto-identificação como tais.

O Projeto de Estatuto de Cataluña de 1931, conhecido como Estatuto de Núria, já fazia referência no seu Preâmbulo ao "direito que tem Cataluña, como povo, à autodeterminação". Com uma participação de 75%, foi aprovado com um 99% dos votos.

Durante o Processo constituinte de 1977-1978 o direito à autodeterminação dos povos, começando pelo de Cataluña e o País Basco, foi uma reivindicação da maioria de partidos de oposição democrática ao franquismo (incluídos o PSOE e o PCE). E também esteve presente aos debates constituintes. Teve várias tentativas de reconhecimento de Espanha como um Estado com diversidade de povos. O então deputado Francisco Letamendía chegou a propor uma emenda com uma via concreta, democraticamente intachável, para que qualquer "território autónomo" pudesse exercer o direito de autodeterminação.

Apesar da aprovação da Constituição, o direito de autodeterminação não deixou de se exigir, tanto em Catalunya como em Euskadi ou Galiza. Assim ocorreu na Declaração de Barcelona, de 1988. Assim o fez, em múltiplas ocasiões, o próprio Parlamento de Catalunya, com maiorias qualificadas, desde 1989 até a Declaração de soberania e pelo direito a decidir de 2013. E assim ocorreu, nas ruas, nas consultas municipalistas a favor da independência e em numerosas manifestações a favor do direito de autodeterminação.

5. O direito de autodeterminação (e o direito a decidir) têm cabida na Constituição, mas não no Regime constitucional

O direito de autodeterminação, certamente, não se incorporou na Constituição de 1978. Mas isto não se deveu à vontade livre dos atores que protagonizaram a sua gestação. Obedeceu, mais bem, à resistência do Exército e de outros poderes fácticos vinculados à ditadura franquista.

Os artigos 1 e 2 que o Governo invoca hoje contra a consulta catalã tiveram na sua origem redações muito diferentes à que hoje existe na Constituição. Estas redações eram favoráveis à consideração de Espanha como um Estado com diferentes povos e com vontades de autogoverno também diversas. Ao final, como recordam os próprios "pais constituintes", o próprio Exército pressionou para que incluíssem categorias como a "soberania nacional" ou a "indisolúvel unidade da nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis".

É verdade que, apesar de tudo, o Título VIII e uma interpretação aberta da Constituição, permitiam um importante grau de autogoverno das "nacionalidades e regiões" constituídas em Comunidades Autónomas. Na prática, no entanto, estes níveis de autogoverno deveram-se mais à pressão das "periferias" que a uma convicção pluralista dos partidos maioritários que governaram o aparelho estatal.

Hoje, com a Constituição na mão, existem diferentes vias jurídicas para que possa lembrar-se uma consulta ou um referendo de autodeterminação. É mais, há boas razões para sustentar que o Governo tem o dever de impulsionar e garantir esta consulta, bem como de propor alternativas que resultem viáveis dentro do enquadramento constitucional. A isso o obriga, ao menos, o princípio democrático recolhido no artigo 1.1 e o mandato de promoção da participação que lhe impõe o artigo 9.2. Se algo não o permite, em realidade, não é a Constituição, senão o Regime constitucional. Isto é, o que os últimos governos e um Tribunal Constitucional deslegitimado fizeram da Constituição de 1978, fechando, de maneira talvez irreversível, as suas interpretações mais democratizadoras.

6. O não cumprimento reiterado do dever de garantir uma consulta democrática de autodeterminação permite exigir a sua realização por outras vias pacíficas

A diferença dos governos do Canadá ou o Reino Unido, o Governo central não optou, no seu relacionamento com as autoridades catalãs, por uma interpretação democrática da Constituição. Pelo contrário, emitiu negativas reiteradas a qualquer tipo de diálogo em torno da consulta, propôs reformas constitucionais recentralizadoras e inclusive ameaçou com suspender a autonomia catalã em uma aplicação duvidosa do artigo 155. O PSOE também não se tem desmarcado claramente desta linha de atuação.

Este não cumprimento reiterado do dever de promoção do princípio democrático só deixa aos partidos, às forças sociais e às pessoas que vivem em Catalunya e que querem uma consulta (mais de 75%, segundo os últimos inquéritos) uma só possibilidade: exercer o seu direito à autodeterminação de maneira pacífica e com as máximas garantias possíveis e apelar à comunidade internacional e a outras forças sociais e políticas do Estado para fazê-lo valer.

7. O exercício do direito de autodeterminação (e do direito a decidir) é uma oportunidade para a radicalização democrática, não só em Catalunya.


Como se disse já, o exercício do direito de autodeterminação pode conduzir a diversos estatutos jurídicos: à conformação de um novo Estado ou de uma República independentes e/ou ou ao estabelecimento de renovados vínculos federais e confederais com outras unidades territoriais. Em Catalunya, de facto, uma parte importante das pessoas que apoiam a independência faz-o porque considera que é a única maneira para pactuar novas fórmulas federais ou confederais, de abaixo para acima, cooperativas e em igualdade de condições, com outras comunidades políticas dentro e fora do Estado.

Dito isto, é evidente que o exercício do direito de autodeterminação não só abre possibilidades alargar o autogoverno externo, rompendo com uma estrutura estatal conservadora. Também supõe uma oportunidade para alargar a autodeterminação interna. Isto é, os espaços de decisão individual e coletiva nos relacionamentos políticos, económicas, sociais e culturais da própria comunidade onde se propõe.

Esta oportunidade pode frustrar-se por muitas razões. Mas se fá-lo pela prevalência das posições recentralizadoras, negadoras da plurinacionalidade, o resultado será um retrocesso democrático profundo. Não só em Catalunya senão no conjunto do Reino de Espanha. Pelo contrário, se o direito a decidir abre-se caminho, pode ser um impulso decisivo para levar adiante ruturas republicanas e processos constituintes que hoje podem parecer longínquos e que no entanto são mais necessários que nunca.

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