05/07/2010

O problema da zona euro não está na periferia, mas no centro

Vicenç Navarro, artigo tirado do portal luso de contra-informaçom Os Bárbaros.



Este artigo assinala que a chamada crise do euro não radica no inexistente despesismo de gasto público e na suposta reduzida disciplina fiscal dos países periféricos – Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda –, mas na reduzida procura doméstica dos países do centro (e muito em particular da Alemanha), resultado da grande redução dos rendimentos do trabalho naqueles países, e exuberante explosão dos rendimentos do capital que se dedicaram primordialmente a comprar dívida pública dos países periféricos (enormemente endividados) e a emprestar dinheiro aos bancos destes últimos países, facilitando o aparecimento de bolhas especulativas. A grande recessão não se resolverá à base de austeridade nos países periféricos, mas através de um aumento da procura (resultado da recuperação dos rendimentos do trabalho) dos países centrais e periféricos.

Estamos a assistir nestes dias a uma enorme avalanche por parte do establishment europeu (Conselho Europeu, Comissão Europeia e Banco Central Europeu), acentuando a necessidade e urgência de os países periféricos – Grécia, Portugal, Espanha, e Irlanda – seguirem políticas de grande austeridade de gasto público (incluindo gasto público social, diminuindo assim a sua protecção social), moderando por sua vez os seus salários (através de uma grande desregulação dos seus mercados de trabalho, que na prática significa possibilitar uma grande redução salarial). Todas estas medidas se apresentam necessárias para os ajudar a sair da Grande Recessão e evitar também o contágio a outros países da UE e, consequentemente, questionar a própria existência da unidade monetária e do euro. A mensagem que se transmite nesta avalanche é que os países periféricos, devido à seu indisciplina, por um lado, e excessiva exuberância de gasto público, por outro, criaram um enorme problema de excesso de dívida (tanto pública como privada), que dificulta a saída da recessão, não só deles, mas de toda a zona euro e da UE, ameaçando a própria viabilidade do euro. Esta interpretação, no entanto, é profundamente errónea, pois o maior problema que a zona euro e a UE têm não está na periferia, mas no centro, isto é, na Alemanha. A peça chave e problemática da zona euro é a Alemanha, não a Grécia, nem Portugal, nem Espanha, nem a Irlanda. Vejamos os dados.

A Alemanha tem estado numa situação estagnada desde há já quinze anos. Na realidade, o seu crescimento económico anual foi (durante o período 1990-2009) muito menor que o crescimento dos países periféricos. E nos últimos anos (2007-2009), a descida do PIB alemão foi bem mais acentuada que nos países periféricos (excepto a Irlanda). Em 2009, a taxa de descida do PIB foi de –4,3% (uma das mais acentuadas na UE-15). O desemprego de 2004 a 2007 foi maior que o dos países periféricos, embora Espanha e Portugal a tenham ultrapassado a partir de 2008, sendo, a partir daquele ano, o desemprego ligeiramente superior em Portugal e Grécia e muito superior na Espanha. A taxa de investimento de capitais ( Gross Fixed Capital Formation as % of GDP ) foi na Alemanha, durante o período 1995-2008, mais baixa que nos países periféricos (sendo a Espanha quem durante estes últimos anos teve maiores investimentos).

E um indicador de grande importância, pois explica em grande medida o reduzido crescimento económico da Alemanha, é que a procura causada pelo consumo doméstico ( household consumption ) na Alemanha foi mais baixa que a dos países periféricos.

Esta baixa procura foi constante desde 1995 e deve-se à estagnação dos salários e dos custos laborais. Só Espanha teve um menor crescimento, o qual não pode ser atribuído, no caso alemão, a uma estagnação da sua produtividade. Na Alemanha, a produtividade cresceu, mesmo quando o crescimento foi menor que na maioria dos países periféricos (excepto Espanha). Resultado de a produtividade ter crescido mais rapidamente que os salários (o que aconteceu também em Espanha), verificamos que a percentagem dos rendimentos do trabalho como percentagem dos rendimentos totais foi descendo, sendo a Alemanha – juntamente com Espanha – o país onde tal descida foi mais acentuada durante o período 1995-2008.

Os rendimentos do capital, contudo, cresceram astronomicamente na Alemanha (o que também aconteceu em Espanha). Isso traduz-se em que a capacidade de poupança também aumentou consideravelmente. Mas esta poupança procede do capital exportador e dos rendimentos superiores. Posto que a procura interna não foi o motor do crescimento económico, tal crescimento durante o período 1995-2008 baseou-se nas exportações. A Alemanha é um dos países mais exportadores do mundo (juntamente com os EUA e a China). Ora bem, é importante aclarar que a competitividade do capital exportador não se deve a um maior investimento, mas a um crescimento salarial muito reduzido. Aí está o segredo da economia das exportações alemãs. Ora bem, para que Alemanha exporte é requerido que outros países importem. E a maioria dos países que compram os produtos alemães são da UE. Duas terças partes das exportações dirigem-se para os países da UE, incluindo os países periféricos, que naturalmente pagam em euros. Uma consequência disso é que a Alemanha tem milhões de euros a seu favor na balança comercial e na sua balança de pagamentos. E que fez a Alemanha com este dinheiro?

Uma opção, que era a que Oscar Lafontaine, então Ministro da Economia do governo Schröder, desejava realizar, era distribuir este dinheiro na Alemanha entre os trabalhadores e aumentar o gasto público social. Isso teria aumentado a procura interna, estimulando a economia da Alemanha e a de outros países da UE, incluindo os países periféricos, pois as classes populares alemãs teriam aumentado o consumo de produtos mais baratos, procedentes dos países periféricos europeus, diminuindo ao mesmo tempo a excessiva importância das exportações sobre a economia alemã e sua excessiva balança de pagamentos positiva. Não era bom, nem para a Alemanha nem para a UE, que existissem diferenças tão acentuadas na balança comercial e de pagamentos dos países da União.

O governo Schröder, no entanto, não aceitou esta alternativa (razão de Lafontaine ter abandonado o governo e o partido social-democrata). Em seu lugar, e em resposta à enorme influência da banca alemã, do Banco Central Alemão (Bundesbank) e do mundo empresarial exportador, decidiu gastar a enorme mais valia do euro em: 1) comprar dívida externa dos países periféricos a juros muito favoráveis 2) emprestar dinheiro à banca dos países periféricos, que se endividaram até à medula – realizando actividades claramente especulativas, como as imobiliárias em Espanha, contribuindo para a criação das bolhas imobiliárias – e 3) investindo directamente em actividades especulativas, a maioria também imobiliárias, destruindo, por certo, partes da costa mediterrânica com planos de moradias de carácter especulativo. Na realidade, esta exportação de dinheiro (euros) acentuou-se com a compra de dívida pública dos países periféricos, pois considerou-se tal compra como um grande ganho, criando uma verdadeira bolha de dívida pública (e também privada). Aos governos dos países periféricos era-lhes mais fácil pedir dinheiro emprestado aos bancos alemães (e franceses) que aumentar os impostos dos rendimentos superiores, muitos deles escassamente declarados, contribuindo em grande medida para a fraude fiscal. A elevada regressividade fiscal e a fraude fiscal eram as características das políticas fiscais dos países periféricos.

Esta exportação de dinheiro alemão, emprestado ou investido no estrangeiro, chegou a representar mais de 25% do capital bancário alemão, o que já é um valor mais que respeitável. A dependência da banca alemã destes fundos era muito grande. E aí radica parte do problema. Não é bom para a UE, nem também para a Alemanha, que haja desigualdades de rendimento tão acentuadas dentro da Alemanha e dentro da UE. Não é bom que as classes populares alemãs tenham tão pouca capacidade de procura (que estimule a economia) e não é bom que Alemanha tenha tanto dinheiro para exportar e que os países periféricos tenham tão pouco para importar, endividando-se tanto. Criam-se assim enormes dependências que enfraquecem todo o sistema europeu. Neste momento, a banca alemã, a francesa e a de outros países do centro da zona euro, emprestaram 1,4 triliões de euros aos países periféricos (uma quantia impossível de pagar por parte dos países periféricos). E aí está o problema. A banca alemã e seus aliados no establishment europeu, incluídos o BCE e o FMI, estabeleceram como objectivo central da recuperação económica o forçar os países periféricos a pagarem as suas dívidas, tanto públicas como privadas, aos seus bancos. E o objectivo fundamental da mal denominada ajuda aos países periféricos por parte da UE e do FMI é, na realidade, ajuda aos bancos alemães (franceses e de outros países do centro da zona euro), emprestando dinheiro aos estados periféricos para que paguem a sua dívida.

Esta situação poderia ter-se prevenido se se tivesse seguido outra via, tal como apontou Lafontaine em seu momento. E tal como pediram as esquerdas em Espanha em 1993. Recordemos que, em 1993, as esquerdas foram marginalizadas, tanto dentro do governo PSOE como fora dele. A redução do déficit do estado (necessário segundo o Pacto de Estabilidade) fez-se à base de reduzir o gasto público e de aumentar o endividamento privado, em lugar de aumentar os impostos, realizando a muito necessária e sempre adiada reforma fiscal progressista, tal como tinham pedido as esquerdas. Mais, em lugar de redefinir o Pacto de Estabilidade, estimulando mais a componente de crescimento, seguiram-se políticas monetárias de reduzido impacto estimulante. O crescimento económico em Espanha passou a estar centrado no endividamento privado e de carácter especulativo. E assim estamos.

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