21/11/2010

Franco: a morte, a cama, o mito

Ricard Vinyes. Artigo tirado de Sin Permiso e traduzido para o galego por nós. O artigo deste historiador apareceu originalmente no jornal do Reino de Espanha Público em 20 de Novembro de 2010.

Dispomos de muitos retrousos e provérbios políticos, mas nenhum funcionou tão bem em termos culturais como o da morte do general Franco na cama. A evocação do seu passamento natural tem a força tonta do evidente, porque ninguém negará que aquele idoso sanguinário terminou em seus dias no leito, zarameleado e ungido com azeites santos. O historiador Pere Ysàs, num livro convincente publicado em 2004 - Disidencia y subversión é seu título-, explicou que a popular frase sobre o pacífico expirar do ditador não é outra coisa que uma metáfora ideológica. É-o, e funcionou com eficiência para estabelecer imagens importantes do relato oficial sobre a fundação do Estado de direito. Uma dessas imagens estabelecia a solidez do regime -talvez não morreu em cama o tirano- e ditava que a democracia foi produto do desenvolvimento natural das coisas, da evolução para a modernidade imparável. Um processo dirigido pelos homens mais inovadores e dispostos do regime, que levaram seu amor pela liberdade em segredo desde que vestiam calças curtas; "próceres" generosos que permitiram a discreta e leal colaboração de uma oposição imperceptível e incapaz, ainda que, isso sim, molesta.

Sobre o que devia se fazer com essa exígua moléstia opositora nunca teve muitas dúvidas. Entre 1964 e 1976, mais de 50.000 cidadãos viram-se afectados pelo Tribunal de Ordem Público segundo o estudo de J. J. do Águia; e nesses anos mais de 80% das condutas delitivas foram-no contra a segurança interior do Estado, sem esquecer que se manteve activa a jurisdição de guerra, que actuou sobre mais de 3.000 daqueles molestos transgresores.

Era o efeito das crescentes mobilizações sociais, o suficientemente inquedantes como para que, em fevereiro de 1971, o Conselho Nacional do Movimento convocasse uma reunião para tratar seu futuro. Os conselheiros falaram de sua incapacidade política para resolver a situação causada pelo ascenso da disidência. A consequência de seu temor e desconcerto foi o aumento das perseguições e detenções. Delegacias de polícia e quartéis da Policia civil seguiram sendo nos anos setenta espaços onde conviviam, inseparáveis, a violência do Estado, a burocracia que assegurava seu funcionamento e a garantia de impunidade aos servidores públicos que torturavam e riam em edifícios oficiais localizados no centro da vida urbana.

Nada de todo isso foi acidental, era parte estrutural de um regime que, sem recursos políticos, só dispunha da violência para manter a vida que aquela exigua oposição -segundo a metáfora da cama e a paz- estava a destroçar-lhe. O velho Estado não sabia como podia ajeitar os seus princípios de sempre para sobreviver, e os mais prontos andavam assustados à medida que percebiam o que realmente podia significar a palavra democracia com a que começavam a jogar. A oposição antifranquista sim sabia onde ir, mas desconhecia as etapas do trajecto condicionadas às relações e negociações com quem tinham o monopólio da violência, a capacidade de fazer dano intacta e os nervos a flor de pele. Todo era muito fluído e só teve duas opções: caminhar -isto é, mobilizar e negociar- ou reventar -isto é a incapacidade de assumir transacções-. Reventaram eles, o seu Estado.

Para mim, o melhor legado da Transição o contou Joaquim Jordà num par de fitas, Numax presenta (1979) e Veinte años no es nada (2005), documentários precisos e preciosos sobre a experiência popular e operária de um tempo de alta vitalidade política em que a cidadania mais participativa descobriu e usou ferramentas que lhe permitiam entender a natureza das relações sociais e assim devir civilmente mais sábios e, por tanto, mais livres.

No entanto, numa data imprecisa dos oitenta, aquele processo histórico conhecido como Transição foi transformado pelo Estado e suas pompas num mito sombrio orientado a justificar a impunidade. O antigo e conseguido projecto de reconciliação mutou numa ideologia de Estado cujo princípio consistiu em ditar que todos foram igualmente respeitáveis naqueles tempos de ditadura; e que a memória, longe de ser um direito, era um dever, o dever de recordar, permanentemente, que o país só podia avançar se cultivava uma verdadeira indiferença para o passado gasoso. Apareceu assim um imenso vazio ético -não há distinção entre o bem e o mau- e com este o afastamento de uma parte da cidadania com respeito a seu valor e papel no longo processo de democratização do país.

Desde esse extranhamento apareceu o desprezo para a Transição porque muitos creram a lenda oficial sem preocupar-se em averiguar as realidades daquele processo histórico. Desde logo, averiguar e razonar custa. Em mudança, combater tópicos e superstições com outros tópicos e nigromâncias (por exemplo, os complôs compulsivos, ou as "traições", que todo o cadram e explicam) é barato. A consequência desta prática foi a conversão da Transição num princípio de determinação causal usado indistintamente por seus criadores para justificar impunidades, e por seus indignados detractores para gritar frustraçoes ou explicar injustiças presentes que procedem de outras fontes. É o que tem sacar da história um processo social: o mito encobre o conhecimento e a superstição substitue a razão. Mas sejamos positivos e no dia de hoje recordemos aqueles versos de Alberti: "hay muertos cuya paz merecería/ ser quebrantada todas las auroras". Cumpramos o seu desejo.

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