30/11/2010

O castelo de naipes irlandês e suas lições políticas para a Esquerda, para os sindicatos operários... e até para os Verdes no governo ultraliberal

Harry Browne, artigo tirado de aqui e traduzido desde o castelhano. Browne é professor na Escola de medios de comunicaçom no Dublin Institute of Technology. O quadro da ilustraçom é de Georg Grosz, membro do Partido Comunista alemám desde 1918.
"Resulta óbvio agora que Irlanda, como Lehman faz dois anos, pôs ao descoberto a fragilidade (isto é, a criminosa falta de escrúpulos) subjazente ao mundo dos negócios financeiros. O crucial, politicamente falando, é que Irlanda se sirva de sua posição decisiva neste momento da crise não só para assegurar sua própria sobrevivência, senão para contribuir a pôr fim ao gotejo de pauperização que arrastará a Europa e ao mundo inteiro, se este tipo de 'resgates', que não são senão ulteriores transferências de riqueza para os já ricos, chegam a ser a norma. Não podemos nos dar por satisfeitos com algum arranjinho para salvar a cara com os tedores de bonos que apostaram com nossos bancos, ou melhor dito, que calcularam que esta 'aposta' sua não podia de nenhum modo ser perdedora, porque seus sócios políticos no delito não permitiriam de nenhum modo que a perdessem do tudo."

Discutiu-se ultimamente muito por aqui sobre o Levantamento da Pascua irlandês. Nada particularmente interessante: só os "homens de 1916" convertidos agora em protagonistas de uma série de questões retóricas que se reduzem a esta: "Para isso deram suas vidas?" O Irish Times, encarnizado inimigo daqueles rebeldes faz 94 anos e raramente amigável com eles desde então, fez sua a questão na semana passada num editorial e veio desde então publicando a diário cartas recolhidas numa página intitulada "Para isso"?.

Não é surpreendente que a luta pela independência nacional vinga agora à cabeça quando o Estado irlandês implora/negocia um empréstimo aos bancos estrangeiros para poder pagar aos tedores estrangeiros dos bonos de dívida pública irlandesa. Precisamente hoje, o Sinn Fein -o partido que maior empenho põe em se proclamar herdeiro dos lutadores pela liberdade de 1916 e da subseguinte Guerra da Independência- registou uma assombrosa vitória numas eleições parciais celebradas no pedregoso terreno do sudoeste de Donegal.

Mas o ânimo de desespero e de raiva que pode se apalpar aqui se percebe como algo que vai para além do nacionalismo. O Sinn Fein ganhou em Donegan: (1) porque seu candidato, Pearse (¡de novo 1916!) Doherty pleiteou nos julgados para obrigar a que se celebrasse uma eleição parcial contra a vontade de um governo desesperadamente dependente de uma exígua maioria parlamentar; e (2) porque, como partido, teve a coragem de se opor ao consenso da austeridade imperante em quase todos os demais partidos e que preside também as actuais negociações para o resgate de Irlanda com o FMI, a UE e o Banco Central Europeu.

Só tendo isso em conta, bem como o crescente clamor popular a favor da "queima de tedores de bonos" -os credores globais dos bancos irlandeses que quedaram quando estourou a borbulha imobiliária-, podemos começar a discernir o verdadeiro significado potencial do momento presente e do papel de Irlanda nele.

Após tudo, em 1916 Irlanda não só lutou por sua própria autodeterminação. Fincou uma punhalada nas costas do Império Britânico enquanto este estava a combater em sua própria "Grande Guerra". Quando os britânicos concederam a independência de 26 dos 32 condados da ilha em 1921, as reverberaçoes da luta irlandesa se tinham deixado sentir já em todo mundo. Os antiimperialistas, desde Gandhi até Ho Chi Ming, não cansar-se-ão depois de mencionar a luta irlandesa e sua vitória num enclave tão próximo do coração do Império como um acontecimento de importância seminal. O edifício colonial global terminou revelando-se como um castelo de naipes, e quando Irlanda retirou um desses naipes, toda a estrutura ficou sacudida e o edifico começou a cair.

A Irlanda de nossos dias está a pagar o preço de seu perigoso e vulnerável localização no império global do capital. Durante os últimos 20 anos, incentivada por seus sócios multinacionais, este estado não só se converteu no porto de grandes empresas que procuravam uma base européia com baixo impostos de sociedade -num determinado momento, o estado irlandês, excluindo o Norte controlado pelos britânicos, chegou a ter mais de um quarto dos investimentos exteriores directas estadounidenses na UE, e isso quando mal representávamos o 1% da população da UE-, senão também de truans financeiros globais que procuravam um esconderijo escassamente regulado para as partes mais questonáveis dos seus negócios. Dublim converteu-se numa das capitais mundiais dos fundos avoitres de investimento livre. Os banqueiros alemães, por toda a parte celebrados pola sua proverbial prudência, fizeram coisas aqui que nunca teriam sequer sonhado com fazer no seu país.

Porém precisamente por isso Irlanda está excelentemente situada para voltar a lançar um dardo contra o império: essa é sem dúvida uma das razões de que, em setembro de 2008, quando caiu Lehman, a UE pressionasse ao ministro de finanças irlandês, Brian Lenihan, para que assinasse um cheque em alvo garantindo a protecção dos investidores em todos os bancos irlandeses, incluída, como é sobradamente sabido, a Banca Anglo-Irlandesa. A Anglo era uma instituição de novos ricos que chegou a se converter essencialmente num casino para quem especulavam com a propriedade imobiliária do país à medida que se inflava a borbulha. Os bancos com mais soleira, AIB e o Banco de Irlanda, secundaram o exemplo; mas ao menos seguiram funcionando como canalizadores do crédito para outras partes da economia. A Anglo era sobre pouco mais ou menos um clube privado carente de toda importância sistémica. No entanto, o ministro Lenihan garantiu-a, e fixo-se com um custo para o estado irlandês que agora se estima que pode chegar a lindar com os 30 mil milhões de euros. Agora sabemos também que a lista de tedores de bonos da Anglo é uma espécie de Quem-é-quem do capital europeu.

Ao garantir publicamente esses bancos, o Estado irlandês converteu sua "dívida soberana" -o tão batido termo "soberana" disparou emoções análogas às das referência ao Levantamento de 1916- numa extensão da dívida dos bancos. E essa é a razão principal de que os mercados de bonos não queiram saber nada de nós. Verdade é também que o estado, depois de anos em números negros, está de sócato incorrendo em gigantescos déficits: isso é simplesmente consequência do ultraliberalismo que nos empurrou a uma baixa fiscalidade sobre os rendimentos e ao fiar tudo aos impostos sobre as transacções imobiliárias e ao IVA de bens e serviços. Esses últimos impostos significam que o Estado nadou em dinheiro durante o frenesi comprador dos primeiros anos da presente década; ao desmaiar o frenesi, os cofres esvaziaram-se. E, grave dizê-lo, o ultraliberalismo segue ditando que não há solução que passe por uma fiscalidade bem mais gravosa para os ricos. Nem também não mostra o estado maior inclinação ideológica a "estimular" uma economia, cujos capitalistas nacionais relevantes jogam um papel relativamente pequeno. As exportações seguem sendo fortes -razão principal de que o PIB de Irlanda não tenha tão mau aspecto como se poderia pensar desde fora-, mas os últimos três anos demonstraram concluintemente que as exportações não podem fazer mais pela "economia real". O novo plano quatrienal de austeridade do governo irlandês prova o pouco que conta a economia nacional irlandesa para quem tomam decisões sobre nosso futuro.

Os que tomam as decisões sobre nosso futuro são agora oficialmente o FMI, a Comissão Européia e o Banco Central Europeu. Ainda que tratam de ser educados, às vezes cai-se-lhes a máscara, como quando o comissário europeu de assuntos económicos Alli Rehn nos advertiu que o governo irlandês estava obrigado a apresentar um orçamento nacional dantes de convocar eleições.


Agora mesmo têm que se enfrentar com um genuino alude, canalizado pelas redes sociais e que abarca a todo o espectro político irlandês, que exige que a nação se declare em quebra. Um artigo aparecido nada menos que em [o famoso diário económico electrónico norte-americano] Bloomberg em que se recomendava precisamente isso ("Se declarar em quebra é melhor para o paciente irlandês que um resgate") gozou de uma ilimitada difusão via Internet em Irlanda estes três últimos dias. É provável que, chegados a este ponto, se façam algumas pequenas concessões, ainda que só seja para sentar um precedente para a próxima onda de resgates de países da União Européia, um precedente que salve as aparências do "sofrimento compartilhado". Talvez poderia se oferecer aos tedores bancários de bonos mais veteranos um trato para que mudassem dívida protegida por acções, mas sabe Deus quem poderia querer acções nos bancos irlandeses.

Resulta óbvio agora que Irlanda, como Lehman faz dois anos, pôs ao descoberto a fragilidade (isto é, a criminosa falta de escrúpulos) subjacente ao mundo dos negócios financeiros. O crucial, politicamente falando, é que Irlanda se sirva de sua posição decisiva neste momento da crise não só para assegurar sua própria sobrevivência, senão para contribuir a pôr fim ao gotejo de pauperização que arrastará a Europa e ao mundo inteiro, se este tipo de "resgates", que não são senão ulteriores transferências de riqueza para os já ricos, chegam a ser a norma. Não podemos nos dar por satisfeitos com algum arranjo para salvar a cara com os tedores de bonos que apostaram com nossos bancos, ou melhor dito, que calcularam que esta "aposta" sua não podia de nenhum modo ser perdedora, porque seus sócios políticos no delito não permitiriam de nenhum modo que a perdessem do tudo.

E se Irlanda fecha-se em banda e proclama: "¡Não há trato!" e isso causa o desabamento do castelo de naipes, pois que assim seja.

O ominoso papel dos Verdes em Irlanda

A correlação política de forças em Irlanda faz que isto resulte improvável. Os principais partidos do centro direita, Fianna Fail (no governo) e Fine Gael (na oposição) estão no essencial embarcados na austeridade e ao serviço dos amos financeiros. Também o Partido Verde: o artigo, pelo demais excelente, de Mike Whitney ontem poderia dar a impressão de que os Verdes procuraram dar o golpe de graça ao governo ao que vieram dando apoio durante três anos e médio, mas o que disseram em realidade os verdes é que só sairiam do governo quando acabe de se perpetrar o dano, numas quantas semanas.

No entanto, o ressurgimento de um Sinn Fein que volta a falar claro -o líder do partido, Gerry Adams, está a mover suas bases políticas ao sul da fronteira para coincidir aqui nas próximas eleições parlamentares- e o nascimento de uma nova formação, a Aliança da Esquerda Unida, à esquerda do nosso desesperantemente orfão Partido Laborista dão algum motivo fundado para o optimismo. Mas a maior esperança de mudança real para nós passa por internacionalizar a resistência de modo semelhante a como "os mercados" têm internacionalizado a crise. Ouvem-se muitas coisas nestes dias sobre os movimentos a cada vez de ascensões nos rendimentos dos bonos portugueses, mas muito pouco sobre a Greve Geral da quarta-feira passada em Portugal.

Este fim de semana, o movimento sindical irlandês procura sair de décadas de escuridade marcadas pelo "diálogo social" com governos e empresários, lançando-se ao que com toda probabilidade será uma enorme manifestação no sábado 27 de novembro pela tarde em Dublim. É provável também que esse mesmo fim de semana o governo irlandês faça públicos os termos de sua negociação com o FMI e companhia. (Dito seja de passagem: uma medida da autopunitiva confusão do país pode dá-la o seguinte facto: ainda na semana passada, muita gente se aprestava a saudar ao FMI como uma instituição mais competente para se enfrentar à crise que qualquer instituição irlandesa.) Na próxima segunda-feira saberemos bem mais sobre os níveis de resistência e resignação, bem como sobre os níveis de miséria e servidão que determinarão a futura direcção desta crise.

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