13/12/2010

HISTÓRIA VIVA.A mulher pode

Lucília de Almeida Neves Delgado. Artigo tirado de aqui. Lucília de Almeida Neves Delgado é historiadora e professora da UnB, da UFMG e da PUC Minas.


Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, autora de O segundo sexo, clássico feminista que marcou época


Nos anos finais de minha adolescência, prestes a entrar na universidade, buscava, de forma compulsiva, mais conhecimento sobre a situação da mulher no mundo. No meu cardápio de leituras, tinham lugar privilegiado livros e também artigos e reportagens de jornais e revistas que analisavam a condição feminina. Dois livros marcaram profundamente minha formação.

O primeiro foi O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, que me acompanhou durante o 15º ano de minha vida. Levava-o para lá e para cá, certa de que descobrira, pela escrita da autora, o caminho para a libertação feminina. Ler seus livros parecia para mim, àquela época, ser uma das condições necessárias para tornar-me mais independente e sintonizada com as grandes mudanças que aconteciam no mundo naqueles emblemáticos anos da década de 1960. Como qualquer adolescente que buscava se afirmar, eu repetia as conclusões e proposições da escrita existencialista de Beauvoir em conversas nas salas de aula, em discussões familiares e no ambiente da Ação Católica, organização que muito influenciou minha formação na fase da adolescência. A frase de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher” fixou-se na minha mente de tal forma que me vi, muitas vezes, repetindo-a em silêncio em tantos e diferentes momentos do viver. Esse fato aconteceu com mais constância quando, jovem adulta, a maternidade chegou à minha vida. Vi-me, então, diante do enorme desafio de educar duas meninas, hoje mulheres. Premida pela divisão entre a vida familiar e as demandas de uma carreira profissional que se iniciava, consolidou-se em mim a certeza de que os caminhos para as mulheres são sempre mais difíceis do que para os homens.

O segundo livro, A mulher e a construção do mundo futuro, o li quando de um período de férias de verão, no Rio de Janeiro, na virada de 1966 para 1967. Trata-se de uma das primeiras publicações da escritora feminista brasileira Rose Marie Muraro. O conteúdo do livro apresenta às mulheres questões referentes à sua condição, indicando alternativas para sua formação mais autônoma, para sua libertação e participação na construção do mundo. Revolucionário àquela época, não era leitura sempre aconselhável a jovens adolescentes, especialmente nas famílias e escolas mais tradicionais. Lembro-me, até hoje, do enorme susto e manifestação de discordância da mãe de minha grande amiga, com quem eu viajara, ao ver-me lendo-o, antes de dormir, naquele já longínquo tempo de férias da adolescência.

Essas leituras, que marcaram minha vida, foram feitas em uma época de grande transformação nos costumes e nas mentalidades em todo o mundo ocidental. Com toda a certeza, a década de 1960 foi revolucionária, transgressora, esperançosa e generosa. Foi um tempo de fértil utopia que, de forma avassaladora, alimentou movimentos libertários de diferentes tipos: pacifistas, antirracistas, feministas. No Brasil, toda essa fertilidade alcançou, por exemplo, forte ressonância na música, no cinema, no teatro, nas artes plásticas e no movimento estudantil. Na esfera dos costumes, o feminismo e a crescente libertação da mulher foram um dos movimentos de maior impacto no cotidiano das famílias, escolas, universidades e manifestações da juventude.

Naqueles anos, as mobilizações dos estudantes também cumpriram relevante função histórica emancipadora. Isso porque nele estavam presentes rapazes e moças das mais diferentes tendências políticas, preferencialmente no largo e complexo campo da esquerda. Seu papel de vanguarda na defesa das liberdades democráticas foi incontestável. Mas, além dessa missão, os jovens estudantes, reunidos na União Nacional dos Estudantes (UNE), Uniões Estaduais dos Estudantes (UEEs) e União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), também atuaram, mesmo que àquela época sem consciência de tal fato, como vanguarda do movimento de emancipação das mulheres.

As organizações estudantis muito contribuíram para o início do rompimento de uma tradição que reservava o espaço da política para os homens. O fizeram ao incorporarem em seus quadros muitas jovens militantes, que tiveram efetiva participação política nas manifestações estudantis, tornando-se, assim, sujeitos da história. Na verdade, as principais lideranças dessas organizações ainda eram masculinas e todas extraídas das classes médias. A história nos apresenta como nomes de destaque no movimento estudantil, entre outros, os de Vladimir Palmeira, José Luís Guedes, Luís Travassos e José Dirceu. As mulheres ainda ficavam na esfera de liderança intermediária ou, então, nas bases. Mas sua iniciação na política foi definitiva.

Tão definitiva que logo depois da edição do Ato Institucional de nº 5, que mergulhou o Brasil no período mais duro e arbitrário de sua história, muitas delas integraram-se a organizações clandestinas que lutavam contra a ditadura militar. Assim também aconteceu com a presidente eleita da Republica Federativa do Brasil.

Movimento estudantil Dilma Rousseff teve seu batismo na política quando ainda era estudante secundarista no progressista Colégio Estadual Central de Belo Horizonte. Dos bancos escolares para ingresso e atuação em organizações de esquerda, a passagem do tempo foi muito rápida. Na militância clandestina, exerceu funções de organização que lhe foram atribuídas sem qualquer critério de valorização ou desvalorização da condição de gênero. Foram poucos anos de intensa militância e um número maior de detenções, interrogatórios orientados por violentas técnicas de tortura e sequente cumprimento de pena em prisão fechada. Essa experiência limite marcou-a, e a tantas outras mulheres de sua geração que abraçaram a luta política contra a ditadura de forma profunda e inexorável.

A essas mulheres, Iara, Inês, Dilma, Auréa Eliza, Yonne, Pauline, Neide, Miriam, Lourdes, Madalena, Maria Amélia, Mariléia, Elza, Maria, Marilda, Nilda, Maria Alice, Maria do Socorro, Magda, Helena, Maria Augusta, Luíza, Dinalva, Dinaelsa, Heleni, Walquiria, Aurora, Ana Rosa, Jane, Gastone Lúcia, Sônia, Maria Lúcia, Helenira, Gilse, Dinalva, Telma, Jana, Maria Eulália, Dulce, Maria Eloídia, Ligia, Catarina, Lúcia, Ana Maria, Maria Eunice, Maria Célia, Eleonora, Esmeraldina, Marilene, Lucimar, entre tantas outras, dedicamos este artigo. Foram elas que, ao final da década de 1960 e início da de 1970, orientadas, como define o sociólogo Marcelo Ridenti, por forte romantismo revolucionário, ofereceram sua vida e sua juventude em defesa da causa democrática. Foram elas também que deram uma marca especial ao feminismo no Brasil, que, de forma diferente da de outros países, especialmente os Estados Unidos e países europeus, se articulou às ações políticas que objetivavam criar uma real oposição ao regime militar.

Uma gama variada de fatores favoreceu a expansão das bandeiras feministas no Brasil. Contribuição efetiva foi dada pelo processo de modernização que, iniciado na segunda metade da década de 1950, ganhou maior dimensão nos anos 1960. O cotidiano das mulheres, em especial as das classes médias, muito mudou em decorrência da introdução dos eletrodomésticos em suas casas, do maior acesso aos bancos universitários e da difusão crescente do uso dos anticoncepcionais, que foram fundamentais à liberdade sexual. Mas, no caso de muitos países da América Latina, entre eles o Brasil, a questão política teve influência especial na libertação feminina. É incontestável o fato de que a questão da emancipação da mulher no Brasil nos anos 1960 e 1970 só pode ser entendida se analisada pelo prisma de dois conflitos: com a ordem patriarcal, caracterizada por sólida e secular dominação masculina, e com a ordem política autoritária instalada no país em 1964.

Tradição contestada No fim da década de 1960 e início da de 1970, o avanço das teses feministas no Brasil tornou-se inexorável. Quando a Organização das Nações Unidas declarou 1975 como Ano Internacional da Mulher, milhares de jovens brasileiras que se opuseram ao arbítrio político já haviam consagrado sua juventude à causa da liberdade e da democracia. Tal fato teve forte repercussão no avanço da libertação da mulher, pois duas hierarquias foram questionadas pelas atitudes daquelas jovens militantes: a de gênero e a da política em sua forma autoritária.

Ou seja, no Brasil dos anos 1960 e 1970, a presença das mulheres em organizações de esquerda representou uma forte insurgência política e também uma expressiva transgressão ao papel histórico que lhes era destinado. Transgressão bem mais significativa do que poderiam induzir naquele tempo de profunda urgência. Sem uma proposta feminista bem definida e elaborada, as jovens militantes negaram-se a aceitar o lugar tradicionalmente atribuído à mulher. Simultaneamente à militância política, adotaram comportamentos que questionavam costumes e tradições. Um deles foi o de desvalorizar a virgindade e os casamentos tradicionais.

A questão comportamental nos anos 1960 ganhou ressonância com rapidez acentuada e alcançou não só o cotidiano da vida familiar, mas também espaços públicos como universidades, associações de bairros e sindicatos. De forma paradoxal, os anos de chumbo na política corresponderam a um tempo de crescente avanço na emancipação feminina. Portanto, o feminismo militante no Brasil, que também levou às ruas, já ao final dos anos 1970, o Movimento Feminino pela Anistia, deu efetiva visibilidade à questão da mulher e de sua inserção no espaço da vida pública.

Algumas décadas separam o tempo do hoje do tempo das utopias da década de 1960 e da prática insensata do arbítrio dos anos 1970. As jovens militantes das organizações de esquerda do tempo do ontem integram uma geração que, neste novo milênio, alcançou os 60 anos de vida. Ao olharem para o passado não conseguem se eximir de elaborar e reelaborar a experiência vivida. O tempo de retorno, doloroso para aquelas que viveram experiências como a da prisão, tortura e exílio, no entanto, foi percorrido com outra emoção em 31 de outubro, quando Dilma Rousseff foi eleita presidente.

Nesse dia, logo depois do anúncio de sua vitória eleitoral, liguei para uma grande amiga que, como a presidente eleita, dos bancos estudantis migrou para clandestinidade e, na sequência, sofreu a violência da prisão e da tortura. Na época em que foi presa, tinha 19 anos e acabara de ingressar na universidade. Ao ouvir minha voz, não conseguiu falar. Um choro compulsivo substituiu suas palavras. Foi um chorar ardente, que parecia ter sido reprimido por cerca de 40 anos. Fiquei inerte e atenta, entre lágrimas, deixou escapar algumas expressões. Ora traduziam enorme alegria, ora um sentimento de vitória, ainda que tardia. Aos poucos, uma conversa mais calma foi substituindo os soluços e, finalmente, esboçando um riso de pura alegria, ela repetiu as palavras da presidente Dilma Rousseff: “A mulher pode!”

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