04/12/2010

A queda do modelo social europeu e a crise da política como acçom colectiva

Antonio Baylos. Artigo tirado de aqui ao igual do que a imagem.


Ainda que trate-se de uma construção ideológica e política, o modelo social europeu é uma realidade caracterizada, em linhas gerais, pela existência de sociedades que se tinham sabido dotar de um Estado social activo, nas que a representação sindical do trabalho globalmente considerado era o eixo da regulação das condições de trabalho e de vida da maior parte das classes trabalhadoras e onde, em fim, se reconhecia a cidadania social, isto é, a cidadania encarnada numa precisa situação de subordinação económica, social e cultural, como o eixo das políticas públicas e da acção colectiva num processo tendencialmente dirigido para a consecução de espaços mais amplos de nivelação social. Junto a isso, e como elemento de convergência política com a razão de ser da União européia, se reconhecia igualmente a dimensão social da integração económica e monetária de Europa. Esta dimensão social não só implicava uma actuação dos órgãos de governo da União em matéria de política social e de harmonização das legislações nacionais em aspectos importantes da regulação das relações trabalhistas e da segurança social, senão também no esforço de identificação e de precisão de interlocutores sociais europeus em torno do diálogo social e ao reconhecimento da negociação colectiva comunitária, e, em último termo, um amplo movimento compensatório das desigualdades regionais no processo de desenvolvimento económico e social das nações européias, para fazer efectivo um princípio de coesão social.

Este cenário duplo - modelo social europeu que integra "as tradições dos países membros" e dimensão social da integração económica e monetária de Europa - sofre uma reorientação muito importante a partir da ampliação ao Leste da UE e a consolidaçção da Europa dos 27, o freaço à integração política na Carta de Niza e a posterior manifestação evidente da renúncia a manter no espaço internacional uma posição própria, como sucedeu com a Guerra de Iraque. Aprecia-se efectivamente uma recomposição das posições em liza a partir da etapa Barroso, a partir do 2004, que conduz à reformulação das bases da política social e uma mudança radical nos elementos básicos caracterizadores do modelo social europeu.

É este o primeiro objectivo. O Livro verde para a modernização do Direito do trabalho europeu, de novembro de 2006, procede a definir uns novos parámetros dentro dos quais deve a seu julgamento se mover um direito trabalhista harmonizado sobre a base da flexiseguridade, noção de conteúdo variável que, uma vez contraída na de flexiguridade, será assumida como uma linha de mudança na Comunicação da Comissão do 2007. A isso se une uma paralisação prática das medidas de política social e uma renúncia a avançar na harmonização de direitos sociais nos países membros da UE. Ao invés, a Comissão dá via livre a iniciativas muito agressivas com esse "acervo" político, cultural e social que caracteriza o chamado modelo social da cada país, como a directiva Bolkestein de liberalização de serviços ou a Directora sobre o tempo de trabalho. Ambas medidas darão lugar a uma resposta sindical muito contundente e ao posicionamiento na contramão da prática totalidade da esquerda política européia em suas diversas manifestações. Por último, mas de maneira não menos significativa, se produz um giro muito importante na jurisprudência do Tribunal de Justiça, que nos casos Viking e Laval restringe o exercício do direito de greve e da actividade sindical no plano supranacional, e no caso Rüffert, o direito à negociação colectiva, funcionalizando o exercício destes direitos às grandes liberdades económicas e ao dumping social.

Estes elementos presagiavam portanto um questionamento generalizado por parte dos poderes públicos que governavam Europa desse entrecruzamento entre modelos sociais nacionais fortes e uma dimensão social da integração económica muito desenvolvida. A ocasião para uma verdadeira mudança de rota deu-se a partir de fevereiro do 2010, a seguir das turbulências financeiras que originaram o endividamento dos Estados e elevou a alturas inalcançáveis o custo do financiamento da dívida adquirida no saneamento do sistema financeiro que se derrubava no final do ano 2008. Os embates na zona euro e o jogo de um capitalismo de casino com a dívida dos países periféricos da União européia provocaram uma crise nacional sem precedentes nesses Estados-nação aos que o pertence à moeda única não lhes serviu de parapeto. Desta maneira, apresentam-se como consequência inevitável da crise financeira e do endividamento, medidas claramente antisociais que procuram a erosão dos salários, a degradação dos direitos trabalhistas e a redução e asistencialização dos níveis de protecção social. As políticas de recorte do gasto público, algumas delas de uma amplitude extrema, as denominadas "reformas estruturais" do mercado de trabalho, com a implantação de fórmulas acrescidas de flexibilização das relações de trabalho e de redução das garantias de emprego, e, em fim, as reformas dos sistemas de pensões de velhice na ideia de alongar a vida trabalhista e de fortalecer o princípio de contributividade, respondem a essa orientação.

A situação actual, no final do ano 2010, dista muito de estar assegurada, pese à insistência machacona dos comentaristas especializados e os políticos implicados em que "as águas voltaram ao seu cauce" e outras metáforas de normalização social após as catástrofes. Vivemos num momento líquido, onde a velocidade dos factos, sua aceleração contínua e a capacidade de interactuar entre sim impedem considerar definitiva ou simplesmente segura a posição actual das forças em presença. Há no entanto alguns temas que poderiam sugerir certas reflexões a partir desta sucessão de acontecimentos que alimentem um debate sobre os mesmos.

Possivelmente o primeiro aspecto a debater é algo bem conhecido e aludido nos discursos políticos e ideológicos actuais, a idoneidade das políticas económicas que se estão a pôr em prática como fórmula de saída à crise, e que enfrentam conceitualmente à União Européia com os Estados Unidos de América. Nessa contraposição entre políticas de intervenção activa, de expansão da intervenção pública de promoção do mercado de trabalho, e políticas de restrição de gasto público para a redução do déficit, ainda a costa de sacrificar o crescimento económico e impedir a renovação de um modelo de crescimento sobre parámetros de sustentabilidade, têm uma repercussão evidente no domínio dos direitos sociais. No caso europeu, o efeito restritivo e degradatório dos estándares de vida e de trabalho da maioria da população que acarretam as políticas do déficit, se apresenta imerso num discurso que estabelece de forma incontestável o carácter subalterno dos direitos sociais - e da dimensão social da integração económica - à recuperação da economia, estabelecendo uma equação entre crescimento económico e manutenção de direitos, de uma parte, e por outra, entre crise da economia e derogação de direitos trabalhistas e sociais. Naturalmente que este discurso é plenamente questionável, ainda que seja mantido pela prática totalidade dos exponentes da esquerda política actualmente no poder nos estados periféricos de Europa, e cujo máximo exponente é o caso espanhol.

Não se valorizam especialmente os efeitos desta política económica sobre o pensamento e a identidade da esquerda política européia contemporânea. O cenário do ano 2010 produziu uma fragmentação crítica do projecto de mudança que constituía a senha de identidade da esquerda institucional. Pode dizer-se que a disociação acentua-se em função da presença dos partidos socialistas no governo ou sua situação na oposição política, mas resulta muito claro que desprega a sua crise para além desta circunstância. A aceitação acrítica da linha de acção do eixo Francoforte / Brugelas como forma de substituir na prática qualquer decisão divergente sobre as políticas sociais de um país, e a correlativa metabolização no projecto político nacional da política económica européia como a única possível, produz efeitos devastadores não só na percepção cidadã da identidade da esquerda como portadora da mudança e das ideias de reforma e de progresso, senão na própria significação da política como anulação da participação cidadã e na consciência progressiva da inutilidade do circuito político da representação eleitoral. As últimas eleições municipais em Grécia demonstram dramaticamente esta percepção social do desvanecimento da política como forma de afirmar a vontade da maioria da cidadania.

A isso se une uma tendência até o momento não demasiado evidente salvo em circunstâncias que se tinham por excepcionais, dos meios de comunicação, que se obstinam em manter uma opacidade muito extensa sobre as condições de existência social das populações afectadas pela crise económica e pelas medidas arbitradas para sair da mesma que regulam a degradação das situações jurídicas e políticas da cidadania social. No melhor dos casos, os meios de comunicação manifestam um total desinteresse pela dimensão social das dinâmicas económicas e uma a cada vez mais acentuada hostilidade para as posições de resistência colectiva a estas estratégias de saída anti-social.

Como contra-peso a esta crise da esquerda política e crise da própria política, se produziu um deslocamento da defesa actual do modelo social europeu e da autonomia relativa da dimensão social européia respeito das circunstâncias que rodeiam o crescimento económico na região, a uma esquerda social personificada nos sindicatos, que foram capazes de articular agregaçoes transversais de outros sectores sociais e culturais a sua acção de resistência às medidas antissociais e ao projecto de reforma que defendem. Para esta esquerda sindical a crise apresenta-se como uma oportunidade para levar a cabo um projecto alternativo ao desenho institucional que propõe a "gobernança" européia e que se expressa em outra política económica e outro modelo de crescimento.

É verdadeiro no entanto que o sindicalismo europeu em quanto tal se encontra numa situação precária, sem direcção efectiva e à espera de uma liderança real e colectivo. Isto explica também, ainda que não o justifica, a renacionalização evidente do conflito social nos diferentes países afectados pela crise e o desinteresse relativo dos sindicatos nacionais dos estados "centrais" da União Européia por participar numa resistência activa contra as políticas económicas da Comissão e do Banco Central. O diferente peso dos conflitos empreendidos, sua condição fundamentalmente estatal, pese às tentativas bem orientadas de confluir em mobilizações conjuntas, como o 29 de setembro ou a próxima jornada do 15 de dezembro, revelam ademais a escassa força e capacidade de incidência que a esquerda social tem numa actuação isolada e dispersa na cada país.

A força normativa supra-política dos mercados financeiros que pretendem orientar o desenvolvimento concreto das políticas sociais de um país, leva a constatar uma situação de tutela do capital financeiro da democracia de um país com a inevitável desvirtuação do projecto político que os cidadãos indicaram maioritariamente nos respectivos processos eleitorais. Fá-lo sobre a base da impotência dos Estados-nação para poder estabelecer suas condições de adaptação à crise e aos arbitrários ou espontáneos movimentos do capital especulativo que se renuncia a controlar na dimensão supranacional. Esta pressão repercute directamente no desmantelamento e desguace de direitos trabalhistas e de protecção social, de redução dos estándares da cidadania social em toda Europa e o aumento da desigualdade social e regional entre os diferentes países membros da UE.

É verdadeiro no entanto que, pese à crise da política, o sindicalismo europeu se vai afianzando numa mobilização desde abaixo que se consolida lentamente, numa afirmação de sua vertente sócio-política. A mensagem que transmite é importante. Mantém que em frente à crise global que percorre o espaço-mundo, o problema europeu é o de encontrar sua posição na mesma atendendo a suas senhas de identidade, o modelo social que lhe caracteriza. O importante é desenhar como se situa Europa - de maneira integrada, não admitindo a fragmentação culpada das economias nacionais da zona euro - nesse palco da globalização, porque em frente ao que se afirma desde Frankfurt e Bruxelas, não há um caminho único para se integrar nos espaços económicos, políticos e sociais globais, e escolher o que defendem os governantes europeus implica a eleição expressa e consciente de uma opção política precisa que procura degradar o bem-estar dos cidadãos, fazer penosas suas condições de existência e aumentar a desigualdade social e económica.

Esta conclusão é irrefutável e mostra a correcção de uma acção sindical obstinada em articular as maiorias sociais que estão interessadas em preservar um projecto político cívico-social e igualitário em frente aos antolhos do capital especulativo e se relacionar com ele de maneira soberana.

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