20/03/2011

A revolução não cede aos Tomahawks

António Martins. Artigo tirado de aqui. [Bahareim, Síria ou Líbia estám dando conta da orientaçom da contrarrevoluçom que se está dando nos estados árabes e cuja imediatez e fugacidade tem certos paralelismos com as inssucedidas revoltas de 1848 que avalaram toda a Europa, aquela fracassada "primavera dos povos" que tanto iludira a Marx e Engels; nota do blogger].





Em seu terceiro mês, revolta árabe é acossada na Líbia – por Gaddafi e pelos mísseis. E no entanto, avança no Egito, espalha-se pela Síria, produz importantes novidades no Bahrain, Yemen e Arábia Saudita… 


“Quando as armas falam, as ideias silenciam”, lembra com sabedoria um velho ditado. Na semana em que completou três meses, o vendaval árabe foi atingido na Líbia tanto pela selvageria do ditador quanto pelos mísseis lançados por Estados Unidos, França e Reino Unido. Seu desfecho tornou-se imprevisível, como se verá. Mas a revolução prossegue. Ofuscada nos noticiários pelo brilho mortal dos Tomahawks, ela avançou nas ruas e continua a ser narrada nos blogues. Houve desdobramentos importantes e visíveis em ao menos cinco países.

No Egito, milhões de pessoas foram às urnas sábado (19/3), num plebiscito popular sobre temas-chave para futuro do país. As filas – divididas entre homens e mulheres (foto), como manda ainda a tradição islâmica – serpentearam pelas ruas do Cairo e de dezenas de cidades. Os eleitores pronunciaram-se sobre nove temas. Os mais importantes são: o fim das leis “de emergência”, que transformavam o país num Estado policial; a criação de uma Justiça eleitoral; o direito à apresentação de candidaturas independentes, não ligadas a partidos políticos; a limitação do mandato presidencial a dois períodos de quatro anos [muitos ativistas denunciárom com razom que este plebiscito é umha patranha para evitar a constituiçom de assembleias populares que dirijam um novo processo constitutivo; Nota do blogger].


Os resultados ajudarão a compor o cenário das futuras eleições – e em torno delas, há polêmica. Os grupos de juventude e de esquerda, que foram parte essencial da luta contra o regime de Mubarak, não desejam um pleito ainda este ano. Pensam que ele favoreceria as forças mais organizadas: o antigo partido no poder e a Fraternidade Muçulmana. De qualquer modo, prevalece nitidamente um sentimento de entusiasmo. Zeinobia, a jovem autora do ótimo blog Egyptian Chronicles, postou em terceira pessoa, logo após o plebiscito: “e ela está de volta, ela está mais do que contente e não importa se vai ganhar ou perder, porque, pela primeira vez em sua vida, sabe que seu voto contará”.

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Um dia antes (18/3), os sinais de agitação social haviam contagiado a Síria. Antecedidos por pequenos protestos no início da semana, eles explodiram na sexta – emblemática tanto para o mundo árabe quanto para sua revolução. Houve manifestações importantes na capital, Damasco, e em cinco cidades: Aleppo, Baniyas, Daraa, Homs e Deir ez Zor.

É possível acompanhar relatos e vídeos no próprio Egyptian Chronicles, em blogues sírios como Syria in Transition e Syria Comment e na página The Syrian Revolution 2011, no Facebook (onde quase todas as postagens são feitas em árabe). Eles relatam que na pequena Daraa (75 mil habitantes, no extremo sul, fronteira com a Jordânia), a repressão brutal a uma manifestação pacífica com mil pessoas (assista vídeo) provocou quatro mortes. Ontem (19/3), 20 mil manifestantes voltaram às ruas, para novos protestos, durante o funeral das vítimas. Há informações de que, a seguir, o exército isolou a cidade do resto do país.

Em Banyas, cidade portuária no extremo leste do Mediterrâneo, manifestantes tomaram, por horas, o prédio das forças de segurança. Em Deiz ez Zor, centro turístico e petroleiro às margens do rio Eufrates, 5 mil torcedores gritaram slogans contra o governo, durante uma partida de futebol que era transmitida para todo o país pela TV. Após alguma hesitação, a transmissão foi interrompida. Em Damasco, houve manifestação, na sexta-feira, no interior da grande Mesquita de Ummayad, considerada o quarto lugar sagrado do mundo islâmico.
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Já no Bahrain e Yemen, governos com os quais os Estados Unidos mantém sólidas relações promoveram novos ataques brutais contra a própria população, sem sentirem-se ameaçados pelos mísseis. Na capital yememita, Sana’a, forças de segurança reagiram contra manifestações realizadas na sexta-feira. Mataram 42 pessoas. A maior parte das vítimas foi atingida por disparos feitos por atiradores postados no topo de edifícios.

Dois membros do governo – Nasr Taha Mustafa, o chefe da agência oficial de notícias e Mohamed Saleh Qara’a, um importante líder do partido no poder – renunciaram a seus postos. No sábado, o governo impôs estado de emergência. Centenas de soldados e tanques tomaram as principais cidades do país.

Já em Manama, capital do Bahrain, o governo buscou dissolver a rebeldia por meio de medidas bizarras. Na sexta-feira, logo após convocarem tropas estrangeiras para tentar conter a revolta e decretarem lei marcial, as autoridades iniciaram a demolição da Rotatória Pérola (veja foto), que, ocupada durante semanas pelos manifestantes, havia servido como uma versão local da Praça Tahrir, no Cairo. A estátua de gosto duvidoso que dominava o local foi posta abaixo. O próprio calçamento da praça está sendo destruído. Um popular ouvido pelo correspondente do jornal londrino The Guardian zombou da atitude: “O símbolo não significa nada. Estamos na ofensiva”.

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Ainda na sexta-feira, a Arábia Saudita experimentou outra forma radical de combate à revolução. O velho rei Abdullah, de 86 anos, fez uma de suas raríssimas aparições (foto). Em comunicado transmitido a partir de seu gabinete real, anunciou um vasto conjunto de concessões sociais: sua nova tentativa de manter o levante popular que apenas se insinua no país.

Os funcionários públicos ganharam como presente, sem nenhuma contrapartida, dois meses extra de vencimentos. O salário mínimo foi elevado para 3 mil riads (cerca de R$ 1200). Os estudantes universitários foram contemplados com dois meses grátis de mensalidades. Ordenou-se a construção de 500 mil novas casas, que serão vendidas à população com financiamento fácil e barato.
Para enfrentar a inquietação dos milhões de desocupados, instituiu-se um seguro-desemprego equivalente a R$ 800, que começará a ser pago a partir do próximo ano novo árabe. Mais emblemático: o rei prometeu criar rapidamente 60 mil novos postos de trabalho… todos eles nas forças de segurança. Também elevou as patentes de milhares de militares. O blogue Crossroads Arabia é uma importante fonte de informações.

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A importância de todos estes acontecimentos não impediu a mídia comercial de focar todas as atenções na Líbia. Como analisa o sociólogo Immanuel Wallerstein, num artigo publicado por Outras Palavras (e também neste nosso blogue), a militarização do conflito é um passo que interessa a todos os déspotas da região.
Wallerstein, que escreveu em 15 de março – antes, portanto, da reviravolta diplomática1 que levou à Resolução 1973 da ONU e ao início dos ataques ao território líbio –, pensa que é um erro ver a disputa como uma batalha pelo petróleo. A violência foi iniciada pelo próprio Gaddafi – que lançou há um mês, contra a revolução árabe, um ataque que já fez milhares de mortes.

Mas o sociólogo frisa: embora estejam, aparentemente, num lado oposto ao do ditador líbio, os demais tiranos da região sentem-se encorajados por sua atitude. Porque “à medida em que obtém sucesso, ele sugere a todos os outros déspotas ameaçados que a repressão violenta é um caminho melhor que as concessões”.

Os dois primeiros dias após o início dos ataques ocidentais parecem dar razão a este raciocínio – segundo o qual a verdadeira disputa não se dá entre potências ocidentais e Líbia – mas entre a multidão árabe e os Estados que querem esmagá-la.

Na manhã do sábado (19/3), horas depois de se declarar disposto a um cessar-fogo, o ditador líbio lançou um ataque devastador contra Benghazi, o último reduto da revolta que permanecia imune a sua ofensiva militar. Houve centenas de mortes, entre as quais a de Mohammed Nabbous, ou Mo, jovem jornalista que animava o canal de WebTV AlHurra (ainda ativo!).

Os ataques que Estados Unidos, França e Grã Bretanha iniciaram horas depois, e cujos desdobramentos são incertos, dificilmente servirão à revolta árabe. Se bem-sucedidos, favorecerão os grupos líbios militarizados que se opõem ao ditador. E a guerra encobre, convenientemente, as atrocidades que continuam a ser praticadas, neste exato momento, pelos demais tiranos, aliados de Washington, Paris ou Londres.

A militarização do cenário será suficiente para sufocar a revolução árabe? É muito cedo para responder. O levante, que já é um dos grandes acontecimentos do século 21, começou apenas em 17 de dezembro passado. Mohammed Bouazizi [ver na Wikipedia], o vendedor ambulante com formação universitária que se cansou de sua vida medíocre e imolou-se em público, em Tunis, não poderia imaginar que seu gesto mudaria a face de uma das regiões estratégicas do planeta.

Os novos fatos da revolta e sua repercussão em todo o mundo sugerem que a chama atiçada por ele permanece acesa.

1Sobre esta reviravolta, liderada pela secretária de Estado Hillary Clinton, vale ler reportagem no New York Times (em inglês)

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