03/10/2011

Fukushima: cenas de um inferno

Tomi Mori. Artigo tirado de Esquerda.net (aqui).

Barcos arrastados pelo tsunami a centenas de metros da praia em Minami Soma. Esta e todas as fotografias deste artigo são de Tomi Mori
Segunda parte do relato da viagem que o correspondente no Japão do Esquerda.net fez à região mais atingida pelo terremoto, pelo tsunami e pela crise nuclear de Fukushima. “Vi cenas de um inferno que jamais esperei ver.”

Sai de Iwaki em direcção a Fukushima 1. Conduzi por alguns quilómetros e vi uma placa indicando que havia um bloqueio policial mais à frente. Continuei, para ver o que iria encontrar. Um polícia levantou uma bandeira vermelha, indicando-me que parasse o carro. Perguntou se eu possuía a autorização para entrar na zona de entrada proibida, ao que respondi que não. Disse-me que teria que fazer marcha atrás e voltar. Perguntei como fazer para chegar à cidade de Minami Soma, no outro lado da semi-circunferência do perímetro de entrada proibida. Indicou-me a estrada, por onde segui.

Era um polícia de outra província, Niigata, o que pude saber lendo o nome na sua jaqueta. A irresponsabilidade da TEPCO obriga a mais esse desperdício de dinheiro público, já que a polícia teve de fazer um cordão num perímetro de 20 quilómetros. Acrescenta-se a isso que polícias de várias (todas?) as províncias estão no esquema organizado, o que acarreta mais despesas com transporte e alojamento pago, em hotéis. Continuamos a pagar uma conta que deveria ser entregue à TEPCO.  

Duzentos quilómetros para evitar 20

Vendo a placa na rodovia expressa, na qual fui obrigado a entrar, descobri que teria de voltar quase cem quilómetros se quisesse avançar rumo ao Norte pela estrada costeira. Algumas estradas locais passavam pelo perímetro proibido, o que me impedia de utilizá-las. Além disso, ninguém sabia dar uma informação precisa da real possibilidade de percorrê-las. Dei-me conta do significado de mais esse transtorno para a população local, já bastante afectada. Percorri algumas dezenas de quilómetros numa volta que resultou ser de 200 quilómetros, para desviar do perímetro de 20 quilómetros.  
    
 
No céu de Outono, de um forte azul, havia belíssimas nuvens. O caminho passava por vários vilarejos, cuja principal produção é o arroz.

Passei também pela cidade de Nihonmatsu, onde foi descoberto por estes dias o arroz com radioactividade acima da permitida.



A volta que fui obrigado a dar fez-me passar pela cidade de Fukushima, capital da província do mesmo nome. Durante esse trajecto pude entender quais foram os estragos causados pelo terremoto e os provocados pelo tsunami. No caminho, havia muitas casas com sacos de areia ou terra em cima de lonas azuis no telhado, para proteger da entrada de água. Ainda que tenha visto muitas casas nessa situação, causada pelo terremoto, não vi nenhuma construção destruída pelo mesmo. Vi uma casa pendurada também num barranco que tinha deslizado.



Comparado, nessas circunstâncias, com a devastação causada pelo tsunami no litoral, o terremoto parecia não ter causado, directamente, tantos estragos. Passei pela cidade de Date, onde vi os mesmos estragos, e rumei, novamente, para o litoral, onde fica Minami Soma, no outro extremo do perímetro de entrada proibida.


Fúria devastadora

 Percorrendo as estradas da cidade de Minami Soma, pude imaginar o tamanho da fúria que atingira o local. Vi quase vinte barcos atoladas nos terrenos, próximos às estradas, casas e prédios.

Com espanto, observei em direcção às montanhas uma torre eléctrica que jazia tombada, coisa que nunca imaginei ver na vida.



Avancei em direcção ao mar. No caminho havia postes tombados, cabos eléctricos também caídos, cercas de metal de protecção da estrada tortos e despedaçados. Um deserto com algumas casas sem-destruídas ainda não demolidas. Chamou-me a atenção uma, enorme, que pertencia, provavelmente, a uma família abastada. Tirei uma única foto. Enquanto escrevia algumas notas no terreno da casa, uma pequena camionete estacionou ao lado. Um japonês de cerca de 30 anos, com uma toalha amarrada na cabeça, perguntou-me o que eu fazia naquele local. Respondi que fazia reportagem. Questionou-me sobre a foto que me vira tirando. Havia outros com ele e intuí que, involuntariamente, tinha me metido numa confusão. O clima não estava amistoso e o homem estava visivelmente perturbado.

“Aqui continuam desaparecidas quatro pessoas”

Pedi, sinceramente, desculpas. E, na sua frente, apaguei a foto que tirara. “Eu sou o proprietário dessa casa. Aqui continuam desaparecidas quatro pessoas. Eu tenho um monte de recordações dessa casa”, explicou. Não havia dúvida de que eu fizera justamente aquilo que não estava disposto a fazer nesta viagem, ferir ainda mais pessoas já bastante feridas. Lamentei profundamente a situação. No final ele que, pela placa do carro, sabia que eu viera de longe, ainda foi bastante cortês, comentando que eu viera especialmente de um lugar distante. Desculpei-me mais uma vez e parti.


A praia era um lugar desolador, com lixo por todos os lados. Uma parte tornara-se um pequeno pântano, com os alicerces das casas a demarcar o local. Segui pela costa, retornando em direcção a Fukushima 1. Encontrei uma barreira na estrada, indicando que era proibido seguir em frente. Não havia nenhum polícia. Num terreno na praia havia carros empilhados à espera de serem desmontados.



Voltei à estrada principal e encontrei nova barreira policial. Antes da barreira, parei o carro num estacionamento. Fui caminhando em direcção aos polícias para tirar algumas fotos. Uma equipa de reportagem também estava no local. Para não me ver em problemas, pedi aos polícias para tirar uma foto. Eles consentiram. Pude ver que uma camionete de um vendedor ambulante de batatas-doces estava a ser investigado por estar na zona proibida.



Rodara 200 quilómetros, dando a volta aos dois extremos do perímetro, para me certificar do óbvio. Não era possível entrar na área sem permissão. Mas a imprensa já noticiara antes que alguns moradores se negaram a cumprir a ordem e haviam permanecido. Segundo o polícia, apenas pessoas que estavam a fazer algum trabalho podiam ingressar na zona. O que sabia não ser verdade.

 Voltei à estrada principal, dirigindo-me ao porto. Muita coisa que vira na viagem anterior, como o mercado de peixes, não deixara nenhuma sombra da sua existência. A enseada de Matsukawa-ura, um belo local dessa costa, estava devastado, com construções submersas, assim como carros. Os pinheiros, que compunham o cartão postal da cidade, estavam castanhos, mortos.

“Cidade da morte”

As notícias tinham-se concentrado na crise nuclear e, sem que tivesse visto com os meus próprios olhos a fúria da devastação, não poderia compreender a violência com que o tsunami atingira a central nuclear. A primeira conclusão é óbvia: a central não estava preparada para o desastre. A segunda conclusão, menos óbvia, é que apenas a “sorte” impediu que uma tragédia ainda maior se abatesse sobre Fukushima 1, criando um Apocalipse (o que ainda não está completamente descartado).

Não pude ver a central e os seus arredores, mas pude compreender, claramente, por que razão o recém-empossado ministro Yoshio Hachiro chamara o local de “cidade da morte”, comentário desastrado que provocou a sua queda imediata. Certamente, Hachiro, na sua visita a Fukushima 1 e arredores, pôde ver o que eu não vi. Uma cidade morta, com prédios que não podem ser demolidos devido à radiação, um lugar espantoso e aterrador, que gerou aquele infeliz comentário

Saí de Minami Soma com uma ideia mais clara do que fora toda a tragédia e, em particular, a crise nuclear.

 Continuei pela rota 6. Toda a costa da província de Fukushima, pelo que havia visto, fora devastada pelo tsunami. Já tinha escurecido quando entrei na província de Miyagi. Segui até Sendai, capital da província e, mais uma vez, parei o carro num estacionamento de uma loja de conveniência para dormir. Fora um dia cheio, tirei um montão de fotos, vi cenas de um inferno que jamais esperei ver. Pensei que já vira o suficiente e que não gostaria de continuar a ver-

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