31/01/2012

De coraçons levantados e peles arrepiadas

Héctor Rodríguez Vidal. O autor é licenciado em filologia clássica pola USC e membro do grupo de trabalho da mocidade irmandinha. Actualmente reside em Vigo.



Foi umha pessoa, e todas somos, por isso é verdade que lhe é devida a ela também empatia, sem dúvida. O que dói (sobretodo entre as que ainda partilhamos certas ideias da tradiçom cultural cristá) é nom poder considerar justo dedicar-lhe a mesma empatia que às pessoas que passárom meia vida sem poder dar um pio sob a ameaça constante dum fuzil (por vezes concreto e por vezes abstracto) e outra meia a temer a vergonha pública instituída sobre as mesmas instituiçons militarizadas. O doloroso é que existam graus e classes de empatia tam afastadas entre si, se bem que sempre há graus, pois a mesma empatia para todo ser humano é umha farsa, ainda polo simples facto de cada umha partilhar desigualmente com outras pessoas a sua existência (e é mesmo a norma nom ter relaçom regular cos sete milhons de indivíduos humanos no planeta).

A pessoa de que se fala passou tanto tempo à frente do governo de Galiza quanto preciso para chegar a parecer parte da paisagem, foi símbolo (anacrónico, apesar de acabar por nos fazermos à imagem) da hegemonia ideológica no nosso país das pequenas proprietárias agrícolas conservadoras (como “nom-classe”, se se quer), aquelas que tomam posiçom pública escontra os seus próprios interesses materiais. Foi lá dominante a mentalidade pré-capitalista da boa vassala: sem umha burguesia poderosa avondo (e urbana ou urbanizada), foi preciso um discurso ruralista que da mam desta mandatária nom foi senom um discurso (e umha praxe, nom se deve esquecer) suicida, dum rural querendo se destruir a si próprio. Aquela que estivo à frente dum governo de papel foi umha pessoa que tivo de ser ciente do suicídio ao que o sector primário estava a dirigir seus passos e ajudou-no sempre que tivo ocasiom a caminhar para tal destino, foi-se embora quando o processo era dificilmente reversível e o discurso puido centrar-se afinal na cidade (centro em que, por via da regra, se desenvolve a vida económica no capitalismo). Se a algumha se lhe passou pola ideia que um rural que cria riqueza num mundo capitalista vai dar o mesmo resultado, a transferência de protagonismo político ao espaço urbano (por ser tal localizaçom, para “o sem-sentido” comum, o melhor lugar para os novos investimentos produzirem receitas) deve entender que nom é o fim desejado: o neoliberalismo, em plena expansom naqueles tempos, falava do êxito dum modelo exportador, mas... Quem importaria em massa nesse mundo vindouro quando tal seria a fórmula perfeita para a depauperaçom generalizada? Nós e umha parte importante do restante território vassalo do Reino da Espanha (e Portugal, e os restantes membros do doestado clube dos PIGS, por falar apenas de Europa) temos em nós próprias a resposta, embora nom gostemos demais.

Se o discurso ruralista conservador implicava a etiqueta de ruralista apenas se se qualificava de suicida, o discurso neoliberal e a sua prédica dumha crescente concentraçom da propriedade mesmo quando contrária à produçom de nova riqueza parece estar numha situaçom análoga, mas se calhar é um excesso ver lá analogia demais, já que o primeiro caso fala da transiçom do “neo-feudalismo” ao capitalismo... e o segundo parece falar do contrário. É um bocado bizarro ver que dá um canto fúnebre, já que, embora pareça que se rompeu o fio argumental, afinal está todo ligado, pois essa pessoa (importante e notória) influiu numha parte importante das nossas futuras relaçons co mercado globalizado hodierno, e seguirá influindo enquanto fiquem as cousas como estám. Nom, a analogia nom se cumpre na realidade, o neoliberalismo nom é apenas suicida quanto conceito, mas como o pesadelo que foge do mundo de Morfeu, encirra os ventos que trazem a guerra no mundo real, quase único meio eficaz para alentar o crescimento económico quando a depressom geral se desencadeie (e parece Irám ser um dos pontos de igniçom mais plausíveis, sendo a grande maçá da discórdia entre os interesses estadunidenses e os das potências emergentes eurasiáticas).

O senhor defunto nasceu num mundo em que nem existia ideia clara de que podia significar o facto de ser cidadá, a tradiçom sempre falara de vassalagem, e em nome da sobrevivência dumha das duas ideias (cidadania e vassalagem) nasceu umha guerra num reino que deixara de sê-lo para afinal dar a vitória às apologetas da “pessoa-vassala”. Sendo como foi, o regímen que seguiu tivo de tentar matar por completo a ideia de cidadania excluíndo, encarcerando, torturando e matando defensoras de pensamentos perigosos. Morreu um símbolo desse mundo, na medida em que as pessoas somos capazes de ser símbolos, e nunca deixou de fazer apologia activa daquele reino sem rei que nunca clareou o sangue em que se enchoupou num longo após-guerra, mesmo quando o mundo virou diferente, ou quixo parecê-lo. Tal como no reino da Espanha, na Europa umha parte do mundo da alta empresa do fascismo sobreviveu à mudança de régimen apesar de toda mudança política, como se as grandes companhias nom perceberam nada de política ou perceberam mais do suspeitado por ninguém: com efeito, quanto maior a macrocefália da burguesia de cada estado, tanta maior a continuidade institucional das grandes companhias (por serem proporcionalmente muito representativas dentro do tecido [im]produtivo).

Afinal um Fraga sendo empregado público nom é umha excepçom tam enorme se bem que outros casos (famílias nobres envolvidas mais ou menos activamente no franquismo, por exemplo) nom fôrom tam visuais quanto umha pessoa que construiu boa parte da sua posiçom social em tempos do fascismo e da guerra fria até chegar ao próprio Governo do reino-sem-rei. Falar das incoerências da transiçom no Reino da Espanha implica acabar por falar das incoerências que em occidente se registárom em tempos do antifascismo, do frustrado golpe de estado que em 1934 se tentou em EEUU, da continuidade à frente do desenvolvimento económico no após-guerra de companhias que se empenharam em diferentes graus no bando do fascismo e daí para a frente.

Eis o grande paradoxo dos nossos dias, a incoerência histórica a tentar nom se corrigir para evitar transformaçons socias profundas que nos levem para outro cenário cumhas outras regras do jogo: se se revisar cá a história, pode-se estender a ideia a revisom do passado (e é que se está a falar disto em parte por causa das revisons judiciárias em América do Sul dum passado análogo) para serem as consequências futuras no mínimo pouco certas. As fontes históricas, para além do espaço deixado à hermenêutica, som hoje mais numerosas do que nunca fôrom, do mesmo modo em que o accesso às mesmas nunca foi tam democrático, e é por isso que a tendência à correcçom das incongruências tem tanta força hoje. Por isso a cada dia a internet se mostra um bocadinho menos livre (porque nunca o foi em rigor) e a vigiláncia cresce sem nengum pudor perante o rosto medroso da sociedade civil: todas as monstruosidades que se figérom mesmo nas últimas décadas nom fôrom nunca tam flagrantes, nem a “história do tempo presente” tam imediata na criaçom do seu discurso.

Nunca o mundo do mercado globalizado que leva a existir desde há séculos foi deveras tam global quanto hoje se mostra à vista de todos; a internet quer ser na boca dos média a razom das revoltas árabes (embora consideremos inter nos apenas revoltas cívicas as que fôrom endogénicas), mas lá distorcem as cousas confundindo causas com circunstáncias favoravéis. A internet é um meio, mas é o contexto histórico em que se insere que a faz receptáculo de disidências de toda a ordem, afinal foi enquanto as alemás deitavam o muro de Berlim quando em Azerbaijám decidírom derrubar a aramagem que as separava das suas irmás de Irám, e para isso nom precisárom da rede para organizar nada, existia já um grau de globalizaçom suficiente para acontecerem situaçons semelhantes. Se nom existir a rede, haverá outros meios, mas sempre serám os meios concretos que sustentem a globalizaçom económica os que globalizem as luitas emancipatórias em toda a parte, portanto, xebrar meios globalizadores de protestos globalizados é muito difícil em caso de nom se destruírem as condiçons prévias que configuram o cenário da globalizaçom: se há globalizaçom (quando capitalista) há protesto global, é assim simples.

Manas, a indignaçom pola morte dumha pessoa que findou na situaçom em que Manuel Fraga o fijo é justa, todas perdemos nesse jogo em que as implicaçons criminosas som apenas punidas dependendo da camada social e a ideologia dum réu sem juízo, nem acho preciso exigir umha puniçom muito severa, mas o suficiente para a justiça poder olhar-se no espelho sem se envergonhar de si própria. Comparamo-nos co mundo e a nossa situaçom num pretenso primeiro mundo vai ficando culturalmente (e economicamente, quem duvida!) desmentida, vemo-nos pouco a pouco mais com olhos alheios que cos próprios neste mundo globalizado, começamos a nos ver mais como párias e perdedoras no ilusório jogo do livre mercado mundial e da democracia occidental. Rebenta a bolha financeira e se esvaece o paradigma da cidadá-consumidora para se erguer a figura nítida daquilo em que virámos sem crédito bancário: a cidadá-dependente, adicta a se injectar qualquer produto que permita acalmar o doloroso sentido da realidade. Neste absoluto absurdo perdemos todas: as vítimas do crime ficam desvalidas, a acusada nom pode já limpar seu nome (quer demostrando a sua inocência quer cumprindo a pena estipulada) e nosoutras, entre vítimas e verdugos, ficamos desvalidas e co nome sujo... no entanto ao menos.

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