Carlos Taibo. Artigo tirado de aqui.
No seio da esquerda que quer resistir fazem-se valer duas visões muito distintas no relativo à condição da crise que nos esgana por todas as partes.
Essas duas visões diferem substancialmente na hora de avaliar o grau de corrosão do capitalismo e o fazem-no também ao chegar o momento de atribuir ou não um relevo decisivo à dimensão ecológica da crise em questão. Como é fácil intuir, remetem, em fim, a percepções díspares a respeito de quais são as tarefas principais que devemos acometer.
1. A primeira dessas visões --a que faço minha-- parte da certeza de que o capitalismo, num estado de corrosão terminal, perdeu dramaticamente os freios de emergência que no passado, e em diversas circunstâncias, lhe permitiram salvar o pelelho. Não só isso: deixou de ser o sistema eficiente --explorador, injusto e excludente, sim, mas ao tempo eficiente-- que foi no passado. E é que o que agora está em jogo não é só a dimensão de exploração historicamente vinculada com a lógica do capitalismo: a essa dimensão somam-se as sequelas de um sistema que, de sempre predador e esbanjador, acabou por lesionar gravemente os direitos das gerações vindouras. Assim, o crescimento económico de que os nossos patéticos governantes se reclamam acompanha-se de retrocessos dramáticos em matéria de coesão social, de agressões meio-ambientais sem conto, de ativos processos de esgotamento dos recursos e de fórmulas inéditas de feroz exploração dos países pobres. Todo o anterior é fácil de perceber uma vez se lhe outorga um significado múltiplo à palavra 'crise' e se elude a rápida e mecânica identificação desta com o 'financeiro' para incorporar uma consideração séria de fenómenos tão lacerantes como a mudança climática, o encarecimento inevitável dos preços da maioria das matérias primas energéticas que empregamos, o deterioro planetário da condição das mulheres ou a prosecução do espólio dos recursos humanos e materiais dos países do Sul.
Assim as cousas, e se nada mudar, há que preparar-se para o que antes ou depois --eludirei as precisões, sempre delicadas, quanto ao momento de manifestação do fenómeno-- será uma deriva autoritária, e desesperada, na forma de uma sorte de darwinismo social militarizado. Só têm cabida então, do nosso lado, e dentro deste diagnóstico, duas contestações. Se a primeira assinala que há que pelejar por sair quanto antes do capitalismo como tal - e não só do capitalismo ‘desregulado’ -, a segunda, mais céptica no que se refere às nossas possibilidades, inclina-se por esperar que o colapso provoque uma repentina iluminação entre uma boa parte dos integrantes da espécie humana. É doado intuir, decerto, que este último horizonte, com esse colapso de por meio, apresenta perspectivas muito delicadas.
Doravante, quem abraça esta primeira visão considera inescusável que qualquer programa de emancipação questione abertamente a ordem da propriedade capitalista, reivindique a autogestão generalizada, procure criar novos espaços autónomos longe do sistema dominante, aposte nos países centrais por estratégias de decrescimento e propicie, em suma, a organização desde a base com franco receio do que infelizmente se coze ao abrigo da maioria dos partidos e os sindicatos, e sob as eleições e as suas tramas.
2. A segunda das visões - partilhada por essa maioria de partidos e sindicatos que acabo de mencionar - parece partir de um diagnóstico inclinado a apreciar alguma vitalidade, ainda, no capitalismo destas horas. Conforme a esta percepção, a corrosão deste seria muito menor, pelo que teria sentido apostar por um retorno ao estado de cousas prévio à crise. Tratar-se-ia, noutras palavras, de reconstruir, no mundo opulento, os muitos elementos dos Estados do bem-estar objeto de agressões nos últimos anos/decénios. Neste senso, e vejamos as cosas como as virmos, parece difícil descrever este projeto sem vinculá-lo de maneira expressa com o que foram de sempre as propostas da socialdemocracia consequente. E isto ainda que prestemos, em um momento em que o tempo começa a faltar-nos, uma atenção tão educada como cética à ideia de que a reconstrução dos Estados do bem-estar não seria senão um primeiro passo caminho de horizontes mais ambiciosos.
Temo-me que - frente às acusações de radicalidade sem sustento que recebe comummente a primeira das visões, já glosada - esta segunda percepção, à margem de tender uma patética ponte de prata ao capitalismo para que este recapacite e retifique, é um projeto ilusório que ignora a realidade do momento presente. E é que se alicerça em significativos esquecimentos. Enquanto o sistema imperante, por um lado, não parece disposto a aceitar este regresso ao passado, pelo outro o Estado do bem-estar é uma fórmula inequivocamente vinculada com o capitalismo e impensável, por isto, fora deste último. Haveria que apostar, nessas condições, por um projeto tão patético como o que se orientaria a criar capitalistas de novo carimbo, repentinamente civilizados? Não está de mais sublinhar, por acréscimo, que o Estado do bem-estar é uma instituição própria do Norte abastado e que, como tal, semelha uma fórmula dificilmente sustentável em um cenário marcado pelas regras - penso agora ante todo nas ecológicas - que abraçou historicamente um capitalismo entregue à tarefa de ignorar de forma orgulhosa os limites meio-ambientais e de recursos do planeta.
Esta segunda visão parece, pelo demais, preocupantemente lastrada pelas suas perceptíveis ramificações curtoprazistas e eleitoralistas, e, em seu caso, pela sua condição de mera contestação, tão inercial como moderada, às agressões. Tratar-se-ia, noutras palavras, de realizar a tarefa que preferiram esquivar, afundidos no magma neoliberal, os partidos socialistas que foram abandonando os seus primigénios programas socialdemocratas. Acaso não é preciso acrescentar que, como quiser que a percepção que nos ocupa assume todas as regras do jogo do sistema sempre e quando reapareça a regulação perdida, arrasta um atávico desdém por todo aquilo que cheirar, a sério, a sair do capitalismo e, ao tempo, receia dos elementos programáticos - questionamento da ordem de propriedade vigente, autogestão, criação de espaços autónomos, decrescimento, organização desde a base - que liguei umas linhas mais acima com a primeira das visões. Nas traseiras o que se prevê é um esquecimento mais: o de que existe um grave risco de que todo se afunda enquanto depositamos a nossa atenção nos Estados do bem-estar e ignoramos o relevo ingente da combinação de crise ecológica e exclusões sociais.
3. Alguém acha a sério que limitando-nos a brigar por manter ordenados e empregos resolveremos os problemas principais que nos assediam? Alguém considera válido um discurso sindical que há muitos anos deixou no sótão as palavras ‘exploração’ e ‘alienação’? Alguém crê de verdade que tem pleno sentido essa triste tarefa à que parecem entregados os economistas da esquerda oficial não neoliberalizada: a de sublinhar que há formas de acrescentar a produtividade que não passam por reduzir os salários e congelar as reformas, sem discutir, então, o principal, isto é, o próprio absurdo dessas formidáveis estafas que som a dita produtividade e, com ela, a competitividade e o crescimento?
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