04/01/2012

Marx, o 19/20 e o kirchnerismo


Amílcar Salas Oroño

Cientista político da Universidade de Buenos Aires. Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

Quando Marx diz que “tudo que é sólido desmancha no ar" está se referindo a mudanças de larga duração. Os dias 19 e 20 (de dezembro de 2001, que provocaram a queda do governo De la Rúa) cruzaram uma fronteira na Argentina. Estava claro que, a partir dali, as coisas já não seriam as mesmas. Foi se desvanescendo o edifício dos lugares comuns do que devia ser uma democracia, do que significava ser cidadão, os direitos, as obrigações. Foi um movimento liberador essencialmente destrutivo, de negação.

1. Em Marx, as imagens jogam um papel decisivo: permitem ao leitor ter em mente uma figura melhor das dimensões, dos espaços e do tempo do drama contido no conflito entre as classes. São recursos quase literários, líricos, ao serviço da análise das contradições e dos antagonismos do capitalismo. Muitas vezes esse jogo de imagens e palavras é intermitente: às vezes querem dizer uma coisa e às vezes outra; são como morcegos: dependendo da sombra, podem ser pássaros ou ratões. Mas essa insistência de Marx em usar símbolos e metáforas variadas em sua ciência vem de sua própria percepção de que a própria realidade é um conjunto de signos. Os signos da rua. A luta de classes se reorganiza, também, pelo que é posto pelos planos da supraestrutura política e ideológica e pelas palavras da rua, por como os imaginários sociais ordenam as ações cotidianas, desde as domésticas até as mais transcendentes.

2. O pertencimento a uma classe social, a um estamento, um determinado grupo, não é uma delimitação milimétrica, formal e estática, mas sim dinâmica e variável; os contornos das classes são móveis. O nó de nossa encruzilhada coletiva de uma uma década atrás foi o fato de que o neoliberalismo levou as coisas a tal ponto que ninguém – que não fosse das elites ou dos setores dominantes – sabia muito bem qual era sua situação. Por todos os lados, reinava a incerteza. As identidades de classe se tornaram difusas – umas mais do que outras – ou então se degradaram em distinta intensidade, ao compasso de um enorme mural onde a pobreza devolvia pequenos fragmentos desoladores desde diferentes regiões do país.

Desde meados dos anos 1990, tudo foi uma sequência de relatos dolorosos, onde a infância se transformava em sinônimo de pobreza, a discriminação pela aparência no substantivo juvenil e a vergonha econômica do pai em um lar sem alegria. De Tartagal a Neuquén, de San Justo a Rosario, as notícias da rua falavam majoritariamente de decepções pessoais, progressos impossíveis.

3. Neste contexto, a luta de classes não se estruturou em um antagonismo de um bloco frente a outro, com canais de negociação; foi tudo mais desordenado e confuso. Apareceram, sim, práticas de classe (subalterna). Houve práticas de classe dispersas, solidárias, reparadoras. Mecânicas coletivas, engenhosas, de mão em mão, que não construíram um sujeito político específico, mas que tiveram a potência suficiente para perfurar a rede ideológica que cobria a dialética social: símbolos e interpretações contrárias às que propunha o neoliberalismo. O 19 e 20 de dezembro (de 2001) como processo histórico – isto é, o que vem antes de 2001 e se projeta para adiante – quebrou aquele molde autodisciplinador no qual havia sido capturado o sentido de nossa democracia.

Emblematicamente, fez isso anulando a legitimidade do que constitui o último recurso do domínio estatal, o estado de sítio.

Os dias 19 e 20 (de dezembro de 2001) cruzaram essa fronteira. Estava claro que, a partir dali, as coisas já não seriam as mesmas. Foi se desvanescendo o edifício dos lugares comuns do que devia ser uma democracia, do que significava ser cidadão, os direitos, as obrigações. Foi um processo, um movimento liberador essencialmente destrutivo, de negação: negou-se a naturalização daquelas imagens, o convívio com essa realidade produtora daquelas imagens. No meio, um coro de vozes pedindo “ordem”: os setores conservadores, as elites.

4. Aberta a fenda, a elaboração dos novos moldes, parâmetros e linguagens democráticas prosseguiu durante o kirchnerismo, na base de uma dialética substancialmente distinta. A reafirmação de novos imaginários não surgiria desde as apostas em práticas de classe em uma sociedade desconjuntada, mas sim desde as decisivas alavancas impostas pela interação entre políticas públicas, governo e estrutural social. O Estado entrou em cena para prosseguir, desde esse ponto de vista, com a confecção de uma nova metáfora da democracia; como socializador, integrador, normatizador e legislador.

Obviamente é outra a contundência quando o Estado é que se converte no organizador material e discursivo da realidade: ao mesmo tempo que recompôs certezas econômicas e identidades sociais, mediante um amplo leque de medidas heterodoxas e originais, dando um novo contorno inclusive as relações de pertencimento de classe, instalou novos princípios de reconhecimento intersubjetivo, revolucionando valores, impulsionando outras imagens: “nós podemos casar com os mesmos direitos”, “o trabalho da dona de casa é um trabalho”, etc. O kirchnerismo é, entre outras coisas, também um aporte a esse mapa democrático.

5. Vivemos hoje em um outro país que aquele de 2001. Os signos da rua e as propostas dos poderes políticos são outras. Há uma década, Ines Pertiné de De la Rúa armava um apaziguador presépio gigante na porta da Casa de Governo para contrapor a atmosfera social. Hoje, ali, entrando no prédio, há um salão com a imagem do Che, de Zapata, de Tupac Amaru...Naquele sentido não superficial nem secundário para Marx – o da produção de signos, representações coletivas e significados do que pode ser uma sociedade - , o trajeto que vai daquelas práticas de classe aos efeitos que pode produzir a socialização política estatal do kirchnerismo mostra uma conexão interna de sentido histórico; talvez sejam momentos de um mesmo processo, o da democratização da sociedade argentina.

Quando Marx anuncia que “tudo que é sólido desmancha no ar e todo sagrado é profanado”, está se referindo a mudanças de larga duração, não a um fato específico nem a um relâmpago pontual da história. A derrubada daquele universo (simbólico) democrático que tivemos de 1983 a 2001 também levará seu tempo: ainda há elementos que sobrevivem, há palavras, ideias e comportamentos que resistem a ser substituídos. Mas a impressão é de que, pelas imagens que nós mesmos refletimos, alguns passos foram dados. À maneira de uma toupeira, laboriosa e animada.

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