Por Franklin Lamb, no Counterpunch | Tradução: Vila Vudu. Tirado por nós de Outras Palavras (aqui).
Com a multiplicação de milícias armadas, centenas de prisões arbitrárias e aumento descontrolado dos preços, país parece incapaz de se reerguer do caos
Faz um frio incompreensível em Trípoli, nesse fim de semana de Ano Novo. Muita chuva inunda as ruas, o que me faz lembrar Londres nessa época do ano, como se eu não estivesse no litoral Mediterrâneo do Maghreb. Estou hospedado num modesto hotel familiar, perto da rua Omar Muktar, barato e limpo, mas meu quarto não oferece outro aquecimento além de uma pilha de acolchoados turcos, de veludo.
Muito mais importante que os cobertores, para mim e para o outro único hóspede do hotel, um engenheiro líbio de Sirte, cuja casa foi incendiada pelos rebeldes no início de outubro, é o proprietário, que reabriu o hotel no início de dezembro, depois de ter permanecido fechado desde março passado. O homem é uma enciclopédia viva de informação e opinião sobre “a atual situação” por aqui. Mas o dono do hotel e seus dois filhos que falam inglês não são os únicos que começam a falar cada vez mais fortemente, sobre a realidade na “nova Líbia”, já quase dois meses depois de a OTAN ter declarado mais uma vitória e ter parado de, atirar sistematicamente — embora, pelo que se vê aqui, sem olhar para onde –, até reduzir a ruínas esse país essencialmente sem defesa militar.
Conto com a sorte, nessa viagem, para encontrar meu melhor amigo nos meses que passei na Líbia, no verão passado. “Ahmad,” como a maioria dos contatos, desapareceu sem deixar rastro dia 22 de agosto, quando as forças da OTAN tomaram Trípoli. Como muitos disseram a vários de nós, que procurávamos por pessoas conhecidas, as pessoas que conhecemos no verão ou fugiram, ou estão presas ou foram mortas. Mas “Ahmad” ressurgiu em setembro, por e-mail, para dizer que estava escondido. Viajara para o sul da Líbia, para uma pequena vila no Sahara, cujo nome, disse-me ele, nunca seria encontrado em nenhum mapa, muito menos no Google Earth. Mas depois daquilo Ahmad novamente desapareceu, quando se aventurou a vir a Trípoli ver a família. Foi traído por amigos que receberam dinheiro das milícias para entregá-lo, foi preso, torturado e esquecido na prisão, sem qualquer acusação formal, simplesmente porque sua família é conhecida por apoiar Gaddafi. Na última semana que permaneceu preso (e só foi libertado, porque um dos guardas, seu ex-colega de escola, reconheceu-o), Ahmad e outros mais de 100 prisioneiros, inclusive Sheik Khaled Fantouch, todos mantidos numa grande sala improvisada como prisão pela milícia de Misrata, nada comeram e só se mantiveram vivos porque dividiam entre eles uma pequena ração de água.
A vida é hoje mais complicada na Líbia praticamente para todos, inclusive visitantes estrangeiros. Por exemplo: no verão, antes de 21 de agosto, se você cruzasse numa rua lateral com tipos com caras de poucos amigos e pesadamente armados, boa ideia seria sussurrar “Alá, Muammar, Líbia, al bas”(é tudo de que precisamos!), e havia boa chances de você ser bem tratado e bem recebido. Hoje, é muito mais difícil. Mais de 55 diferentes milícias rebeldes, um total de mais de 30 mil homens armados, controlam diferentes áreas de Trípoli, e muitas dessas milícias não têm qualquer ligação direta com o Comandante Belhaj, chefe do Comando Militar de Trípoli, e não se sabe, de fato, a quem obedecem.
Belhaj, ex-comandante da Al-Qeada, esteve preso na Líbia durante sete anos, quando EUA e Grã-Bretanha o entregaram ao governo Gaddafi, como parte de um programa dos serviços secretos daqueles países, que entregavam prisioneiros para serem interrogados em “ditaduras amigas” dos EUA e Grã-Bretanha. O partido de Belhaj, que está sendo formado com quadros da Fraternidade Muçulmana, tem boas chances de vencer as eleições previstas para o próximo mês de junho. A milícia comandada por Belhaj é a terceira, em tamanho, em Trípoli. A maior das milícias que operam na cidade é comandada por Salh Gait, de Trípoli, e, segundo seu vice-comandante, reúne 5.000 homens e continua recrutando.
Nesses dias, em Trípoli, é boa medida de segurança decorar os nomes da maior milícia local e o nome do respectivo comandante. Assim, quando abordado por milicianos na rua, sempre se pode tentar esfregar os dedos indicadores, pronunciar o nome do comandante e acrescentar “mieh, mieh” i.e. “bom, bom.” O maior risco é não coincidirem o nome que você disser e o nome do comandante daquele específico miliciano. As coisas andam difíceis entre as várias milícias que circulam na cidade, depois de semanas de escaramuças sobre as quais nada se noticia.
As escaramuças entre as várias milícias não são noticiadas, embora o governo de transição não faça outra coisa senão repetir que, afinal, há no país total liberdade de imprensa, para os, dizem eles, 43 jornais e revistas editados livremente na cidade. Dito, parece ótimo, embora o número de jornais e revistas varie semanalmente: há muitas promessas de empréstimos estrangeiros para financiar publicações, mas muitas delas jamais se cumprem, ou os empréstimos são suficientes apenas para publicar as primeiras edições de jornais ou revistas, que surgem e logo desaparecem.
O que mais chama atenção nessa “nova Líbia livre, nova imprensa livre” é que 100% de tudo que se publica são matérias favoráveis ao “novo governo”. Sei que, em parte, é temor das consequências, caso alguém destoe do aparente apoio universal ao Governo Nacional de Transição. Outra razão, segundo um embaixador ocidental que voltou ao posto, é que a nova imprensa está nascendo da imensa variedade de milícias, e todos estão presos na armadilha psicológica de, para não verem os problemas muito visíveis, acabarem por não ver, de fato, coisa alguma que acontece ao redor. Ahmad concorda. “Envolveram-se tanto com a OTAN e os rebeldes da OTAN, que não conseguem admitir que erraram muito. Agora, já nem veem o que acontece à frente deles, todos os dias”.
Um caso exemplar aconteceu ontem, à minha frente, na “Praça Verde”. “Todos ainda chamam de “Praça Verde”, não de “Praça dos Mártires”, como o Conselho Nacional de Tradição decidiu batizar a praça” – explicara o proprietário do hotel –, “porque foi “Praça Verde” durante décadas. E, afinal, qual é o problema de a praça ser “Praça Verde”? Se alguém diz que vai se encontrar com você na “Praça dos Mártires”, a coisa soa esquisita para todos, nessa cidade. E se os militares no Egito resolverem mudar o nome da Praça Tahrir? Os egípcios aceitariam?”
O que me surpreendeu ontem é que havia duas manifestações, razoavelmente cheias de gente, ambas contra o Conselho Nacional de Transição, em dois cantos opostos da praça, que é enorme. Uma delas era liderada por duas mulheres que conheci no verão, que eram e dizem abertamente que continuam, apoiadoras do regime de Gaddafi. Uma delas, no verão, animava um grupo de advogadas; a outra, um grupo de feministas. A manifestação liderada pelas duas exigia que se garantisse a cidadania líbia para maridos e filhos de esposas e mães líbias – a mesma luta que continua, década após década, também no Líbano.
A outra manifestação, liderada pela advogada que falou numa conferência no Corinthia Hotel, a que assisti, poucos dias antes da queda de Trípoli, era organizada por um grupo que exigia notícias dos muitos desaparecidos, mantidos presos aos milhares em prisões secretas das várias milícias, por todo o país.
Segundo a equipe de pesquisas do próprio grupo, além dos mais de 7.000 apoiadores de Gaddafi que o Conselho Nacional de Transição já anunciou que mantém presos, 80% dos quais identificados pelo nome, o Comitê de Justiça para os Desaparecidos diz que há mais de 35 mil líbios presos em prisões secretas das milícias que não obedecem ao CNT e sequer lhe reconhecem qualquer autoridade. Ahmad concorda com esse número, a partir do que soube na prisão. Disse que pode mostrar uma escola, próxima do meu hotel, fechada para as férias escolares até o dia 7 de janeiro, e onde, se se passa pela rua à noite, quando não há ruídos de trânsito, ouvem-se gritos dos policiais e dos prisioneiros.
Parece que, pelo menos por ora, as manifestações populares estão sendo permitidas, embora sempre se vejam observadores que tudo olham. O que não se sabe é quem é observador a serviço do Conselho Nacional de Transição, quem é das milícias e de que milícia é cada observador.
Ahmad chegou com a notícia de que nenhuma das manifestações do dia anterior foi noticiada nos jornais da manhã seguinte, porque nada se publica que não sejam elogios ao governo da nova Líbia.
A líder do grupo de feministas tem planos para convocar outras manifestações: há muitas mulheres desaparecidas, mas, estranhamente, são mulheres que, de um dia para o outro simplesmente desaparecem das ruas e dos locais onde normalmente moravam e circulavam diariamente.
Uma das suspeitas do grupo de feministas é que muitas delas estejam vivendo em casas que pertenceram a parentes e apoiadores do regime de Gaddafi. Ela estima que haja mais de 90 dessas casas em Trípoli, todas em regiões ricas da cidade, muitas à beira mar, e que foram invadidas por gangues rebeldes, saqueadas, várias delas já vendidas e compradas nos mercados de rua.
Depois de invadidas e saqueadas as casas, muitos membros das milícias parecem ter tido outra ideia. Por que voltarem, por exemplo, para Benghazi ou Misrata, se podiam ficar vivendo em Trípoli, com relativo luxo? Centenas de milicianos estão fazendo isso, diz “Mara”, a líder do grupo de feministas. “São sempre pesadamente armados, vivem do pequeno soldo que as milícias pagam, e moram naquelas casas; alguns até alugam quartos e cobram aluguel. Mara conta:
“Se encontram uma casa vazia, sobretudo se é casa grande, bem construída, logo assumem, quase sempre corretamente, que pertenceu a parente de Gadaffi, alto funcionário ou apoiador do governo Gaddafi. E invadem a casa, como se lhes pertencesse, como parte do butim de guerra. E desafiam qualquer outra milícia ou a inexistente polícia do inexistente novo governo, a tentar desalojá-los. Não têm qualquer intenção de voltar para suas cidades, nem de depor armas. Atualmente, já armazenam armas e explosivos, tanto para se protegerem, como para aumentar o próprio poder de barganha. Pelo que se vê, é como se a Líbia estivesse aberta a qualquer tipo de saque: seja o saqueador, ou líbio, ou de alguma operação estrangeira”.
A mesma senhora diz que a população de Trípoli aumentou em cerca de um milhão de novos moradores, e os locais querem que os “de fora” voltem às suas cidades originais e devolvam Trípoli aos seus moradores, para que possam recomeçar a reconstruir a cidade. Com os recém chegados, aumentaram os problemas de tráfego e aumentou a insegurança, sobretudo noturna, na cidade.
Em muitas das casas invadidas, já moram famílias inteiras vindas de outras partes da Líbia. Em vários casos, há suspeita de que mulheres não líbias, das muitas que viviam no país, vindas de outros países africanos, estejam sejam mantidas em condições de cárcere privado, como empregadas domésticas. Os grupos feministas também suspeitam que as milícias estejam seqüestrando mulheres nas ruas, para mantê-las como serviçais nas casas convertidas em fortalezas das milícias armadas.
O que mais enfurece muitos, hoje, em Trípoli, é que o novo governo não dê qualquer sinal, sequer, de suspeitar da existência desses problemas. É como se o novo governo não tivesse qualquer interesse em qualquer tipo de investigação pela Corte Criminal Internacional, porque não querem investigadores internacionais na cidade, fazendo perguntas.
Líbios que viviam no interior do país, e os que se refugiaram em países vizinhos, estão começando a voltar às suas grandes tribos originais, e começam a organizar-se para pôr fim a esses e a muitos outros problemas.
Um dos locais onde se ouve dizer que a situação está prestes a explodir em violência, áreas como Bani Wallid e Sirte, onde a OTAN e seus aliados locais mataram muitos civis – mortes que nem os grupos de direitos humanos sabem estimar com alguma precisão. Um comandante de uma milícia local disse a mim e a dois outros jornalistas alguma coisa do que ouviu, numa operação de prisão clandestina: “Se, há um ano, havia divisões intratribais ou disputas por território entre as tribos, hoje os problemas estão multiplicados por 500. As tribos estão-se armando e já deram ao novo governo vários prazos para que comece a reconstruir as casas e os estabelecimentos comerciais que foram destruídos, para ajudar as famílias que perderam tudo, para desarmar os milicianos que andam pelas ruas, e para desmobilizar as gangues armadas, fazendo os milicianos voltarem para as cidades de origem. Até agora, o novo governo nada fez nessa direção, e as pessoas estão cada dia mais furiosas.”
Outro problema que provoca profundo descontentamento são os preços, que não param de aumentar – exceto eletricidade, que ninguém no país paga, segundo minhas fontes, desde fevereiro. Mas os cortes de eletricidade são hoje similares aos que aconteciam durante o bombardeio pela OTAN. A falta de dinheiro também é problema, porque ninguém pode retirar dos bancos mais que 750 dinars por mês. O dinheiro é relativamente escasso. Sabe-se que foram sacados dos bancos líbios cerca de 7 bilhões, por ex funcionários e empresários líbios no início da primavera; e que mais de 8 bilhões haviam sido sacados pelos cidadãos, no verão anterior, no pânico que se criou, pouco antes de o governo Gaddafi limitar o saque, nos bancos, a 500 dinars mensais.
Ouvi, pessoalmente, em países vizinhos e dentro da Líbia, dito por funcionários da administração das áreas tribais, que a guerra recomeçará, provavelmente, dia 1º de março. “Nossa história, nossa cultura, nossa dignidade estão ameaçadas. É responsabilidade das tribos limpar o país, expulsar daqui esses fora-da-lei, exatamente como já fizemos com os colonizadores italianos”.
Numa reunião em país vizinho da Líbia, ouvi de um apoiador de Gaddafi: “Sabemos quais as tribos que trabalharam aliadas à OTAN e traíram seus deveres tradicionais. Também aconteceu no tempo dos italianos e ao longo do tempo, quando tribos aliaram-se às empresas estrangeiras de petróleo. Vamos à guerra, para restaurar a trilha dos povos líbios, sem ignorar os erros que foram cometidos pelo governo Gaddafi, mas sem esquecer que temos apoio de 90% da população nas áreas da tribo Wafala, como Ban Walid; e de cerca de 60%, em Trípoli. Gaddafi está morto. Mas muitas de suas boas políticas prosseguirão.Ihshallah.”
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