01/05/2013

A lição de Nicósia

Serge Halimi. Artigo tirado de Le Monde Diplomatique en español (abril 2013) e traduzido por À revolta entre a mocidade.

Stukas nazis durante a invasão de Creta na II Grande Guerra (1939-1945).
Volvera-se tudo impossível. Aumentar os impostos desalentava os "empresários". Proteger-se contra o dumping comercial dos estados com baixos ordenados contravinha os tratados de livre-câmbio. Impor um imposto (minúsculo) às transacções financeiras exigia que a maioria dos estados se alinharam previamente. Baixar o Imposto ao Valor Acrescentado (IVA) requeria a aprovação de Bruxelas...

O sábado 16 de março de 2013 todo mudou. Algumas instituições imaculadas, como o Banco Central Europeu (BCE), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Eurogrupo e o Governo alemão de Angela Merkel, torceram-lhe o braço (já vacilante) às autoridades chipriotas e lograram que estas levaram avante uma medida. Uma medida que, se a tiver implementado Hugo Chávez, teria sido considerada draconiana, ditatorial, tirânica, e ganharia-se quilómetros e quilómetros de colunas editoriais indignadas: a sangria imediata dos depósitos bancários. A taxa de embargo, que num começo viu-se escalonada entre 6'75% e 9'90%, equivalia a quase mil vezes a soma da famosa taxa Tobin da qual vem-se falando desde há quinze anos. Algo ficava em evidencia todavia: na Europa, quando se quer, pode-se!

Sempre e quando, claro é, um saiba eleger os seus alvos: nem os acionistas nem os acredores dos bancos endividados, mas os seus poupadores. De fato, é mais liberal espoliar a um aposentado chipriota com a escusa de que, na verdade, aponta-se a um mafioso russo refugiado num paraíso fiscal que pedir-lhe explicações a um banqueiro alemão  um armador grego ou uma transnacional que guarda os seus dividendos em Irlanda, Suíça ou Luxemburgo.

Merkel, o FMI e o BCE seguem insistindo em que o necessário restabelecimento da "confiança" dos acredores impede, por sua vez, o aumento do gasto público e a renegociação da dívida soberana dos Estados. Os mercados financeiros, advirtem, castigariam qualquer desviação neste sentido. Porém, que "confiança" pode merecer ainda a moeda única e a sua sacrossanta garantia de depósitos bancários, se qualquer cliente dum banco europeu pode acordar pela manhã e encontrar que os seus aforros foram amputados durante a noite?

Assim, os dezassete estados membros do Eurogrupo atreveram-se ao impensável. Volvem a cero. Doravante, nenhum cidadão da União poderá ignorar que está na mira duma política financeira decidida a roubar-lhe os frutos do seu trabalho com o pretexto de sanear as contas. Em Roma, Atenas e Nicósia, alguns títeres nativos já parecem ter-se resignado à ideia de bailar ao som das instruções de Bruxelas, Francoforte ou Berlim, ainda ao preço de ver-se repudiados pelos seus próprios povos (1).

Estes povos devem extrair do episódio chipriota algo mais que um ressentimento inútil: a convicção libertadora de que para eles também tudo é possível. Depois da sua tentativa de golpe, a vergonha dalguns ministros europeus também atraiçoou o seu temor de apagar dum estacaço trinta anos de "pedagogia" liberal que converteu a impotência pública em teoria de governo. Assim, legitimaram-se por adiantado outras medidas um bocado mais ásperas que algum dia poderiam desagradar a Alemanha... e apontar a alvos mais prósperos que os pequenos poupadores de Nicósia.


(1) "Fate os Island depositors was sealed in Germany", The Financial Times, Londres, 18 de março de 2013. Nenhum deputado chipriota aprovou o plano do Eurogrupo.



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