29/04/2013

Reino de Espanha: o Governo Rajoy admite o seu fracasso, e agora que?

Antoni Domènech, G. Búster e Daniel Raventós. Artigo tirado de SinPermiso (aqui) e traduzido por À revolta entre a mocidade.


Na passada sexta-feira 26 de abril, na habitual roda de imprensa posterior ao Conselho de Ministros, o Governo Rajoy reconheceu o completo falhanço das políticas de austeridade do seu Primeiro Plano de Reformas. A seguir, anunciou um Segundo Plano de Reformas.

Os dados do fiasco não podem ser mais eloquentes  No tocante ao seu objetivo principal, a redução do deficit público, o governo Zapatero tinha-o deixado em 2011 no 9,6% do PIB, mas no final de 2013 situar-se-á no 10,6%. Desse montante, 4,3 pontos correspondem ao resgate europeu do sistema bancário espanhol, que a UE não contabiliza a efeitos dos objetivos de ajuste orçamental, mas que têm que se financiar igualmente no mercado da dívida. Após os recortes orçamentas sangrantes da despesa pública -que afetaram especialmente à previdência, a educação e o financiamento das comunidades autónomas e supuseram 259.000 despedimentos-,  a sua incidência no deficit da Administração central e a Segurança Social é de um mero 0,1% (de 5,2% em 2011 ao 5,1% em 2012). Em 2011 a dívida pública, após três anos de crises, representava o 68,5% do PIB; em 2012 situou-se no 86,9%, em 2013 atingirá o 90,5% e o FMI estima agora que em 2015 situar-se-á no 99,8%. O pagamento de interesses em 2013 (40.000 milhões de euros) é equivalente ao resgate europeu da banca. A maduración da dívida pública a curto em 2013 é de 85.000 milhões de euros. Ao final da legislatura não ter-se-á cumprido o objetivo comunitário de 3% do PIB de déficit, porque a previsão para 2014 é de 4,1%.

Quanto ao segundo objetivo do governo Rajoy -relançar o crescimento da economia espanhola-, os dados revisados agora oferecidos são igualmente alarmantes: decrescimiento de 1,6% do PIB em 2013, ligeiro crescimento de 0,5% em 2014 e de 0,9% em 2015. A economia sofre uma dupla recessão desde 2008. Para uma economia como a espanhola, que precisa crescimentos de ao redor de 2% do PIB para criar emprego neto, estas cifras supõem que desde 2011 se destruíram 1,6 milhões de empregos e que quando a legislatura acabe em 2015 a taxa de desemprego se situasse no 28,8%, três pontos mais que a recebida do governo Zapatero. Os efeitos sociais da recessão, com uma queda importante do nível de vida, prolongar-se-ão, como pouco, para além de 2018.

Anúncio e alcance do II Plano de contrarreformas

O grosso dos dados deste terrível quadro macroeconómico conheceu-se na reunião de primavera do FMI, entre o escândalo Reinhart-Rogoff e a desolada constatação da recaída na recessão do núcleo central da UE. Vinham a confirmar-se, e pelo magnífico, as predições mais críticas com as políticas de austeridade. Em uma entrevista publicada na segunda-feira 22 no diário ultraliberal de Nova York The Wall Street Journal, o ministro de economia Guindos adiantava oficiosamente as cifras e assegurava que o Reino de Espanha preocupava menos ao FMI e deixava de ser o principal foco de alarme, em especial desaparecidas as dúvidas sobre a estabilidade do euro graças à política do BCE. Christine Lagarde, diretora do FMI, alentava a "dar mais tempo a Espanha". Durante quatro dias, uma campanha de imprensa cimentada em ambíguos rumores tentou preparar a uma opinião pública já convenientemente amedrentada desde o ministério do interior com a previsão de uma violenta batalha campal nos arredores do Congresso dos Deputados no dia 25 (o que se traduziu em um dos maiores despregues policiais conhecidos em Madrid).

Quando finalmente aconteceu a roda de imprensa na sexta-feira 26, a neolíngua habitual destacou pela sua originalidade eufemística: "reordenação de cifras", "novidades tributárias"? Não faltaram jornalistas tentados a publicar o seu próprio dicionário, e algum outro não pôde evitar cair no costumbrismo a costa da cena. Apesar da gravidade da situação, Rajoy, que leva escondido por trás de um ecrã de plasma desde o início do caso Bárcenas, segue sem anunciar data de comparecência no Congresso. O seu único contacto com a imprensa terá local por motivo da visita a Granada do seu homólogo irlandês, no domingo 28.

O anuncio do Segundo Plano de Reformas, em parte adiantado por Rajoy no debate sobre o chamado estado da nação no passado mês de fevereiro, é em realidade uma repetição dos objetivos da legislatura e do seu Plano de 72 medidas, das que se foram adiando mais de 30, como a reforma da administração local e autonómica ou a lei de colégios profissionais. Mas há três, previstas no memorándum de resgate  bancário -cuja tradução oficial ao espanhol apareceu no BOE com quatro meses de atraso-, que serão decisivas: a "avaliação" da reforma laboral por um "organismo independente" (FMI, OCDE, UE, mas não a OIT), que inevitavelmente gerará uma nova onda de flexibilização e recorte de direitos no mercado laboral; a reforma das pensões, com uma segunda extensão da idade de aposentação para além dos 67 anos; e a Lei de desindexación de la economia, que abrirá a porta a recortes via inflação em pensões, subvenções e contratos públicos.

A subida "extraordinária e circunstancial" do IRPF de 2012 prorroga-se durante toda a legislatura, e se anunciam "novidades fiscais" com aumento dos impostos especiais, a exceção dos que gravam aos hidrocarburos, o dano medioambiental e os depósitos bancários. O marasmo da gestão do mecanismo de financiamento das Comunidades autónomas atribui-se a uma "autoridade fiscal independente", como se não fosse um problema político central.

Quando a culpa a tem a realidade

Estamos ante o "hundimiento da legislatura", como adverte angustiado um dos analistas mais reconhecidos da direita, José Antonio Zarzalejos? As cifras e previsões sobre o desemprego parecem, efetivamente, inasumibles socialmente. A intervenção do estado na economia via rendimentos fiscais é uma das mais baixas da UE (36,4% do PIB) -e caiu desde 2008 mais de 6 pontos, ultrapassando folgadamente no seu retrocesso o objetivo de 40%  defendido pelo anterior presidente do BdE-, e a economia submergida supera o 25% do PIB. Em frente à desculpa de Rajoy -"quem me impediu cumprir o meu programa foi a realidade"-, o diagnóstico de Zarzalejos resulta demoledor:

"o naufrágio do paquebote popular produziu-se pela combinação de três fatores: a quebra da fiabilidade política do Governo e do PP -todo o que se prometeu se incumpriu-, a comprovação da sua escassa concorrência técnica em matéria económico-social e na gestão dos interesses de Espanha na União Europeia e a ausência de um discurso político que, além de cobrir as frentes mencionadas, oferecesse resposta à crise institucional, ao fenómeno da corrupção e à precarização do modelo territorial a raiz da aposta independentista em Cataluña".

Para além do ranço "regeneracionismo" de sesgo conservador sobre a incapacidade das "elites políticas (extractivas)" (sic), importa o diagnóstico das causas, materiais e ideais, da manifesta crise da Segunda Restauração bourbónica no contexto da crise do processo deconstituínte da institucionalização ultraliberal da UE. (O leitor interessado poderá, sem dúvida, encontrar alguns elementos consultando os arquivos de SinPermiso, e, antes de mais, a nossa análise do último debate  sobre o estado da nação).

Importa, antes de mais nada, destacar o clima social em que se produz o reconhecimento do falhanço do Governo Rajoy. O conhecido barómetro eleitoral de Metroscopia de abril recolhe a queda, desde as eleições de novembro do 2011, na intenção de voto do PP: um tremendo precipício de 20% (de 44,6% a 24,5%). Por sua vez, o PSOE segue em queda livre, com um descenso de 4,3% (de 28,7% -após a perdida de 14 pontos desde 2008- a 23%). Menos difusão teve o obSERvatório do 15 de abril da Cadena Ser, que mostra não apenas a esmagadora desconfiança popular perante o bipartidismo dinástico (87%), mas também a enorme radicalização e a crescente disposição à mobilização social da opinião pública, incluída a convocação de uma nova greve geral (47%), apesar do descrédito dos sindicatos maioritários (que só recolhem um apoio de 18%, frente, por exemplo, a um espetacular 75% colheitado pela Plataforma de Afetados pelas Hipotecas encabeçada por Ada Colau).

Que margem lhe fica ao governo Rajoy? Na crise da primavera de 2012 -talvez a experiência política mais importante do que levamos de legislatura, porque determinou o repertorio de respostas das classes socialmente reitoras, dos partidos e dos sindicatos-, a resposta de Rajoy foi: "Espanha fez todo o que podia, agora toca-lhe a Europa". O Conselho europeu de junho do 2012 não só aprovou o resgate bancário, mas também permitiu a política de intervenção do BCE nos mercados secundários, evitando um segundo resgate, desta vez geral, da economia espanhola. De novo, é a constatação na UE de que é impossível que se possam atingir as suas ilusos objetivos de redução do deficit o que, somado aos efeitos da recessão na Alemanha, determinou o adiamento de dois anos; não a pressão nem a capacidade de negociação na Europa do governo Rajoy ou do resto dos governos conservadores da periferia. Patético, por dizer o menos, é a tentativa de Rajoy de apresentar as coisas como se o lucro dessa nova margem fosse mérito próprio, da sua tenacidade na aplicação das políticas de ajuste e na pontual observação das condições do memorándum. O verdadeiro é que na UE Rajoy passou de ser um suposto aliado estratégico de Angela Merkel a se converter no esforçado aluno despeitado, para terminar pretendendo-se um conspirador de capa e espada a favor de uma iniciativa comunitária para o crescimento. Nada disso é verdade, por suposto. A modesta -e ridícula- verdade consiste nisto: faz o que se lhe diz, como e quando se lhe diz desde Berlim ou Bruxelas. Mais que o guardião, é o pícaro do memorándum.

Uma hipótese de cenário político

Rajoy não gere, sobreleva a crise da Segunda Restauração bourbónica. E nesse trance, os seus principais ativos são a folgada maioria parlamentar e a falta de uma alternativa política crível programática e organizativamente, isto é, que meta o medo no corpo. Graças a esses dois ativos conseguiu esquivar o segundo resgate, pôr surdina aos cantos de sirene dos pactos de estado ou do governo de "unidade nacional" e manter a raia e dispersa a crescida resistência social. O que não conseguiu evitar é a incessante erosão da sua legitimidade eleitoral, da sua base eleitoral e da do conjunto do regime bipartidista. Também não escapou às devastadoras dentelhadas da crise financeira do estado das autonomias, nem ao destape generalizado da corrupção, que é, sobretudo, manifestação da rutura do consenso hegemónico das classes reitoras do capitalismo oligopólico de amiguetes politicamente promiscuos da Transição. Nem, menos, ao inopinado estalido do secessionismo catalão, manifestação inequívoca da crise da monarquia e da sua inveterada incapacidade para encontrar soluções hacederas -fundadas na autodeterminação- para a livre vertebraçao democrática dos povos de Espanha. Lidar com qualquer destes peremptórios assuntos precisa de iniciativa vigorosa e ágil; não digamos enfrentar-se a todos eles de consuno. Ínsito, em troca, na natureza do governo Rajoy parece estar o mais inane dos inmovilismos. Talvez o exemplo mais fatal dessa passividade seja a sua total despreocupação respeito do processo de normalização social e política em curso no País Basco, e a tal ponto, que começa a peligrar o processo unilateral de pacificação. Procura-se, nem que dizer tem, compensar essa parálise política prática com verborreia atrabiliária e guerras culturais ao estilo zapateril: como se o único que lhe ficasse ao governo Rajoy fosse atizar o fogo da polarização ideológica dos seus votantes mais extremistas. Não outro é o triste e evidente papel da contrarreforma da Lei do Aborto impulsionada pelo ministro de justiça Gallardón.

No ano que temos por diante, até as eleições europeias, será decisivo. No terreno social, a "avaliação" e ampliação da reforma laboral, bem como o novo atraso na idade de aposentação, obrigarão, queiras que não, a CC OO e UGT a convocar uma nova greve geral. Pelo que se refere à crise financeira das autonomias, que em boa medida é a do "estado do meio-estar" espanhol, a tensão da negociação em torno do translado assimétrico às autonomias da nova margem de deficit (de 0,7% ao 1,2%) concedido ao Reino de Espanha pela UE não só criará graves tensões entre as comunidades governadas pelo PP, senão que obrigará ao governo PSOE-IU andaluz a uma maior e mais pugnaz confrontação  e muito provavelmente terminará bloqueando o jogo de alianças assimétricas de sobrevivência ensaiado pela Generalitat de Mas com ERC e PSC, obrigando à convocação de eleições antecipadas em Catalunya. No tocante à cúspide institucional coroada, a provável condenação de Urdangarín e o seu sócio, depois da imputação da Infanta Cristina, fará inevitável a abdicação do monarca, as bases legais da qual já se negociam mais ou menos discretamente entre os dois principais partidos dinásticos. As eleições europeias, proporcionais em uma só circunscrição, suporão um duríssimo voto de castigo tanto para o PP como para o PSOE, o que verisemelhantemente contribuirá a acelerar a crise da Segunda Restauração.

Neste cenário de crise a cada vez mais evidente de todo o regime político monárquico de 1978, a estratégia sindical de CCOO e UGT -resumida nos seus manifestos para o 1 de Maio- passa essencialmente pela defesa de um programa mínimo que alargue a margem concedida pela UE, para dar cabida à fórmula de um Pacto pelo Emprego e relançar a negociação dos convénios coletivos, muitos dos quais caducam no próximo mês de junho. Ao próprio tempo, faz-se questão da necessidade de manter o processo de agregado de forças cidadãs da Cimeira Social, verisemelhantemente para carregar-se de razões face a uma greve geral que prevêem tão inevitável como crescentemente difíceis as condições sociais em que terá de se realizar (com uma população trabalhadora desmoralizada por uma desocupação sustentada sem exemplo histórico e com umas organizações sindicais maioritárias que não conseguem romper o descrédito ante a opinião pública que recolhem os inquéritos). Neste sentido, a maioria sindical basca e outros sindicatos convocaram na Comunidade Autónoma Vascã e em Navarra uma greve geral para o próximo 30 de maio. Os sindicatos maioritários deixaram cair no esquecimento, no pior momento, o que não faz tanto pareceram ter começado a compreender, e é a saber: que sem uma alternativa política realista e unitária, que passaria hoje mesmo por uma campanha de mobilizações cidadãs para forçar o despedimento do governo Rajoy e a convocação de eleições antecipadas, o ciclo de resistência social choca com os limites objetivos da deslegitimada maioria absoluta do PP e do tenebroso rueiro sem saída a que conduz a estéril estratégia de "unidade nacional" ou mera alternância bipartidista do PSOE de Rubalcaba.

A esquerda política federal, IU e ICV, e a esquerda soberanista (EH Bildu, Anova, CUP, bem como setores de ERC e Compromís) começou a situar na perspetiva, mais realista, de um incerto processo destituyente de fim de regime. Compreender isso é, ao menos, o primeiro passo para se propor uma contraofensiva constituinte: só essa contra-ofensiva -ou sendo realistas, o horizonte, a promessa, dela- poderia dar sentido, esperança, unidade e vertebração política à miríade de mobilizações sociais (incluídas as sindicais) mais ou menos dispersas e mais ou menos espontâneas que vão se acumulando de modo crescente, com radicalidade crescente, com raiva crescente e, ai!, com desespero crescente. Longe do narcisismo onanista das cabeças de rato, longe das ilusas e fatigantes intrigas manipulatórias da sectícula política de turno, essa perspetiva precisa de algo mais que alentar a resistência; precisa peremptoriamente a articulação unitária de um amplo bloco político, social e intelectual alternativo que, hoje por hoje -reconheçamo-lo-, não termina de arrancar.  

É iluso pensar que a distância entre o timorato programa mínimo avançado agora pelos sindicatos maioritários e a incipiente aspiração a um programa de tipo constituinte das esquerdas alternativas e soberanistas é só ideológica, ou só de entendimento política do momento. Essa distância responde em boa parte também às diferentes condições objetivas em que desenvolvem a sua atividade. Compreender isso tem que ajudar a sair da mera denúncia moral (ou hipermoral) estéril, para começar a tender pontes através da mobilização e da coordenação unitária territorial, que adota já diversas formas.

À medida que cresça a polarização social e política induzida pela crise, fá-se-á mais evidente o dilema entre o projeto da pseudorreforma constitucional limitada que hoje propugnam o PSOE de Rubalcaba e setores da direita --um projeto incapaz de frear o perigrosísimo processo deconstituíente em curso--, e o das forças sociais e políticas que trabalham em uma contra-ofensiva republicana constituinte. Seja isso como for, as possibilidades dessa pseudorreforma constitucional que fantaseia com conter o descalabro da Segunda Restauração dependem crucialmente de que os partidos dinásticos, sinaladamente o PP e o PSOE, seguam tendo a maioria institucional de 2/3 necessária. É o mais provável que a sua legitimidade entre em processo de erosão irreversível com as eleições europeias de 2014 e as autárquicas e autonómicas posteriores. O que a estas alturas cota como seguro é que as eleições gerais de 2015 porão fim à maioria política do regime bipartidista. Para então, o desemprego pode rondar já o 30%. E não valerão as médias tintas.

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