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04/06/2014

Uma abdicação humilhante para um golpe de perspetivas nada encantadoras

Antoni Domènech, G. Buster e Daniel Raventós.
 
 
 
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Juan Carlos de Borbón tomou-nos a todos por surpresa a primeira hora da manhã da segunda-feira anunciando a abdicação da Coroa. Muito provavelmente é verdadeira a versão oficial, segundo a qual se trata de uma decisão tomada faz meses, e em cujo segredo estavam só os muito achegados à Casa Real, Rajoy e Rubalcaba. A abdicação estaria, por conseguinte, concebida por esse pequeno cenáculo, pelo menos, como um primeiro movimento de peça destinado a recompor parcialmente, e até onde se possa, os fenecidos acordos básicos que configuraram o arco político dinástico da Transição (UCD, PSOE, PCE-PSUC -depois IU/ICV-, AP -logo PP-, CiU e PNV e outras formações regionais menores). E mais perentoriamente ainda, a encarar algumas reformas constitucionais que lhes permitam enfrentar com alguma perspetiva minimamente razoável de negociação ao massivo desafio independentista catalão, que tem citas decisivas com a rua e com as urnas o 11 de setembro e o 9 de novembro próximos.  E a partir daí, talvez começar uma "segunda Transição" -também protagonizada e controlada pelas elites- capaz de reverter manifesta-a crise da Segunda Restauração e insuflarle um novo sopro de vida.

Mas só os néscios -e o lumpen académico conspiracionista ou estruturalista- podem achar que as elites, além de ser malíssimas, não cometem nunca erros políticos de bulto. É-o a jogada da abdicação? Seguramente não, no sentido em que no xadrez não considerar-se-ia necessariamente uma má jogada um "movimento forçado". Mas em política os tempos e os ritmos têm um papel bem mais importante que nos jogos de mesa de informação perfeita. E o movimento forçado da abdicação não se produziu no momento idóneo fantasiado (justo após as eleições europeias, para que não passasse fatura política eleitoral às suas valedores e ideadores, e com tempo por diante para encarar de outra maneira a vertigem catalão). Senão depois do resultado eleitoral inesperadamente catastrófico colheitado pelo bipartidismo dinástico, cuja primeira consequência foi a defenestração política de Rubalcaba, arteramente adiada em umas semanas. Todos os indícios apontam a que a decisão de que o anúncio se produzisse precisamente a segunda-feira foi tomada com certos nervos e vacilações de última hora, que explicariam a impressão de improvisación comunicada à opinião pública, bem como a inexplicable "cantada" protocolar de que fosse o Rajoy, e não o próprio rei, quem comparecesse primeiro ante os meios de comunicação.

O momento não resulta precisamente oportuno para os desacreditados interesses de quem precisam perpetuar com barbeies amanhados em segredo o lamentável statu quo presente.

Não é um bom momento, pelo cedo, para o próprio Príncipe das Astúrias, quem, de ter sucesso a delicada manobra sucessória, começará o seu reinado tendo que fechar com os numerosos cabos ainda soltos dos inúmeros escândalos protagonizados nestes últimos anos pela Família Real, singularmente o do caso Noos de Urdangarín e a sua esposa, a Infanta Cristina (irmã do herdeiro ao Trono). Por se fosse pouco, o inexperimentado herdeiro, que mal tinha uso de razão quando se forjaram as velhas cumplicidades tecidas pelo famoso tranquil, Jordi, tranquil do 23F de 1981, terá que começar o seu reinado lidando nada menos que com o bravíssimo processo democrático independentista catalão em curso, esse inadvertido icebergue político em que terminou dando o fastioso Titanic da Segunda Restauração bourbônica.  Bem é verdade que nenhum momento seria aqui suficientemente bom do tudo, e que alguns esperarão jogar a carta de que o novo capitão do Titanic é também Príncipe de Girona?

Não é bom momento, desde logo, para os passageiros de primeira classe desse Titanic. Precisamente quando as eleições europeias acabam de fazer patente o colapso do bipartidismo dinástico, muro principal de carga do criminoso cártel formado pelas grandes empresas do Ibex, os grandes grupos mediáticos de comunicação e boa parte de dirigentes e exdirigentes de PP, PSOE, CiU e PNV, largas portas giratórias mediante: um cártel enseñoreado do capitalismo oligopólico de amiguetes politicamente promíscuos em que terminou fraguando a economia política da Transição e ao que a eclosão da crise capitalista mundial e a sua péssima gestão por parte da UE pôs de pernas para o ar provocando um inaudito sofrimento entre a população trabalhadora espanhola.

Mas não é bom momento, sobretudo, para um PSOE mais afundado eleitoralmente que nunca, totalmente desnortado ideológico-politicamente e assaz desenvencilhado organizativamente. O seu secretário geral, Rubalcaba, tinha-se visto precisamente forçado a anunciar a sua "abdicação" de maus modos em uns dias antes que o monarca, embora para a fazer efetiva após ele. As razões resultam agora evidentes: tinha que paralisar qualquer reação dos barões territoriais e do grupo parlamentar socialista no processo sucessório, que não por constitucional é menos antidemocrático. E é evidente que muitos socialistas começaram a compreender depois das eleições europeias -uns de boa fé, outros porque à força aforcan- que a única alternativa à "pasokização" irreversível do PSOE é um giro drástico e credível à esquerda. Que farão agora, no momento crítico desta inoportuna sucessão monárquica? Aparecer coram populo como parte essencial de uma "casta" empenhada em arrebatar a todos os povos da Espanha, e não só ao catalão, o "direito a decidir", votando nas Cortes com o PP e com a UPyD a Lei orgânica ad hoc que necessariamente terá que regular esta sucessão hereditaria? A única voz dissidente na direção socialista -para além das posturas das Juventudes Socialistas e Esquerda Socialista- foi a de Eduardo Madina, quem, depois de reafirmar a sua "republicanismo", assegurou com ingenuidade digna de melhor causa que o voto positivo do seu grupo parlamentar à Lei Orgânica não fecharia o debate sobre a forma de Estado em uma reforma constitucional posterior. Sendo realistas, o que verosimilhantemente fecharia para sempre é a credibilidade de qualquer eventual giro à esquerda do PSOE no seu Congresso de julho.

E daí fará a UGT? As primeiras declarações de Candido Méndez foram para exigir uma reforma constitucional no seu momento sobre a partilha territorial e as consultas diretas aos cidadãos. Perguntado sobre a república, Méndez afirmou que UGT não propô-la-ia, mas que em caso que surgisse a questão (?) o seu sindicato é uma força republicana. O tempo para reagir é muito, muito curto. Ao menos, CCOO já emitiu um rápido comunicado se somando laconicamente às vozes que exigem um referendo constitucional.

Lembre-se que uma Lei orgânica -desenvolvimento da Constituição- exige não só os 2/3 de maioria absoluta (que agora mesmo ainda os somam PP/PSOE nos Cortes), senão além disso, por razões de legitimidade política, que não tenha uma oposição muito evidente no terço restante. Como poderiam votar a favor ou inclusive se abster CiU e PNV, como anunciaram, após a proibição da consulta catalã?  Pelo demais, o pacto na sombra entre Rubalcaba, Rajoy e a Coroa, para ser efetivo e não uma simples manobra para sair do passo, tem que abrir perspetivas para uma reforma constitucional controlada que ofereça a negociação de uma formula territorial minimamente razoável a CiU, e embora vá já com muito atraso, que apareça imediatamente como uma alternativa plausível ao que a imprensa veio chamando o "choque de comboios" da Diada o 11S e da consulta de autodeterminação o 9N. Esta e não outra parece ser a explicação do voto afirmativo empenhado hoje por CiU. E assalta imediatamente a pergunta: a que custo manterá ERC o seu apoio ao governo da Generalitat com a só justificativa de não entorpecer os preparativos da Diada e a Consulta? E quanto tempo seguirá calada a ANC ante a cumplicidade de CiU com o processo sucessório espanhol?

Por motivos óbvios, o cenáculo que desenhou esta espécie inesperadamente constitucional para iniciar a farsa de uma segunda Transição demediada não pode ir a uma reforma constitucional que exija referendo. Isto é, as suas reformas não poderiam tocar, segundo o art. 168, nem o Titulo Preliminar, nem o I nem o II. À espera de descobrir o trapicheiro artilúgio jurídico que se prepara, parece quase impossível oferecer nada razoável a CiU -inclusive a Durán- que não passe por tocar esses Títulos da Constituição do 78. Por conseguinte, Rajoy e Rubalcaba enfrentam-se a um verdadeiro dilema: ou abandonar toda a ideia de reforma constitucional, ou submeter as acometidas a referendo. E Mas e Durán, à de aceitar como boa uma promessa insustanciada para salvar o regime que levou ao Tribunal Constitucional a reforma do Estatut aprovada pelo povo catalão ou seguir acompanhando o processo democrático independentista.

É verosímil a conjetura de que o Rei anuncie a toda a pressa a sua intenção de abdicar -em vez de esperar, por exemplo, ainda em umas semanas a que amainara a tormenta das europeias- pensando que se esgotava o tempo no que o PSOE de Rubalcaba poderia ainda perpetrar in extremis et in angustis, antes de se iniciar a desbandada, uma última desonra  a esta pátria da que tanto se enchem todos as boca-abertas e não deixar só e desairado ao PP na votação da Lei sucesoria redigida pelo governo.

Por isso se trata de uma abdicação humilhante: para o próprio rei, desde logo. Mas, sobretudo, para o PSOE, se é que os seus milhares de militantes de verdade socialistas e de verdade republicanos não conseguem ser capazes do impedir. Porque a paisagem "reformador" que veríamos após o trâmite parlamentar da Lei orgânica não poderia ser mais desolador: o outrora povoado arco político dinástico, reduzido agora mal a um PP em horas baixas e a um PSOE pasokizado desde acima, desventrado e desangrado pelo estúpido harakiri de um Rubalcaba que o que único que para valer aprendeu na escola de Felipe González é a sinistra arte "política" de levar às gentes para onde de jeito nenhum querem ir.

Enquanto, as praças se enchem de cidadãos indignados que se negam a jogar o papel de comparsas no triste carnaval da Coroação. IU, ICV-EUiA, ANOVA, Podemos, Equo-Compromís, o BNG e diferentes forças e organizações das esquerdas sociais chamaram imediatamente a lutar pela convocação de um referendo em exercício do "direito a decidir" de todos os cidadãos do Reino da Espanha. Não demorarão em secundá-las outras: a coisa não oferece dúvida. A erosão de legitimidade do regime constatada recentemente nas urnas fá-se-á ainda mais irreversível no meio da ruborizante campanha mediática arteira ad maiorem regis gloriam à que assistem estupefactos os diferentes povos da Espanha. Até as eleições autárquicas e autonómicas de maio de 2015, quando as gentes fartas de tanta e tão grosseira manipulação no seu nome possam por fim expressar nas urnas a favor das forças do grande bloco republicano político-social que se anuncia.

É mais, postos a jogar esta partida de xadrez a que se nos força, que sentido teria para IU continuar a ser a peana sobre a que se levanta o poder de Susana Díaz, novo factotum do PSOE no governo autonómico andaluz, uma vez se fez hoje pública a sua participação na conspiração dos poderosos para negar ao povo andaluz que possa fazer ouvir a sua voz nesta questão democrática essencial? IU deve propor-se muito seriamente provocar umas eleições antecipadas nas que o povo andaluz possa se expressar imediatamente nesta crucial disjuntiva entre a pseudoreforma teimada do regime ou a abertura de um processo democrático constituinte

Passe o que passe, os republicanos espanhóis sempre terão que agradecer ao povo catalão a inestimável ajuda democrática prestada neste final de tragicomédia chabacana da Segunda Restauração. Mas fica aos democratas catalães -também em proveito próprio- um último esforço por realizar, talvez o mais difícil e delicado: acompassar republicano-fraternalmente e sem tardança a sua justa luta pelo "direito a decidir" do povoo catalão com a luta pelo "direito a decidir" de todos os povos da Espanha. Oxalá saibamos todos estar à altura das circunstâncias. Porque, como diz o refrão chinês que tanto gostava a Hobsbawm, não poupar-se-nos-á viver em "tempos de interessantes".

24/03/2014

Reino de Espanha: Marchas da Dignidade em "terra de ninguém"?

Antoni Domènech, G. Buster e Daniel Raventós. Artigo tirado de Sin Permiso (aqui).

"O conceito de mal menor é um dos mais relativos. Enfrentados a um perigo maior que o que antes era maior, há sempre um mal que é ainda menor embora seja maior que o que antes era menor. Todo mau maior se faz menor em relacionamento com outro que é ainda maior, e assim até o infinito. Não se trata, pois, de outra coisa que da forma que assume o processo de adaptação a um movimento regressivo, cuja evolução está dirigida por uma força eficiente, enquanto a força antitética está resolvida a capitular progressivamente, a trechos curtos, e não inesperadamente, o que contribuiria, por efeito psicológico condensado, a dar a luz a uma força contracorrente ativa ou, se esta já existisse, à reforçar." [Antonio Gramsci, Quaderno, 16 (XXII)]





A entrada em Madrid das Marchas da Dignidade e o caloroso acolhimento popular convertida em uma "gigantesca manifestação" -como a qualificou Le Monde- que bloqueou todo o centro da cidade vieram em um momento que não podia ser mais oportuno. Em um momento de desgaste, de cansaço, de fartura e -sejamos claros- de desmoralização profunda e crescente de um povo trabalhador cruelmente castigado durante seis anos pela crise, um desemprego operário pior que o da Grande Depressão e umas pérfidas políticas procíclicas de ajuste fiscal, desvalorização salarial, contração sem precedentes da despesa social e contrarreforma reacionária do direito laboral democrático. O indubitável sucesso das marchas -às que não deixaram de fazer vazio e pôr vergonhosamente surdina os grandes meios de comunicação do Reino (todos em mãos da banca privada, todos financeiramente dependentes da publicidade institucional pública)- veio a recordar-nos a todos a enorme capacidade de mobilização solidária que ainda existe, o potencial de raiva, indignação e cólera popular que ainda é capaz de se expressar organizadamente na rua. O Manifesto das Marchas não podia o ter dito melhor: vivemos em "uma situação extremamente difícil, uma situação limite, de emergência social, que nos convoca a dar uma resposta coletiva e em massa da classe trabalhadora, a cidadania e os povos".

Essa convocação, como explicou em SP Carlos Martinez, um dos seus coordenadores andaluzes, nascia desde a confluência de experiências de combate muito variadas, como as marchas e ocupações de terras de jornaleiros da CUT, do Acampamento da Dignidade de Cáceres, das concentrações contra os desafiuzamentos da PAH, das marés cidadãs, das margens críticas e contestatários do movimento operário organizado mas em primeira linha da resistência social contra as políticas de ajuste. Superando as divergências inevitáveis que nascem de experiências tão diferentes e duras, de inveteradas confrontações setarias de pequenos aparelhos, minúsculas vaidades e ínfimas raposarias, os milhares de participantes das diferentes colunas das Marchas sobre Madrid vieram a converter em um catalisador euforizante para a mobilização de centos de milhares de pessoas que viraram nelas a sua solidariedade. Também -ou isso pode razoavelmente conjeturar-se- depositaram nelas renovadas esperanças em uma luta unida capaz de pôr travão e talvez começar a reverter as catastróficas políticas dimanantes do "Consenso de Bruxelas" às que -em aberta violação de todas as suas promessas eleitorais- terminaram subordinando-se o Governo de Rodríguez-Zapatero e Rubalcaba, primeiro, e o de Rajoy, depois.

Dessa capacidade de fermento e solidariedade, de posta em comum de lutas dispersas e ainda isoladas em um grande frente de resistência coordenada, depende em definitiva a existência de uma esquerda social e política organizada merecedora de tal nome. Uma esquerda social e política, por lembrar-nos de um clássico, "que realiza a sua agitação sem trégua nem descanso " (F. Lassalle). Convém recordá-lo especialmente agora que as esquerdas sociais se encontram no nosso país ante uma disjuntiva que ficou resumida nestes dias em duas imagens: a das Marchas da Dignidade, uma; e outra, a patética imagem -não há palavra mais certeira para a descrever- do encontro em Moncloa dos secretários confederais Cándido Méndez (UGT) e Ignacio Fernández Toxo (CC OO) com Rajoy e o representante da patronal para publicitar o "relançamento do diálogo social".

Uma disjuntiva não é necessariamente excluiente: é verdade que sem a solidariedade dos milhares de filiados de base de CCOO e UGT, e ainda dos próprios aparelhos sindicais, as Marchas da Dignidade não poderia chegar a Madrid nem ter sido acolhidas por centos de milhares de pessoas. Mas é uma disjuntiva que obriga a discutir que orientação política deve seguir o conjunto dos movimentos socialmente resistentes ao programa de contrarreformas "austeritárias" em curso. E que obriga a discutir em momentos de refluxo, fartura generalizada e desmoralização, já se disse; mas em portas, ademais, de um longo ciclo eleitoral que, após as europeias, autárquicas e autonómicas vindouras a partir de 25 de maio, e sem se esquecer do crucial referendo de autodeterminação convocado para o 9 de novembro próximo em Catalunya, fará coincidir no tempo as eleições gerais de 2015 com as eleições sindicais de 2015-16.

E como toda a discussão destas características, tem que partir de um balanço do ciclo das mobilizações contra as políticas de austeridade desde 2010, da estimativa da correlação de forças sociais e da ideação de perspetivas políticas. E não só no tocante ao Reino de Espanha, senão no enquadramento da União Europeia, que é onde se produz a confrontação politicamente determinante com os programas de contrarreforma autoritária dimanantes do "Consenso de Bruxelas".

Não parece que as diferenças se deem quanto à estimativa da capacidade de mobilização social. Constata-se, sim, a deslocação parcial do local da resistência social, desde os centros produtivos aos espaços da reprodução social, o que não é senão consequência natural de umas taxas de desemprego superiores a 26% -por volta de 60% entre os jovens-, da terciarização do mercado laboral, da enorme precarização e da crescente redução da negociação coletiva. A partir dos dados sobre conflitividade laboral do Ministério de Trabalho e da patronal CEOE, Daniel Lacalle e Miguel Sanz Alcántara, por reduzir-nos a dois autores, vieram a confirmar o que é uma experiência social coletiva, e é a saber: que os trabalhadores resistem ativamente; e que quando são convocados a isso de maneira coordenada, o fazem em massa. Os topos de atividade dessa resistência em 2010 e 2012 assim o constatam: quando, além de movimentos cidadãos como o 15-M, teve as greves gerais de setembro de 2010, e as de março e novembro de 2012, além das oito convocadas no País Basco desde 2009.

Ramón Górriz, secretário de ação sindical de CCOO, resumiu assim a atual posição do seu sindicato no "relançamento do diálogo social": "Uma estratégia com a que pretendemos atingir resultados e não nos ficar na mera contestação das políticas empresariais e governamentais". recordou que "os trabalhadores e trabalhadoras não podem esperar enquanto criticamos a ação do Governo só com mobilizações. Nós estamos na rua para fazer patente a nossa rejeição às políticas de recortes e reformas; mas também temos que procurar soluções aos problemas da gente e sobretudo para os coletivos que mais estão a sofrer os efeitos da crise".

E o órgão de CCOO, a Gaceta Sindical, voltava a dizê-lo com palavras não tão diferentes, mas servindo de uma metáfora reveladora: "Uns sindicatos sem capacidade de transformar em diálogo e acordo os seus processos de reivindicação e mobilização correm o risco de perder a sua condição de ferramenta útil para defender os interesses dos trabalhadores. Nesta terra de ninguém permaneceram o governo e os agentes sociais nos últimos quatro anos: uns governando de costas à imensa maioria dos cidadãos; outros ativando uma agenda de mobilização e ação reivindicativa, tão justa e necessária, sem resultados concretos".

No entanto, essa pretendida "terra de ninguém" já está precisamente ocupada pela iniciativa social e política da direita neoliberal de um PP que aplicou os termos do resgate do setor bancário e as políticas de austeridade com a determinação e a ferocidade dos convencidos, como recorda Rajoy quando se lhe acusa de atuar ao ditado da Troika. Se Rajoy convocou a CCOO e UGT à Moncloa o 18 de março, após ignorar a ambos sindicatos durante a primeira metade da legislatura -até o ponto de ter que atuar Merkel de mediadora para alentar os primeiros contactos- não é porque esteja disposto a fazer a menor concessão nas suas políticas de austeridade e contrarreformas, sobretudo quando a Troika (Comissão, BCE, FMI) lhe faz questão de uma "segunda volta de porca" para cumprir os objetivos do deficit marcados, senão porque está rearticulando a sua estratégia.

Ante o longo processo eleitoral que agora se abre, Rajoy precisa recuperar certa paz social que lhe permita dar verosimilhança à sua falsária e monolemática mensagem de "recuperação económica". E fazer chegar essa mensagem, sobretudo, àqueles setores sociais que, mais que por sofrer as consequências sociais da crise, possam estar prontos à ação por medo a essas consequências, por pânico a perder a proteção social que supõe o amparo da negociação coletiva. Os mais de 14 pontos perdidos pelo PP nas suas expectativas de voto, e a falta de horizontes reais de criação de emprego, para além da extensão da precariedade em um ou dois pontos do desemprego registado, não auguram precisamente uma recuperação política de maioria social conservadora. Mas um ou dois pontos sim podem determinar a política de alianças para um governo de coligação com outras forças políticas da direita, como UPyD e regionalistas vários. E podem, sobretudo, determinar qual seria a força maioritária em um governo do "Consenso de Bruxelas", um governo PP/PSOE capaz de bloquear qualquer possibilidade de transladar a um governo de coligação de esquerdas a resistência social acumulada neste período.

Por conseguinte, em resolução, a disjuntiva fundamental nesta discussão incoada, talvez mais tácita que explícita, tem que ver com perspetivas políticas, mais que com diferentes estimativas dos relacionamentos de força.

As Marchas da Dignidade, como os outros movimentos sociais que vieram desenvolvendo no nosso país desde o 15-M -incluídos os movimentos populares pelo "direito a decidir" de Catalunya e o País Basco- apontam claramente a uma estratégia de agregado de forças sociais que, de um ou outro modo, desembocaria em mudanças eleitorais bastante radicais e muito possivelmente em uma nova maioria de esquerdas. De safrar-se politicamente esta última, necessariamente abriria um lanho ruturista no statu quo político e económico herdado da Transição, incluídas os relacionamentos com Bruxelas e Berlim.

Em mudança, a recuperação do "diálogo social" proposta por CC OO e UGT depois da reunião do 18 de março é, inconfundivelmente, a enésima manobra tática do "mal menor": ganhar tempo e tentar frear alguns das feições mais agressivas da "segunda volta de porca" das devastadoras políticas de austeridade aproveitando na negociação a perentória necessidade de paz social neste longo ciclo eleitoral que tanto vai exigir ao PP. Agora bem; deixando de lado (por agora) as consequências mais desmoralizadoras para as suas próprias bases sociais e o provável aumento do descrédito público que vai acarretar às atuais direções dos sindicatos operários maioritários, há que saber que esta tática, de triunfar, não pode aferrar-se, e isso no melhor dos casos, a outra perspetiva política que a de um governo de Grande Coligação do bipartidismo dinástico que respeite no essencial o "Consenso de Bruxelas". Como a atual Grande Coligação na Alemanha.

Queridos e respeitados amigos, amigas, parceiras e colegas sindicalistas: voltem-no a pensar!

09/01/2014

A liberdade de todos ameazada pola riqueza de 2.170

Daniel Raventós. Este artigo foi tirado de SinPermiso (aquí) e traducido por À revolta entre a mocidade. Daniel Raventós é profesor da Facultade de Economía e Empresa da Universidade de Barcelona, membro do comité de redacción de Sin Permiso e presidente da Rede Renda Básica. Amais, é membro do comité científico de ATTAC e autor do libro ¿Qué es la Renta Básica? Preguntas (y respuestas) más frecuentes (El Viejo Topo, 2012). Unha versión máis reducida deste artigo publicouse no Diario de Mallorca en 25-12-2013.



Non houbo ningún autor minimamente serio que fose defensor do que para simplificar poderiamos chamar igualdade total. Si "igualdade total" son palabras con algún sentido preciso. Efectivamente, somos moi diferentes. Unhas persoas son mozas e outras cáseque centenarias, unhas teñen boa saúde e outras téñena moi precaria, unhas son moi intelixentes e outras non tanto, unhas preferin a  televisión a todas horas e outras lecturas de bioloxía evolutiva, unhas gostan da prensa deportiva e outras de estudar a Aristóteles, unhas desexan escalar montañas e outras encherse de pornografía ou de discursos papis, etc. Constatar estas evidencias resultaría innecesario se non for porque en ocasións estas grandes diversidades nas preferencias e na consitutión natural empréganse para intentar defender situacións sociais que non produto de desigualdades máis ou menos neutras senón completamente inocuas. Hai desigualdades que non atinxen á liberdades da maioría, mais hai outras que a pexan cando non a anulan.

As grandes desigualdades económicas son un impedimento á liberdade da grande maioría. Cando un poder privado é tan inmenso que pode impor a súa vontade ou, máis tecnicamente, a súa concepción do ben, ao resto da sociedade ou a unha grande parte, a liberdade desta maioría está seriamente afectada. Os poderes privados máis desenvolvidos que actualmente poden impor a súa vontade á grande maioría da sociedade, incluídos moitos Estados que parecen estar ao seu servizo (e en moitos casos están directamente ás súas ordes), son as grandes transnacionais. Mediante ameazas de distinto calibre (migración a outro lugar, cerre de fábricas...) estas grandes transnacionais conseguiron entre outros obxectivos: rebaixas do imposto de sociedades, bonificacións fiscais moi diversas, adxudicación de terreos de forma vantaxosa respecto a outras empresas... Sen contar as axudas lexislativas que reciben desde moitos países que permiten a enxeñaría fiscal mediante, aínda que non a penas, os paraísos fiscais [1] e que ocasionan a evasión de cifras multimillonarias de impostos. Por exemplo, Apple tivo no Reino de España unha declaración de imposto de sociedades negativa no ano 2011. Son moitos tamén os cartos que estas empresas dedican ao cabildeo directo ou indirecto. Outro exemplo: entre 1998 e 2004, 759 millóns de dólares empregáronse por parte das grandes farmacéuticas para influír en nada menos que 1.400 disposicións do Congreso dos EUA. Estímase que hai 2'5 lobbistas por cada deputado nos EUA. Non é estraño que o que fora presidente de aquel Estado, F.D. Roosevelt, chamara a estas empresas "monarcas económicos". A razón é que atentaban contra a liberdade da república, unha vella tradición monárquica. E o que seguen facendo de forma aínda mais desvergoñada. Como calificaría Roosevelt agora a estas empresas 80 anos despois! Cando a existencia material de millóns de persoas depende da arbitrariedade dalgúns poucos e potentes consellos de administración, a liberdade do primeiro grupo periga se non está xa sometida. 

É moi reconfortante para os que amasan grandes fortunas escoitar a xornalistas e académicos que atribúen a razón destas acumulacións aos enormes méritos despregados para conseguilas. Méritos que lles falan e lles alagan sobre músicas que lles pracen enormemente: se chegaron onde están é porque se trata de grandes emprendedores ou intelixentes innovadores ou xenios financeiros ou working rich... Non todo o mundo dispón deses méritos e xenios, e por tanto, hai que aceptar que é o pago xusto a tanta excedencia. Non só se trata do chamado "sesgo da confirmación", segundo o cal a información acorde coas propias conviccións procésase de forma moito máis favorábel que a información que non é acorde coas mesmas. Hai máis. Así, a desigualdade non sería senón  o custe que hai que pagar en troques de oportunidades. Nun recente libro [2] recordábanse algúns dato que non fan tan favorábeis as cousas para os moi ricos: 40% dos 400 norte-americanos máis ricos heredaran máis de un millón de dólares dos seus devanceiros. Cun millón ou máis de dólares, sen contar relacións, educación, amistadas achegadas polas familias de orixe, xa se empeza a carreira dunha maneira bastante vantaxosa. Máis gratificante é, con todo, para estes zutanos achacar aos méritos propios a súa privilexiada posición. E sempre hai académicos e xornalistas dispostos a dicirllo repetidamente para facerlles máis fantástica a súa xa afortunada existencia. Tampouco é necesario ser moi extremista á hora de agasallar aos moi ricos e, en perfecta simetría, responsabilizar aos pobres da súa desgraciada situación.

Non fai falta, por exemplo chegar às propostas de Thomas Nixon Carver, o que fora catedrático de política económica na Universidade de Hardvard entre 1902 e 1935 e un dos presidentes da American Economic Associatio. Este economista propunha a esterelização dos "palmariamente inetos", quer dizer, aos que não alcançvam um ingreso anual de 1800 dólares. Na década de 30 do passado século, que é quando se fez a proposta, esta quantidade abrangia 50% da população dos EUA, quer dizer, por volta de 60 miliões de pessoas. Não andava com monadas o senhor Carver [3]. Porém, insisto, não faz falha chegar a tanto extremismo: é suficiente com que os jornalistas e académicos mencionem o justo pago aos ricos pelos seus méritos e genialidades para justificar as suas imensas fortunas. Por vezes, também deve acompanhar-se da inveja que, segundo eles, invade ao resto. Porém moderadamente, não faz falha apresentá-lo de forma assaz radicalizada, não. Ao fim e ao cabo, não são fortunas as que contribuim com alguma quantidade a paliar as desgraças do mundo? O filantrocapitalismo ao que se dedicam alguns dos grandes multimilionários não lava apenas consciências, mas também é muito rendível. E a ninguém lhe amarga um doce. 

Desde o início da crise económica as distâncias sociais e as desigualdades entre os mais ricos e o resto da espécie incrementaram-se. Já no ano 2012 por citar a um economista conhecido, Joseph Stiglitz escrivia: "Quem mais padece as crises são os trabalhadores e as pequenas empresas, e isso foi especialmente certo durante esta crise, em que os benefícios das grandes empresas seguem sendo elevados em muitos setores, e aos bancos e aos banqueiros vam-lhe bem as coisas". [4]

Dados que o corroboram, mas antes um comentário. Como fica dito, os ricaços têm académicos e jornalistas que são os seus bufões e o seu séquito. "Muita da literatura atual sobre o mundo dos grandes diretivos de empresas publica-se em revistas como Fortune, Businessweel ou Forbes. (...) em nenhum lugar podem encontrar-se estudos empíricos sobre as raízes sociolobiológicas das tendências criminosas da classe executiva". [5] Vejamos uma amostra dessa "literatura atual sobre o mundo dos grandes diretivos" que achega dados interessantes. O informe acabado de publicar de UBS (antigamente conhecia-se como União de Bancos Suíços) Wealth-X and UBS Billionaire Census 2013, indica que no Rein ode Espanha há 22 milmilionários que acumulam uma fortuna de 74.000 miliões de dólares, o que equivale a mais de 5% do PIB do Reino. Sim, apenas 22 pessoas acumular esta incrível fortuna. E os 2.17o humanos que no 2013 acabado de finalizar atessouram 6'5 biliões (triliões em inglês dos EUA) de dólares dispõem da mesma fortuna que representa o PIB mundial menos o da China e os EUA. Esta imensa quantidade de dinheiro em tão poucas mãos é 60% superior a sua riqueza, pas mal. As muito concretas 2.170 pessoas e algumas mais são as que estão no extremo privilegiado das grandes desigualdades. "Os frequentes sucessos que colheitam as grandes empresas à hora de não ter que assumir todas as consequências dos seus atos são um exemplo de como modelam a seu favor as refras do jogo económico". [6] É um poder privado tão imenso que a sua vontade, a sua conceção do bem, impõe-se a uma grande maioria da sociedade. Não se trata apenas da galopante desigualdade que com algumas calaças poda mitigar-se, trata-se da liberdade da imensa maioria.



  Notas: 
[1] En Zug, cidade suíça, estão censados 19.000 habitantes e é a sé de por volta de 30.000 empresas. Muitas destas sés de grandes transnacionais ubicadas nesta vila suçiça não têm nem um só empregado. Zug foi a pioneira suíça em oferecer impostos testemunhais às grandes empresas.

[2] Andy Robinson (2013): Un reportero en la montaña mágica, Ariel. 

[3] Daniel Raventós (2010): "La contrarreforma laboral del Gobierno Zapatero aún no es la castratio plebis  de Thomas Nixon Carver como solución a la pobreza y el paro", SinPermiso núm. 7. 
[4] Joseph Stiglitz (2012): El precio de la desigualdad, Taurus.  
[5] Jeffrey St. Clair y Alexander Cockburn (2013): "The American Criminal Elite. An Orgy of Thieves", Counterpunch, 24-11-2013. Traducción en SP: "La élite criminal de los Estados Unidos. Una orgía de ladrones", SinPermiso, 24-11-13. [6] Josep Stiglitz, op. cit,., p. 249.


12/12/2013

Sobre grandes desigualdades, liberdade republicana e renda básica. Entrevista

Daniel Raventós e Àngel Ferrero. Entrevista tirada de SinPermiso (aqui) e traduzida por nós. A entrevista, realizada por Àngel Ferrero, publicou-se originalmente em catalá na revista La Directa e sairá também em alemão na revista Junge Welt. No entanto, tomamos a versão em castelhano por ser mais ampla do que as anteriores.



Defendes a aprovação de uma Renda Básica (RB) como uma medida de esquerdas. Por que de esquerdas?

A RB foi defendida desde posições políticas de esquerdas e de direitas. Com muitas variantes. Estas afirmações são facilmente comprováveis jogando uma vista de olhos à multidão de textos e textinhos que se foram escrevendo ao longo das últimas três décadas. Por tanto, defender a RB sem mais não informa muito da posição política de quem a defende. Em mudança, a concreção, isto é, como financiar-se-ia, de que quantidade (ou critério de quantidade), que efeitos redistributivos das rendas teria, que parte da população ganharia e daí parte perderia... é o que informar-nos-á de se a RB defendida é de esquerdas ou de direitas. Agora bem, há que dizer que apesar de que podemos encontrar muita diversidade política, os defensores da RB são em geral gente politicamente de esquerdas. Pessoalmente, defendo uma RB que suponha garantir a existência material de toda a população, que implique uma grande redistribuição da renda dos mais ricos ao resto, o que implica uma reforma fiscal para a financiar, e que faça parte de uma política económica que impeda que umas minorias (multinacionais, bancos, igrejas...) interfiram a vontade na existência material (e, por tanto, na liberdade) da grande maioria. Efetivamente, é uma conceção da liberdade que entronca com a milenária tradição republicana. Para esta conceção da liberdade, as grandes desigualdades não permitem a liberdade de todos. À medida que os grandes poderes privados são mais fortes, a sua capacidade para interferir na existência material de uma grande parte da população é a cada vez maior. Interferir na existência material das pessoas, é interferir na sua liberdade. E as grandes desigualdades que fazem possível esta interferência estão a crescer de uma forma que resulta difícil de conceber. Por citar somente alguns dos dados recentes que pude consultar. O relatório acabado de publicar de UBS Wealth-X and UBS Billionaire Census 2013, indica que no Reino de Espanha há 22 milmilhonários que acumulam uma fortuna de 74.000 milhões de dólares, uns 55.000 euros à mudança de finais de 2013, o que equivale a mais de 5% do PIB do Reino. Sim, somente 22 pessoas. A escala mundial, os dados são ainda mais desproporcionados. Os 2.170 humanos que no 2013 atesouram 6'5 biliões (triliões em inglês dos EUA) de dólares (o que representa mais 60% desde o ano 2009, em quatro anos de crises) dispõem da mesma fortuna que representa todo o PIB mundial menos o da China e os EUA. Esta desigualdade crescente começa a preocupar, e não deforma altruísta precisamente, a muitos dos seus próprios beneficiários.

Acentua-che a diferença com respeito a outras propostas. Quais são?

Bom, a RB tem como uma das suas características mais distintivas a de ser incondicional. Note-se que isto distingue esta proposta de todos os subsídios condicionados que existem em vários Estados: subsídios de desemprego, subsídios para pobres como as rendas mínimas de inserção (a cada vez mais escassas) das comunidades autónomas do Reino de Espanha, ou de forma mais centralizada na França, subsídios para pessoas com carências físicas ou psíquicas... Para ter direito a estes subsídios deve cumprir-se alguma condição ou conjunto de condições: ser pobre, estar parado, ter algum determinado grau de invalidez... Todas estas prestações monetárias são condicionais. Que problemas têm os subsídios condicionados? Alguns destes problemas são muito importantes e suficientemente conhecidos. Um de grave é que os subsídios não universais têm altíssimos custos administrativos em proporção ao orçamento geral do programa condicionado. Em mudança, a RB representaria uma simplificação administrativa de forma óbvia porque ao não precisar de controlos, não há custos para a gerir. Outro problema muito citado na literatura académica é que os subsídios condicionados podem promover as chamadas armadilhas da pobreza e do desemprego. Trata-se de um mecanismo que se autoalimenta e que estimula a persistência da pobreza. Estas armadilhas aparecem pelo facto de que as quantidades monetárias dos subsídios condicionados não são em general cumulativas, isto é, que são subsídios complementares a uma renda já existente e até uma ombreira estabelecida. Daí a inexistência de estímulos para aceitar ocupações a tempo parcial ou de qualquer remuneração. A diferença dos subsídios condicionados, a RB não constitui um teto, senão que define só um nível básico, a partir do qual as pessoas podem acumular outros rendimentos. Há mais, mas estes são uns problemas muito importantes dos subsídios condicionados. A RB resulta em comparação muito favoravelmente situada.

Os críticos da RB asseguram que seria melhor promover o pleno emprego. Por que não o acha possível?

Sim, dispor de postos de trabalho dignos e decentemente remunerados para toda a população que queira estar no mercado laboral parece-me um objetivo fantástico. Imaginemos uma situação em que o índice de desemprego está acima dos dois dígitos, muitos postos de trabalho sofrem de uns salários indecentemente baixos, as condições laborais são muito precárias... Bom, não há que imaginar demasiado, olhemos ao nosso arredor na mesma União Europeia, para não ir mais longe. Ante uma situação assim não acho que seja nem inteligente, nem útil dizer que "o melhor seria promover o pleno emprego". Sem nem sequer entrar em se isto é possível sem mudar muitas feições da política económica que se pratica, há uma resposta dos defensores da RB que espero que todos os partidários da plena ocupação aceitem: até que não se consiga o pleno emprego a gente tem que viver. Dou por suposto que nem o mais fanático defensor da plena ocupação pode chegar a afirmar que é questão de uns poucos anos. E ainda muito menos que esta plena ocupação seja com trabalhos dignos e decentemente remunerados. E muito menos ainda com uma duração do tempo de trabalho de 15 horas semanais, como Keynes se atreveu a predizer que seria a jornada laboral, em um século depois, em uma conferência de 1928, impressa em 1930 [1]. Única previsão das que fez nesta conferência que errou.

Há outro argumento que, dada a situação atual de desemprego em massa, fica quiçá em um segundo plano, mas que para mim segue tendo importância: com uma RB os trabalhadores teriam muita mais liberdade que agora para aceitar ou não um posto de trabalho. Em todo o caso, não aceitariam trabalhos de semiescravidão. Mais de uma vez recordei que alguns economistas como Michael Kalecki fazia questão de que a principal ferramenta de que dispôs e dispõe o grande capital para disciplinar à classe trabalhadora é a existência de uma população excedente ou exército industrial de reserva. Com a crise, esta população excedente é a cada vez maior. Com uma RB esta ferramenta de disciplina ficaria muito debilitada. Este é o componente subversivo da renda básica ou, para ser mais modestos, o que a faz insuportável para os amigos das grandes desigualdades sociais e do capitalismo neoliberalmente existente.

Também se critica com frequência o seu incondicionalidade, uma crítica que tiveste que refutar várias vezes...

Desgraçadamente, segue tendo muita confusão ao respeito. A característica de incondicionalidade tão própria e distintiva da RB costuma "descolocar" a algumas pessoas. "Também devem percebê-la os ricos? que despropósito!", é uma forma muito habitual de expressar esta perplexidade. Se se compreende que embora a perceba toda a população, não todos ganham, a perplexidade desaparece (ou deveria o fazer para quem entende realmente a proposta). Em todas as propostas sérias de financiamento de uma RB que pretendem redistribuir a riqueza e acabar com a pobreza, os ricos saem perdendo. Mas esta é só uma parte da questão porque a incondicionalidade da RB faz com que, como dizíamos antes, muitas das críticas que podem ser corretas dirigidas aos subsídios condicionais justamente pela sua condicionalidade, não são corretas dirigidas contra a RB. Precisamente pela sua incondicionalidade.

Uma RB não eliminaria os incentivos materiais para trabalhar?

Imagino que te referes a "trabalhar assalariadamente" ou, mais em general, "remuneradamente", porque fazê-lo domesticamente ou voluntariamente também é trabalhar. Vamos por partes. Em primeiro lugar há que dizer que o problema hoje é um muito diferente: muita gente quer trabalhar a mudança de um salário e não pode. Adicionalmente, há que considerar que o trabalho doméstico e o voluntário se realizam de forma gratuita, de forma não assalariada. Existem muitas razões para supor que uma RB não provocaria em absoluto uma retirada em massa do mercado de trabalho. Direi somente três. Em primeiro lugar, o que a maioria da gente procura no trabalho, além de certos rendimentos, é um reconhecimento social, se sentir útil, inclusive certa auto-realização. Trata-se de objetivos que podem se atingir em trabalhos não assalariados, como o voluntário, mas também em determinados trabalhos assalariados. Em segundo local, embora a gente só perseguisse a remuneração, o desejo de obter maiores rendimentos tem que ver com muitos fatores de tipo social e cultural, e se tal desejo não desaparece na atualidade inclusive com salários médios e altos, nada faz supor que desapareceria com uma RB que, embora pudesse garantir uma subsistência digna, não permitiria demasiados luxos. Em terceiro local, é preciso recordar que o problema mais urgente do trabalho nas sociedades atuais radica no facto de que o mercado laboral "de qualidade" está saturado e é a cada vez mais esquelético e, por tanto, exclui a boa parte da população. Neste sentido, o que algumas pessoas decidissem deixar os seus trabalhos-lixo ou mau pagos para dedicar em uns anos das suas vidas a se formar, a estabelecer uma família ou forma de convivência do tipo eleito, a colaborar com organizações dedicadas à solidariedade ou a empreender outros projetos pessoais, os quais poderiam implicar trabalhar de maneira não assalariada, não deveria ser contemplado como uma possibilidade necessariamente preocupante. Ao invés, isto libertaria a muita gente da pressão de encontrar um emprego a qualquer preço, o que, ademais, obrigaria aos empresários a oferecer condições mais atraentes para alguns empregos. Pelas razões contribuídas em uma pergunta anterior, não é essa a situação em uma época de crise e de desemprego em onde a gente está mais disposta a trabalhar por menos salário que em uma situação de maior bonança.

A realização de horas extraordinárias por parte de muitos trabalhadores, por uma parte, e o exercício de atividades remuneradas por parte de pessoas aposentadas antecipadamente, por outra, constituem duas realidades concretas (ou mais ajustado aos factos isto é que constituíam duas realidades concretas muito generalizadas antes da atual crise económica) que apontam a que esta suposta contração da oferta de trabalho remunerado como consequência da introdução de uma RB deve se pôr em dúvida. Em primeiro lugar, é bem sabido que muita gente realizou e realiza horas extraordinárias. Por definição, as horas extraordinárias são horas trabalhadas uma vez terminado o horário laboral regular. Também não resulta uma novidade afirmar que muita gente faz horas extraordinárias, não porque não tenha cobertas as necessidades básicas, senão porque pretende atingir níveis superiores de consumo, ou singelamente porque aspira a uma melhora económica. Em segundo local, há que assinalar que muitos dos trabalhadores que aceitaram as aposentações antecipadas que muitas grandes empresas ofereciam no final do século XX e muito a princípios do atual com a intenção de reduzir o modelo, apesar de contar com rendimentos em ocasiões nada despreciáveis, realizavam posteriormente trabalhos remunerados. Então, se muitos trabalhadores realizam horas extraordinárias e boa parte dos (pré) aposentados seguem cobrindo tarefas que obtêm remuneração no mercado laboral, nada convida a pensar que com uma RB a gente não quereria realizar trabalhos remunerados.

Poderia considerar-se que a exposição precedente é um cúmulo de hipótese e suposições e que, em realidade, se desconhece o que implicaria a introdução de uma RB. Acontece, no entanto, que alguns estudos que se realizaram arrojam alguma luz sobre o tema. Efetivamente, algum estudo constata só uma pequena retirada do mercado de trabalho por parte de alguns trabalhadores com empregos mau pagos e desagradáveis, mas para encontrar outro melhor. Os temores catastrofistas sobre uma sociedade de vadios e ociosos é algo mais próximo ao mundo da suposição, em alguns casos claramente interessada, que ao da realidade.

No Reino de Espanha debateu-se no Parlamento a sua aprovação. Por que fracassou a votação?


Debateu-se duas vezes no Parlamento espanhol. E anteriormente no de Catalunya, e também se debateu em outros parlamentos autonómicos do Reino de Espanha. No parlamento espanhol discutiu-se graças a ERC e a IU-ICV. A direita teve-o claro, pelisso votou na contramão. Acho que a direita percebe rapidamente os perigos da RB para os seus interesses (o aumento do poder de negociação dos trabalhadores, o desmantelamento da principal ferramenta de que dispôs e dispõe o grande capital para disciplinar à classe trabalhadora, isto é, a existência de uma população excedente, como se comentava antes, o incremento da liberdade real de grande parte da cidadania para dispor a mais opções para planificar as suas vidas...) e por tais motivos votou unanimemente na contramão. A esquerda, por notável contraste, está mais dividida quanto à valoração global da RB. Há quem valoriza mais, entre a esquerda, os subsídios para pobres! Realmente essa realidade é um problema. Que os grandes sindicatos maioritários no Reino de Espanha (menos em Euskadi e Galiza), CCOO e UGT, valorizem mais um subsídio para pobres que a RB denota uma parte do problema ao que me refiro. E o que mais me dói, é que as vezes que tive ocasião de discutir com dirigentes sindicais sobre a RB, mais que argumentos expressam preconceitos na sua contra. Acho que estes são elementos, embora a posição dos sindicatos seria um elemento só indireto, que explicam por que se votou na contramão a cada vez que se discutiu no Parlamento espanhol. E há um facto mais geral: a RB ainda não é conhecida por grande parte da população.

Pode aprovar-se uma medida como esta em tempos de crises?

A pergunta pode referir-se a se é viável economicamente, mas também pode se referir a se é viável politicamente. Que é viável economicamente não tenho nenhuma dúvida pelos estudos de micro-simulação que fizemos Jordi Arcarons, Lluís Torrens e eu a partir de mostras estatisticamente significativas de IRPF. Já se fez público o último estudo [2] que dá resultados que mais de um encontrará inesperados. Viável politicamente é possível se muda-se o setor social ao que deve favorecer a política económica. A economia não é independente da política. Os ricos ganharam com as medidas económicas que se praticam desde faz lustros. A maioria da população, pelo contrário, está a perder. Parece-me bastante razoável pensar que uma política económica diferente à atual e favorável à maioria da população não rica, não pode vir da mão dos partidos políticos que governaram os principais Estados da UE nas últimas décadas. Pensar o contrário parecer-me-ia, quando menos, pouco racional. Faz poucas semanas lia a última novela da trilogia que Petros Markaris escreveu sobre as consequências sociais da crise grega, magistralmente explicada embora o pretexto sejam os casos que deve pesquisar o comissário Kostas Jaritos. Em um momento dado, um polícia sugere a um colega que dever-se-ia pesquisar quiçá determinada questão entre os círculos dos "antisistema", e o primeiro contesta-lhe que quiçá isto já não faz sentido já que "a metade da população grega hoje é antisistema". Por isso, acho que, mais que nada, a sorte da RB no Reino de Espanha e em qualquer outra local dependerá, como toda medida social que pretenda ser séria e não mera especulação mais ou menos engenhosa, da qualidade das suas análises e, principalmente, que possa ser avaliada por parte de grande parte da população como uma das medidas capazes de fazer frente à sua situação social. O destino da renda básica dependerá, em fim, do número de pessoas que queiram a defender e estejam dispostas a lutar por ela, porque apesar de que a RB não beneficie só ao conjunto da classe trabalhadora, como disse em uma entrevista a uma revista brasileira [3], uma RB poderia unificar a luta dos trabalhadores ao redor de um direito que os beneficia a todos não importa qual seja a situação da sua atividade específica, ao mesmo tempo em que daria bem mais ar para resistir os ataques às condições de vida e trabalho que está a sofrer a grande maioria da população.

Notas:
[1] Citado em Robert Skidelsky e Edward Skidelsky (2012): ¿Cuánto es suficiente? Qué se necesita para una ‘buena vida’.” , Barcelona: Crítica.

[2] Jordi Arcarons, Daniel Raventós e Lluís Torrens (2013): “Un modelo de financiación de la Renta Básica técnicamente factible y políticamente no inerte”, Sin Permiso, edición electrónica do 1-12-2013: http://www.sinpermiso.info/articulos/ficheros/RBnoinerte.pdf.
[3] “Renda Básica e o sonho da liberdade”, entrevista realizada por Patricia Fachin para a brasileira Revista do Instituto Humanitas Unisinos (disponível en http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3289&secao=333).

01/05/2013

A distância que separa a necessidade da fraude é muito pequena. Sobre a "ciência" falsária e outras pragas


Daniel Raventós. Artigo tirado de SinPermiso (aqui) e traduzido por À revolta entre a mocidade.


Não é infrequente que pessoas inteligentes dêem crédito a coisas extremamente estúpidas. Ou, em outras palavras, que pessoas inteligentes e cultas, algo que não sempre e em todo o local vai da mão, façam uso da homeopatia, utilizem ímanes nos seus sapatos para extrair energia do nosso planeta, se atem pulseiras que atraem "energias" benéficas, achem que os azeites omega-3 originários do peixe melhoram a inteligência, ou estejam convencidas de que os varões terão no ano 3000 uns penes notavelmente maiores, por pôr cinco possibilidades de uma lista que desgraçadamente é muito longa. Porque longa é a lista de ciência vudú. Com estas duas últimas palavras, o catedrático de Física da Universidade de Maryland Robert L. Park refere-se a todas estas variedades da impostura: "ciência patológica, ciência lixo, pseudociência e ciência fraudulenta."

Ben Goldacre [1] é médico psiquiatra e autor da coluna semanal em The Guardian que leva por título Bad Science. Precisamente este é o título que elegeu para o seu livro (Paidós, 2011): Má ciência. Trata-se de um livro de quase 400 páginas e realmente recomendável para toda a pessoa de esquerdas interessada em aprofundar o conhecimento a respeito dos múltiplos e lucrativos fraudes que, às vezes em nome das ?ciências alternativas? ou diretamente e de forma falsaria em nome da ?ciência?, espreitam ao nosso arredor. Quiçá também possa interessar a uma pessoa de direitas que queira aprofundar o mencionado conhecimento, mas sem dúvida que não sentir-se-á cómoda com muitas das afirmações de Goldacre como esta:

"Em Kentish Town, uma área principalmente operária, a média da expectativa de vida é 70. A duas milhas de distância encontra-se Hampstead. A média da expectativa de vida ali é 80. No entanto, podes ir andando de um sítio a outro em meia hora. Isto é uma desigualdade fenomenal. O tratamento que fazem a média dos temas de saúde é muito de direitas e individualista. Trata-se do doente que merece sê-lo - és o que comes. É o eco de velhas e perniciosas ideias a respeito do pobre que se merece sê-lo".

Ou esta outra:

"Quem leva aos nossos ecrãs o problema da desigualdade social como fator das desigualdades na saúde?"

Ben Goldacre está, segundo confessa, muito habituado a revisar ensaios médicos. Por esse motivo também está muito treinado em destetrar erros em ditos ensaios, bem como exageros, minimização de riscos, etc. Especialmente preocupantes são aqueles casos completamente inúteis por ter ignorado algum, vários ou todos os requisitos necessários para que um ensaio resulte minimamente correto. Há técnicas conhecidas para avaliar a qualidade destas práticas. Assim, a muito utilizada Escala Jadad valoriza de 0 ao 5 o cumprimento ou não de sete pontos do tipo: "Descrevem os autores o método que utilizaram de aleatorizaçao?", "Utiliza o método duplo cego? (método que se emprega em ciência para evitar ou previr resultados que podem estar influídos pelo efeito placebo)", etc. Quanto mais cerca do 5 esteja um ensaio, maior qualidade do mesmo. Se está próximo de 0 trata-se de um ensaio muito deficiente e que dificilmente pode se contribuir de crédito para algo. A metaanálise, um método muito valorizado mediante o qual se agrupam todos os ensaios levados a cabo sobre um tema e se realizam determinadas operações, é especialmente útil quando teve bastantes ensaios, mas que tomados por separado são pouco concludentes. 

Em homeopatia, quando se realizaram metaanálises, a conclusão é meridiana: "a homeopatia não é melhor que o placebo". Dito de outra maneira, é atirar completamente o dinheiro investido em qualquer remédio homeopático. Quiçá seja útil recordar  que quando um remédio homeopático leva a indicação "30C" completaram-se 30 rondas de diluição  o que significa que contém menos de uma parte por milhão da substância original, o que significa à sua vez uma diluição de 1060, sim um 1 seguido de 60 zeros. É uma quantidade tão elevada que não estamos dotados para nos fazer facilmente uma verdadeira ideia. Goldacre ajuda-nos: "[I]magínense uma esfera de água com um diâmetro de 150 milhões de quilómetros (a distância da Terra ao Sol). Demoram-se oito minutos luz em percorrer esta distância. Pois bem, pensem em uma esfera de água desse tamanho com uma só molécula de outra substância nela: isso é uma dilución de 30C." Realmente seria de 30,89C, como o mesmo Goldacre puntualiza, "para os mais rigorosos". O grande mago e desenmascarador de fraudes supostamente científicos, James Randi, faz tempo que oferece um milhão de dólares (um milhão de dólares!) a quem "distinga de maneira fiável um preparado homeopático de um não homeopático usando o método que deseje." Ninguém reclamou a recompensa...

Embora a homeopatia ocupa bastantes páginas de Má ciência, também são minuciosa e despiadadamente derrubados outros casos de ciência vudú como a suposta correlação entre a vacina triplo vírica e o autismo, a libertação de toxinas em capachos de água, a gimnásia cerebral (exercícios físicos complexos que "potenciam a experiência do conjunto da aprendizagem cerebral") e um longo etcétera. Com bom critério, Goldacre não se centra em exemplos de ciência vudú (cabe recordar que não é uma expressão sua) marginais, senão em casos que em um ou outro país, ou em vários, gozaram de muita popularidade e, pelisso mesmo, movem muitos milhares de milhões de euros.

O autor de Má ciência teve que escutar de boca de muitos impostores que "está ao serviço da medicina oficial"[2] e das "multinacionais farmacêuticas". Era de esperar, claro. Mas nesse caso as acusações estão tão mau dirigidas e mau fundamentadas que são simples calunias. Goldacre dá muitas conferências a estudantes e profissionais da medicina. Precisamente, um dos seus títulos preferidos é "As andrómenas das farmacêuticas?. Em Má ciência podemos encontrar dados e informações interessantíssimos sobre a prática das farmacêuticas. Por exemplo: sobre como chega um fármaco ao mercado, como se inventam novas doenças, como se ocultam os efeitos secundários dos ensaios, como publicam repetidamente em diferentes revistas os resultados dos ensaios (assim é mais difícil detetar que se trata do mesmo ensaio e de não em media dúzia ou mais), como produzem os grandes sesgos de publicação de ensaios, como tentaram proibir a publicação de dados não favoráveis, etc. etc. Mas que as farmacêuticas cometam uma multidão de irregularidades quando não diretamente atentados à saúde pública, não significa ter que passar ao que muitos charlatões nos oferecem "a mudança". Não é a ciência vudú que contribuirá a impedir as barbaridades das farmacêuticas senão "entender um pouco o funcionamento da evidência empírica".

O tratamento jornalístico de determinados fraudes também não sai muito bem parado no trabalho de Goldacre. Quando se trata de notícias espetaculares (normalmente fraudes como se descobre tempo depois) relacionadas com a ciência, não são os jornalistas científicos os dedicados às tratar senão os jornalistas generalistas que habitualmente têm uma preparação científica nula, mas que lhes custa admitir semelhante evidência. Recordemos que Goldacre escreve regularmente em The Guardian  e conhece de primeira mão os meios de comunicação. Quem escreve sobre números "tem também a responsabilidade dos entender". E muitos jornalistas não os entendem. Por exemplo, a má interpretação do fenómeno conhecido como "regressão à média" [3]. Ou pior se cabe: há pessoas que não podem entender que existam poucas probabilidades de um acontecimento e que acabe finalmente acontecendo. Isto pode fazer suspeito a alguém que desgraçadamente não tem nada que ver com um assunto determinado, como se documenta também no livro. É muito difícil que a alguém lhe toque a lotería, mas a cada semana lhe toca a alguém. Ou dito com as palavras do grande físico Richard Feynman:

"Sabem uma coisa? Esta noite ocorreu-me algo do mais espantoso. Vinha para aqui, de caminho à conferência, e cruzei por no meio do estacionamento. E não se vão achar o que aconteceu: vi um carro com a matrícula ARW 357. Imaginam-se? De todos os milhões de matrículas que há em todo o Estado, que probabilidades tinha de que eu visse essa designadamente esta noite? Incrível...".

Esta parte do livro é especialmente instructiva.

O livro tem como subtítulo: Não te deixes enganar por curandeiros, charlatões e outros farsantes. São quase 400 páginas dedicadas a denunciar alguns desses enganos.

 Notas originais do autor:
[1] Autor do que publicamos um artígo e uma entrevista em Sin Permiso:

[2] Recomendo o divertido, magnífico e moi serio vídeo de Tim Minchin:
http://www.youtube.com/watch?v=3CqQvIZ_tnE&feature=youtu.be Lá podemos escutar afirmações do teor: “¿Sabem como se chama a medicina alternativa que funciona? Chama-se medicina”.

[3] Entende por “regresión a la media” aquele fenómeno pelo qual “cuando las cosas se hallan en sus puntos extremos, lo más probable es que estén a punto de iniciar el camino de vuelta hacia un punto medio”. Depois de visitar a um homeopata (ou a um telepata ou a um dispensador de “ energias” ou a um vaia você saber quem) por ter uma dor de costas, pode que remeta a grande moléstia  Muito possivelmente esta dor ia a remitir por “regresión a la media”. Ou, por outras palavras, não captamos a mencionada “regresión a la media” e equivocamo-nos de causativo. 

29/04/2013

Reino de Espanha: o Governo Rajoy admite o seu fracasso, e agora que?

Antoni Domènech, G. Búster e Daniel Raventós. Artigo tirado de SinPermiso (aqui) e traduzido por À revolta entre a mocidade.


Na passada sexta-feira 26 de abril, na habitual roda de imprensa posterior ao Conselho de Ministros, o Governo Rajoy reconheceu o completo falhanço das políticas de austeridade do seu Primeiro Plano de Reformas. A seguir, anunciou um Segundo Plano de Reformas.

Os dados do fiasco não podem ser mais eloquentes  No tocante ao seu objetivo principal, a redução do deficit público, o governo Zapatero tinha-o deixado em 2011 no 9,6% do PIB, mas no final de 2013 situar-se-á no 10,6%. Desse montante, 4,3 pontos correspondem ao resgate europeu do sistema bancário espanhol, que a UE não contabiliza a efeitos dos objetivos de ajuste orçamental, mas que têm que se financiar igualmente no mercado da dívida. Após os recortes orçamentas sangrantes da despesa pública -que afetaram especialmente à previdência, a educação e o financiamento das comunidades autónomas e supuseram 259.000 despedimentos-,  a sua incidência no deficit da Administração central e a Segurança Social é de um mero 0,1% (de 5,2% em 2011 ao 5,1% em 2012). Em 2011 a dívida pública, após três anos de crises, representava o 68,5% do PIB; em 2012 situou-se no 86,9%, em 2013 atingirá o 90,5% e o FMI estima agora que em 2015 situar-se-á no 99,8%. O pagamento de interesses em 2013 (40.000 milhões de euros) é equivalente ao resgate europeu da banca. A maduración da dívida pública a curto em 2013 é de 85.000 milhões de euros. Ao final da legislatura não ter-se-á cumprido o objetivo comunitário de 3% do PIB de déficit, porque a previsão para 2014 é de 4,1%.

Quanto ao segundo objetivo do governo Rajoy -relançar o crescimento da economia espanhola-, os dados revisados agora oferecidos são igualmente alarmantes: decrescimiento de 1,6% do PIB em 2013, ligeiro crescimento de 0,5% em 2014 e de 0,9% em 2015. A economia sofre uma dupla recessão desde 2008. Para uma economia como a espanhola, que precisa crescimentos de ao redor de 2% do PIB para criar emprego neto, estas cifras supõem que desde 2011 se destruíram 1,6 milhões de empregos e que quando a legislatura acabe em 2015 a taxa de desemprego se situasse no 28,8%, três pontos mais que a recebida do governo Zapatero. Os efeitos sociais da recessão, com uma queda importante do nível de vida, prolongar-se-ão, como pouco, para além de 2018.

Anúncio e alcance do II Plano de contrarreformas

O grosso dos dados deste terrível quadro macroeconómico conheceu-se na reunião de primavera do FMI, entre o escândalo Reinhart-Rogoff e a desolada constatação da recaída na recessão do núcleo central da UE. Vinham a confirmar-se, e pelo magnífico, as predições mais críticas com as políticas de austeridade. Em uma entrevista publicada na segunda-feira 22 no diário ultraliberal de Nova York The Wall Street Journal, o ministro de economia Guindos adiantava oficiosamente as cifras e assegurava que o Reino de Espanha preocupava menos ao FMI e deixava de ser o principal foco de alarme, em especial desaparecidas as dúvidas sobre a estabilidade do euro graças à política do BCE. Christine Lagarde, diretora do FMI, alentava a "dar mais tempo a Espanha". Durante quatro dias, uma campanha de imprensa cimentada em ambíguos rumores tentou preparar a uma opinião pública já convenientemente amedrentada desde o ministério do interior com a previsão de uma violenta batalha campal nos arredores do Congresso dos Deputados no dia 25 (o que se traduziu em um dos maiores despregues policiais conhecidos em Madrid).

Quando finalmente aconteceu a roda de imprensa na sexta-feira 26, a neolíngua habitual destacou pela sua originalidade eufemística: "reordenação de cifras", "novidades tributárias"? Não faltaram jornalistas tentados a publicar o seu próprio dicionário, e algum outro não pôde evitar cair no costumbrismo a costa da cena. Apesar da gravidade da situação, Rajoy, que leva escondido por trás de um ecrã de plasma desde o início do caso Bárcenas, segue sem anunciar data de comparecência no Congresso. O seu único contacto com a imprensa terá local por motivo da visita a Granada do seu homólogo irlandês, no domingo 28.

O anuncio do Segundo Plano de Reformas, em parte adiantado por Rajoy no debate sobre o chamado estado da nação no passado mês de fevereiro, é em realidade uma repetição dos objetivos da legislatura e do seu Plano de 72 medidas, das que se foram adiando mais de 30, como a reforma da administração local e autonómica ou a lei de colégios profissionais. Mas há três, previstas no memorándum de resgate  bancário -cuja tradução oficial ao espanhol apareceu no BOE com quatro meses de atraso-, que serão decisivas: a "avaliação" da reforma laboral por um "organismo independente" (FMI, OCDE, UE, mas não a OIT), que inevitavelmente gerará uma nova onda de flexibilização e recorte de direitos no mercado laboral; a reforma das pensões, com uma segunda extensão da idade de aposentação para além dos 67 anos; e a Lei de desindexación de la economia, que abrirá a porta a recortes via inflação em pensões, subvenções e contratos públicos.

A subida "extraordinária e circunstancial" do IRPF de 2012 prorroga-se durante toda a legislatura, e se anunciam "novidades fiscais" com aumento dos impostos especiais, a exceção dos que gravam aos hidrocarburos, o dano medioambiental e os depósitos bancários. O marasmo da gestão do mecanismo de financiamento das Comunidades autónomas atribui-se a uma "autoridade fiscal independente", como se não fosse um problema político central.

Quando a culpa a tem a realidade

Estamos ante o "hundimiento da legislatura", como adverte angustiado um dos analistas mais reconhecidos da direita, José Antonio Zarzalejos? As cifras e previsões sobre o desemprego parecem, efetivamente, inasumibles socialmente. A intervenção do estado na economia via rendimentos fiscais é uma das mais baixas da UE (36,4% do PIB) -e caiu desde 2008 mais de 6 pontos, ultrapassando folgadamente no seu retrocesso o objetivo de 40%  defendido pelo anterior presidente do BdE-, e a economia submergida supera o 25% do PIB. Em frente à desculpa de Rajoy -"quem me impediu cumprir o meu programa foi a realidade"-, o diagnóstico de Zarzalejos resulta demoledor:

"o naufrágio do paquebote popular produziu-se pela combinação de três fatores: a quebra da fiabilidade política do Governo e do PP -todo o que se prometeu se incumpriu-, a comprovação da sua escassa concorrência técnica em matéria económico-social e na gestão dos interesses de Espanha na União Europeia e a ausência de um discurso político que, além de cobrir as frentes mencionadas, oferecesse resposta à crise institucional, ao fenómeno da corrupção e à precarização do modelo territorial a raiz da aposta independentista em Cataluña".

Para além do ranço "regeneracionismo" de sesgo conservador sobre a incapacidade das "elites políticas (extractivas)" (sic), importa o diagnóstico das causas, materiais e ideais, da manifesta crise da Segunda Restauração bourbónica no contexto da crise do processo deconstituínte da institucionalização ultraliberal da UE. (O leitor interessado poderá, sem dúvida, encontrar alguns elementos consultando os arquivos de SinPermiso, e, antes de mais, a nossa análise do último debate  sobre o estado da nação).

Importa, antes de mais nada, destacar o clima social em que se produz o reconhecimento do falhanço do Governo Rajoy. O conhecido barómetro eleitoral de Metroscopia de abril recolhe a queda, desde as eleições de novembro do 2011, na intenção de voto do PP: um tremendo precipício de 20% (de 44,6% a 24,5%). Por sua vez, o PSOE segue em queda livre, com um descenso de 4,3% (de 28,7% -após a perdida de 14 pontos desde 2008- a 23%). Menos difusão teve o obSERvatório do 15 de abril da Cadena Ser, que mostra não apenas a esmagadora desconfiança popular perante o bipartidismo dinástico (87%), mas também a enorme radicalização e a crescente disposição à mobilização social da opinião pública, incluída a convocação de uma nova greve geral (47%), apesar do descrédito dos sindicatos maioritários (que só recolhem um apoio de 18%, frente, por exemplo, a um espetacular 75% colheitado pela Plataforma de Afetados pelas Hipotecas encabeçada por Ada Colau).

Que margem lhe fica ao governo Rajoy? Na crise da primavera de 2012 -talvez a experiência política mais importante do que levamos de legislatura, porque determinou o repertorio de respostas das classes socialmente reitoras, dos partidos e dos sindicatos-, a resposta de Rajoy foi: "Espanha fez todo o que podia, agora toca-lhe a Europa". O Conselho europeu de junho do 2012 não só aprovou o resgate bancário, mas também permitiu a política de intervenção do BCE nos mercados secundários, evitando um segundo resgate, desta vez geral, da economia espanhola. De novo, é a constatação na UE de que é impossível que se possam atingir as suas ilusos objetivos de redução do deficit o que, somado aos efeitos da recessão na Alemanha, determinou o adiamento de dois anos; não a pressão nem a capacidade de negociação na Europa do governo Rajoy ou do resto dos governos conservadores da periferia. Patético, por dizer o menos, é a tentativa de Rajoy de apresentar as coisas como se o lucro dessa nova margem fosse mérito próprio, da sua tenacidade na aplicação das políticas de ajuste e na pontual observação das condições do memorándum. O verdadeiro é que na UE Rajoy passou de ser um suposto aliado estratégico de Angela Merkel a se converter no esforçado aluno despeitado, para terminar pretendendo-se um conspirador de capa e espada a favor de uma iniciativa comunitária para o crescimento. Nada disso é verdade, por suposto. A modesta -e ridícula- verdade consiste nisto: faz o que se lhe diz, como e quando se lhe diz desde Berlim ou Bruxelas. Mais que o guardião, é o pícaro do memorándum.

Uma hipótese de cenário político

Rajoy não gere, sobreleva a crise da Segunda Restauração bourbónica. E nesse trance, os seus principais ativos são a folgada maioria parlamentar e a falta de uma alternativa política crível programática e organizativamente, isto é, que meta o medo no corpo. Graças a esses dois ativos conseguiu esquivar o segundo resgate, pôr surdina aos cantos de sirene dos pactos de estado ou do governo de "unidade nacional" e manter a raia e dispersa a crescida resistência social. O que não conseguiu evitar é a incessante erosão da sua legitimidade eleitoral, da sua base eleitoral e da do conjunto do regime bipartidista. Também não escapou às devastadoras dentelhadas da crise financeira do estado das autonomias, nem ao destape generalizado da corrupção, que é, sobretudo, manifestação da rutura do consenso hegemónico das classes reitoras do capitalismo oligopólico de amiguetes politicamente promiscuos da Transição. Nem, menos, ao inopinado estalido do secessionismo catalão, manifestação inequívoca da crise da monarquia e da sua inveterada incapacidade para encontrar soluções hacederas -fundadas na autodeterminação- para a livre vertebraçao democrática dos povos de Espanha. Lidar com qualquer destes peremptórios assuntos precisa de iniciativa vigorosa e ágil; não digamos enfrentar-se a todos eles de consuno. Ínsito, em troca, na natureza do governo Rajoy parece estar o mais inane dos inmovilismos. Talvez o exemplo mais fatal dessa passividade seja a sua total despreocupação respeito do processo de normalização social e política em curso no País Basco, e a tal ponto, que começa a peligrar o processo unilateral de pacificação. Procura-se, nem que dizer tem, compensar essa parálise política prática com verborreia atrabiliária e guerras culturais ao estilo zapateril: como se o único que lhe ficasse ao governo Rajoy fosse atizar o fogo da polarização ideológica dos seus votantes mais extremistas. Não outro é o triste e evidente papel da contrarreforma da Lei do Aborto impulsionada pelo ministro de justiça Gallardón.

No ano que temos por diante, até as eleições europeias, será decisivo. No terreno social, a "avaliação" e ampliação da reforma laboral, bem como o novo atraso na idade de aposentação, obrigarão, queiras que não, a CC OO e UGT a convocar uma nova greve geral. Pelo que se refere à crise financeira das autonomias, que em boa medida é a do "estado do meio-estar" espanhol, a tensão da negociação em torno do translado assimétrico às autonomias da nova margem de deficit (de 0,7% ao 1,2%) concedido ao Reino de Espanha pela UE não só criará graves tensões entre as comunidades governadas pelo PP, senão que obrigará ao governo PSOE-IU andaluz a uma maior e mais pugnaz confrontação  e muito provavelmente terminará bloqueando o jogo de alianças assimétricas de sobrevivência ensaiado pela Generalitat de Mas com ERC e PSC, obrigando à convocação de eleições antecipadas em Catalunya. No tocante à cúspide institucional coroada, a provável condenação de Urdangarín e o seu sócio, depois da imputação da Infanta Cristina, fará inevitável a abdicação do monarca, as bases legais da qual já se negociam mais ou menos discretamente entre os dois principais partidos dinásticos. As eleições europeias, proporcionais em uma só circunscrição, suporão um duríssimo voto de castigo tanto para o PP como para o PSOE, o que verisemelhantemente contribuirá a acelerar a crise da Segunda Restauração.

Neste cenário de crise a cada vez mais evidente de todo o regime político monárquico de 1978, a estratégia sindical de CCOO e UGT -resumida nos seus manifestos para o 1 de Maio- passa essencialmente pela defesa de um programa mínimo que alargue a margem concedida pela UE, para dar cabida à fórmula de um Pacto pelo Emprego e relançar a negociação dos convénios coletivos, muitos dos quais caducam no próximo mês de junho. Ao próprio tempo, faz-se questão da necessidade de manter o processo de agregado de forças cidadãs da Cimeira Social, verisemelhantemente para carregar-se de razões face a uma greve geral que prevêem tão inevitável como crescentemente difíceis as condições sociais em que terá de se realizar (com uma população trabalhadora desmoralizada por uma desocupação sustentada sem exemplo histórico e com umas organizações sindicais maioritárias que não conseguem romper o descrédito ante a opinião pública que recolhem os inquéritos). Neste sentido, a maioria sindical basca e outros sindicatos convocaram na Comunidade Autónoma Vascã e em Navarra uma greve geral para o próximo 30 de maio. Os sindicatos maioritários deixaram cair no esquecimento, no pior momento, o que não faz tanto pareceram ter começado a compreender, e é a saber: que sem uma alternativa política realista e unitária, que passaria hoje mesmo por uma campanha de mobilizações cidadãs para forçar o despedimento do governo Rajoy e a convocação de eleições antecipadas, o ciclo de resistência social choca com os limites objetivos da deslegitimada maioria absoluta do PP e do tenebroso rueiro sem saída a que conduz a estéril estratégia de "unidade nacional" ou mera alternância bipartidista do PSOE de Rubalcaba.

A esquerda política federal, IU e ICV, e a esquerda soberanista (EH Bildu, Anova, CUP, bem como setores de ERC e Compromís) começou a situar na perspetiva, mais realista, de um incerto processo destituyente de fim de regime. Compreender isso é, ao menos, o primeiro passo para se propor uma contraofensiva constituinte: só essa contra-ofensiva -ou sendo realistas, o horizonte, a promessa, dela- poderia dar sentido, esperança, unidade e vertebração política à miríade de mobilizações sociais (incluídas as sindicais) mais ou menos dispersas e mais ou menos espontâneas que vão se acumulando de modo crescente, com radicalidade crescente, com raiva crescente e, ai!, com desespero crescente. Longe do narcisismo onanista das cabeças de rato, longe das ilusas e fatigantes intrigas manipulatórias da sectícula política de turno, essa perspetiva precisa de algo mais que alentar a resistência; precisa peremptoriamente a articulação unitária de um amplo bloco político, social e intelectual alternativo que, hoje por hoje -reconheçamo-lo-, não termina de arrancar.  

É iluso pensar que a distância entre o timorato programa mínimo avançado agora pelos sindicatos maioritários e a incipiente aspiração a um programa de tipo constituinte das esquerdas alternativas e soberanistas é só ideológica, ou só de entendimento política do momento. Essa distância responde em boa parte também às diferentes condições objetivas em que desenvolvem a sua atividade. Compreender isso tem que ajudar a sair da mera denúncia moral (ou hipermoral) estéril, para começar a tender pontes através da mobilização e da coordenação unitária territorial, que adota já diversas formas.

À medida que cresça a polarização social e política induzida pela crise, fá-se-á mais evidente o dilema entre o projeto da pseudorreforma constitucional limitada que hoje propugnam o PSOE de Rubalcaba e setores da direita --um projeto incapaz de frear o perigrosísimo processo deconstituíente em curso--, e o das forças sociais e políticas que trabalham em uma contra-ofensiva republicana constituinte. Seja isso como for, as possibilidades dessa pseudorreforma constitucional que fantaseia com conter o descalabro da Segunda Restauração dependem crucialmente de que os partidos dinásticos, sinaladamente o PP e o PSOE, seguam tendo a maioria institucional de 2/3 necessária. É o mais provável que a sua legitimidade entre em processo de erosão irreversível com as eleições europeias de 2014 e as autárquicas e autonómicas posteriores. O que a estas alturas cota como seguro é que as eleições gerais de 2015 porão fim à maioria política do regime bipartidista. Para então, o desemprego pode rondar já o 30%. E não valerão as médias tintas.

28/11/2012

25N: porque foron tan importantes as eleccións catalás

Antoni Domènech, G. Buster e Daniel Raventós para SinPermiso (aquí) con tradución ao galego de À revolta entre a mocidade, blogue de pensamento e información críticas.


"O fulgurante crecemento nuns poucos meses do soberanismo e o independentismo no outrora 'oasis catalán' non pode entenderse sen entender estas dúas cousas interrelacionadas: a crise da Monarquía de 1978 e a crise do nacionalismo españolista tradicional, crises asombrosamente aceleradas pola desintegración a cámara lenta dunha Eurozona neciamente deseñada e a pésima xestión do problema polos incompetentes burócratas da Troika. O independentismo catalán -e moi sinaladamente, o independentismo parvenu de CiU- parasita de ambas as crises."

Si: eran só unhas eleccións "rexionais" nun país mediano metido en todo tipo de problemas, un Reino de España situado nun espazo continental política e economicamente decadente, Europa. Unhas eleccións, encima, ás que, tradicionalmente, os propios electores cataláns tiñan pouco menos que volto as costas, castigándoas cada vez máis con elevados índices de abstención. Estas de o 25 N, con todo, cautivaron inopinadamente a atención da grande prensa española e internacional, desde El País e El Mundo, até o Spiegel, o Guardian, o New York Times e o Financial Times. Un analista tan experimentado como o constitucionalista Javier Pérez Royo chegou a falar "das eleccións máis importantes" desde o comezo da Segunda Restauración borbónica. No tocante aos propios interesados, os cataláns, ninguén esperaba esta vez unha abstención elevada, senón todo o contrario. E así foi: cunha participación en torno ao 70%, bateron os rexistros de participación de 1984.

Un triunfo "excepcional" claro, e non digamos unha vitoria con maioría absoluta de Artur Mas sería unha noticia de dimensión internacional, aínda que só fóra por isto: sería a primeira vez que o presidente dun goberno terca e incompetentemente empeñado nunhas catastróficas políticas pro-cíclicas de austeridade fiscal, lonxe de recibir un grande castigo popular nas urnas, o que obtería é un premio, e aínda un grande premio. Moitos o esperaban, e a cousa non tiña exemplo histórico. Non foi así: Artur Mas e as fanáticas políticas procíclicas de austeridade, recortes dos dereitos sociais e consolidación fiscal do mediocre "govern dels millors" recibiron un durísimo castigo electoral co que nin os seus peores detractores podían soñar; lonxe de manterse ou aínda de mellorar, CiU perdeu douscentos mil votos (cunha abstención moito menor!) e 12 deputados, é dicir, preto do 20% dos votos en termos absolutos e do 20% dos escanos. En termos relativos, pasou do 38,43% de 2010 ao 30,68 actual, o seu peor resultado en décadas. Outro tanto lle ocorreu ao outro partido bastión do sistema político catalán, un PSC en tumba aberta cara á pasokización: a suma de ambos roldaba tradicionalmente os ¾ do electorado; agora apenas representan o 50%.

Mais fixo un adianto electoral, a só dous anos de gañar as eleccións autonómicas, alegando escoitar o "clamor popular" expresado na grande manifestación soberanista -"Cataluña, novo Estado de Europa"- do pasado 11 de setembro, seica a máis masiva rexistrada nunca na cidade de Barcelona. Fora xordo até entón ao clamor popular de protesta contra as súas crueis políticas de recortes, contra a súa descarnada ofensiva destrutora de dereitos sociais conquistados, contra a corrupción do seu partido -sería o primeiro caso na historia en que un partido de goberno convoca eleccións coa propia sede embargada por un caso de corrupción que lle salpica de cheo-, contra as descaradas políticas de privatización, aberta ou encuberta, en sanidade, educación e infraestruturas públicas. Ese clamor popular contra as súas catastróficas políticas económicas e sociais tivo unha formidábel expresión na xornada de Folga Xeral do pasado 14 N, cun Mais xordo tratando de mirar para outro lado.

Isto é o que se pode dicir agora: o 14 N frustrou a manipulación conservadora do 11 S. Se se quere dicir doutro xeito: corrixiu, precisándoo, o seu significado. Non hai tal cousa como un "dereito a decidir" nacional de Cataluña que poida facerse politicamente viable á marxe ou independentemente dun proxecto económico e social claramente enfrontado ás políticas de consolidación fiscal de Madrid, de Berlín e de Bruxelas. O 14 N fixo evidente que o sobrevindo soberanismo de Mais era, no mellor dos casos, fume obnubilante para seguir coas súas políticas socialmente catastróficas, e no peor, unha tapadeira para un proxecto de Cataluña á medida das elites rendistas politicamente promiscuas da súa contorna. 

É evidente. Non o era tanto hai só uns días, a xulgar polas falsas trivialidades que chegaron a gozar de ampla difusión. A primeira, a dun electorado catalán pouco menos que borreguil. Pois a menos que se aceptase esta antipática hipótese, non pode entenderse que se cotizase como practicamente segura -en Madrid, non menos que en Barcelona, en Nova York e en Berlín- unha vitoria electoral clara do nacionalismo catalán conservador propiciada -como factor decisivo- pola manipulación identitaria do Govern liberal-conservador a través dos seus considerábeis tentáculos publicísticos, públicos e privados. Tampouco era de crer que puidese influír decisivamente, nun ou outro sentido, a grotesca campaña difamatoria con que a caverna mediática madrileña -tan evidente como torpemente sostida polo Goberno do Reino- conseguiu enlodar o fin de campaña (como moito, conseguiría recrutar para a causa independentista ao irredutíbel señor Durán Lleida...). Tanto menos resultaban críbeis esas varias hipóteses manipulatorias, canto que o peso electoral das forzas partidarias do "dereito a decidir" (que inclúen á esquerda e ao centroesquerda inequivocamente partidarios do dereito de autodeterminación, aínda que non necesariamente independentistas) resultaba abafador. E tras unhas eleccións que bateron todos os rexistros de participación, ségueo sendo: preto de dous terzos do electorado. Se a isto último se obxectase -na liña da desmemoriada pseudoesquerda "cosmopolita" postmoderna que brotou nas últimas décadas da man da ideoloxía da "globalización"- que a esquerda política catalá realmente existente actual foi ignominiosamente abducida polo nacionalismo catalanista, bastaría lembrar que a tradición histórica do movemento obreiro catalán está estreitamente ligada ao catalanismo e aínda ao separatismo, en variantes tan distintas como as representadas polo Noi do Sucre, [1] Maurín ou Comorera.

Tampouco era recibíbel a moi manida "hipótese padana", segundo a cal o cruel azoute da crise económica inducira subitáneamente ao groso da poboación catalá, coa súa malvada alta burguesía na cabeza, a unha deriva de egoísmo nacionalista insolidario, convencida -erroneamente, ou non- de que unha rexión rica e exportadora pode afrontar a peor crise económica capitalista desde os anos 30 mellor en solitario que cargando co lastre dunha España atrasada e farto menos competitiva internacionalmente. Non se entende moi ben entón porque o suposto modelo orixinal -Padania- fracasaría, por que sería ampla e fulminantemente superado polo seu pretendido sucedáneo catalán. Iso, á parte de que non está nada claro que a "alta burguesía" catalá apoie a secesión: basta lembrar o cartón amarelo que sacou Mais na soada entrevista concedida hai unhas semanas a La Vanguardia; a mensaxe non podía ser máis claro: non é o país o que debe adaptarse aos grandes empresarios, senón estes a o país.

Tampouco era moi feliz a outra comparación, máis do gusto dos nacionalistas, con Quebec: Quebec está netamente diferenciado do resto do Canadá, polo momento en materia lingüística e relixiosa. A lingua absolutamente imperante en Quebec é o francés, fronte a un Canadá homogéneamente anglófono; a relixión absolutamente dominante entre os quebequois é a católica, fronte ao cristianismo homogéneamente reformado do Canadá. Baste lembrar, como índice de heteroxeneidade (e interpenetración política, familiar e cultural), que a maioría dos cataláns ten o castelán como lingua materna ou preferida (un 60%).

Máis interesante, aínda que non moito máis feliz, foi a habitual comparación con outro tipo de "nacionalismo egoísta", o flamenco. Bélxica é en varios sentidos un país artificial, que existe aínda só porque o imperialismo británico frustrou ao terminar a II Guerra Mundial o desexo dos valones francófonos de unir o seu destino ao da IVª República francesa. Para conservar á forza unido a ese país foi preciso manter a forma monárquica de Estado, impondo, encima, a (os entón pobres e agora ricos) flamencos e a (os entón ricos e agora pobres) valones unha dinastía de máis que dubidoso comportamento durante a ocupación nazi, por non falar do seu pasado colonial genocida no África central.

A forma monárquica de Estado foi imposta tamén en España ao final da ditadura de Franco coa axuda e aínda a presión de potencias estranxeiras, singularmente dos EEUU, como documentou amplamente hai anos o noso amigo Joan Garcés nos seus clásico Soberanos y intervenidos (Madrid, Século XXI, 1996). Non era nin moito menos maioritario, nin en Cataluña nin no País Vasco, o sentimento independentista, por suposto -Cataluña e País Vasco non son o Quebec!-, nin menos, a diferenza dos valones francófonos belgas, pedía ninguén unirse á V República francesa. O groso das forzas políticas de oposición ao franquismo (e particularmente os varios partidos socialistas entón existentes e o PCE) estaban a favor de resolver o problema da plurinacionalidade das Españas -como adoitaba dicirse entón- mediante o exercicio do dereito de autodeterminación. Ese dereito caeu vítima da aceptación da Segunda Restauración borbónica polo groso da esquerda política socialista e comunista de entón: os comunistas e os seus sucesores de EU mantivérono de forma puramente retórica nos seus programas, e os socialistas do PSOE e do PSC, simplemente, borrárono e esquecéronse do asunto. Iso trouxo como resultado o enquistamiento do problema, e abriu, como é suficientemente sabido, un amplo abanico de posibilidades políticas ao ambiguo nacionalismo conservador catalán -que, a diferenza do vasco, avalara a Constitución monárquica de 1978-: un país, Cataluña, que en 1978 estaba abrumadoramente hexemonizado pola esquerda política obreira, caeu en moi poucos anos en mans do nacionalismo burgués conservador, que se perpetuou no poder autonómico durante máis de dúas décadas seguidas. O certo é que o arco constituínte formado por socialistas, (post)comunistas e nacionalistas cataláns conservadores veu aceptando na práctica durante anos a negación do dereito de autodeterminación de Cataluña. Pero é moi importante comprender que o que este tres familias políticas do arco constituínte aceptaran en Cataluña, o País Vasco e Galiza, o tiveran que aceptar  como parte dunha renuncia previa e de maior envergadura, e é a saber: a renuncia ao do dereito de autodeterminación de todos os pobos das España, do conxunto do que o torpe nacionalismo español reaccionario chama agora "o pobo soberano de España".

Véxase así: por que foi tan difícil de aceptar até agora polas forzas do arco constituínte da Segunda Restauración -entre elas, CiU- a posibilidade do exercicio do dereito de autodeterminación? Fagamos retrospectiva, e figurémonos: se, por exemplo, entre 1978 e 1980 se realizase un referendo de autodeterminación no País Vasco, con todas as garantías democráticas -observadores e mediadores internacionais incluídos-, o resultado máis probábel sería o fin do problema terrorista que martirizou vesanicamente a bascos e españois durante décadas, e con toda seguridade, unha decisión popular netamente anti-secesionista. Por que non foi posíbel? Porque o dereito ao exercicio da autodeterminación da poboación de calquera territorio do Reino é estritamente anticonstitucional. E por que o é? Por que o comunista Solé Tura, o socialista Peces Barba e o nacionalista conservador catalán Miquel Roca -e non só o franquista Fraga-, relatores constitucionais, puxeron tanto empeño en que o fose? Porque o exercicio do dereito de autodeterminación de calquera territorio das Españas é incompatíbel cunha Monarquía imposta -era unha oferta que non se podía rexeitar- sen referendo previo ao conxunto dese "pobo español soberano único" con que agora enchen a boca os reaccionarios do PP (e os da á de extrema dereita babosamente monárquica "socialista"); porque a celebración legal dun referendo de autodeterminación en Cataluña, ou no País Vasco (ou en calquera outro territorio), a súa soa celebración, fora cal fora o resultado, poría de novo inmediatamente na axenda política española o problema da forma monárquica de Estado, e de maneira particularmente tormentosa agora, no peor momento desta institución, cunha familia real totalmente desacreditada, salpicada como está por todas as porcalladas habituais do capitalismo oligopólico español da burbulla e os amiguiños e rendistas politicamente corruptos.

O fulgurante crecemento nuns poucos meses do soberanismo e o independentismo no outrora "oasis catalán" non pode entenderse sen entender estas dúas cousas interrelacionadas: a crise da Monarquía de 1978 e a crise do nacionalismo españolista tradicional, crises asombrosamente aceleradas pola desintegración a cámara lenta dunha Eurozona neciamente deseñada e a pésima xestión do problema polos incompetentes burócratas da Troika. O independentismo catalán -e moi señaladamente, o independentismo parvenu de CiU- parasita de ambas as crises.

Con que rostro e con que crédito poden PP e PSOE oporse ao "dereito a decidir" de Mais e falar de que é o "pobo español" no seu conxunto o que ten "dereito a decidir", dous partidos que nos seus respectivos gobernos incumpriron flagrantemente os seus programas electorais e renderon abertamente e sen recato a imposicións estranxeiras os intereses máis elementais do "pobo español soberano" e da pretendidamente sacrosanta "nación española"? Con que rostro e con que crédito poden negarse agora a un referendo de autodeterminación apelando a unha Constitución monárquica inviolábel que, con todo, non tardaron nin unha semana en deshonrar eles mesmos en agosto de 2011 coa reforma express "suxerida" polo BCE e a señora Merkel, reforma que trae consigo unha auténtica blindaxe das políticas fiscais pro-cíclicas economicamente suicidas, e aínda porriba, excluíndo do pacto que a alumou, ai!, a forzas políticas básicas do orixinal arco constituínte monárquico de 1978, como EU-ICV e CiU.

É posíbel que Artur Mas acertase no diagnóstico que parece andar por detrás da súa audacia: estamos no comezo do fin da Segunda Restauración borbónica; "agora ou nunca" era o mantra repetido unha e outra vez en privado polos altos cargos de Convergència a quen lles quixese escoitar.  Porén o que levou a Mais onte, 25 de novembro de 2012, á morte política súbita foi a parcialidade do diagnóstico, así como o pésimo prognóstico que lle ofreceron en bandexa os seus turiferarios mediáticos e os seus incompetentes economistas de cámara: Cataluña non pode exporse ser un "Estado europeo" propio -nin sequera o exercicio libre do dereito de autodeterminación como pobo europeo- ignorando a realidade dunha Unión Europea actualmente dominada por forzas políticas, tecnocráticas e burocráticas que, obscenamente hostís á democracia e á soberanía de todos os pobos de Europa, empuxan ao vello continente ao abismo do políticas pro-cíclicas de austeridade e desmantelamento do estado Social e Democrático de Dereito -a máis duradeira conquista do antifascismo europeo-, e con elas, ao suicidio económico e á irrelevancia política internacional.

Dígase así: a crise do réxime constitucional monárquico español e a crise da Eurozona son dúas caras da mesma moeda. Esa é a crúa realidade. E hai que dicir, con máis tristeza que acrimonia, que non ven moitas forzas políticas nominalmente de esquerda en Cataluña que comezasen a comprendela. O PSC, que sufriu unha nova desfeita (perdeu tanto porcentaxe de votos e de escanos como CiU, mais partindo xa do que era até agora o seu peor resultado electoral) nin sequera comprendeu que estamos nun fin de traxecto da Segunda Restauración borbónica, por non falar da súa incomprensión dos problemas da Eurozona. ERC, que máis que dobrou os seus resultados en relación con 2010, é unha forza política agora mesmo dominada por dirixentes máis nacionalistas à la Hortalà que de esquerda à la Carod nalgún sentido socialmente interesante. A refrescante e en moitos sentidos ilusionante irrupción da CUP no Parlament, non pode facer esquecer a súa incipiencia programática en puntos decisivos ("Non á UE", "Països Catalans", etc.), e a súa escasa incidencia nas zonas obreiras tradicionais do primeiro cinto industrial de Barcelona.

A única forza que parece por agora comezar a comprender cabalmente esas amargas e perentorias verdades do momento é ICV-EUiA. O mitin final de campaña de Herrera e Nuet con Tsipras, o principal dirixente da esquerda radical grega Syriza, contribuíu seguramente o seu ao notábel crecemento da coalición, dando unha necesaria dimensión europea ao seu proxecto político, presentándoa ante o electorado como a única forza política catalá non freguesa. Converteuse xa por méritos propios na principal referencia político-parlamentaria dos sindicatos obreiros. E se se observan con atención os seus resultados electorais no cinto industrial de Barcelona, vese que empezou a recuperar en serio o voto obreiro que se foi hai décadas cara ao PSC. Esa recuperación por parte de ICV-EUiA do voto obreiro perdido polo PSC impediu verosemellantemente tamén a súa fuga masiva cara ao españolismo de dereita e de centro-dereita do PP e dun espectacularmente emerxente Ciutadans, que triplicou os seus resultados

Non sempre é verdade o vello proverbio latino, segundo o cal fortuna adiuvat fortes, a fortuna axuda ao audaz. Para que axude a fortuna, a audacia ten que dispor polo menos dun bo diagnóstico: por iso axudou a Siriza e afundiu a Mais. Esperemos que a Syriza catalá teña audacia; de momento, o que se pode dicir é que o seu máis verosemellante embrión dispón dun diagnóstico decente. [2]

NOTAS :

[1] O Noi del Sucre, era o secretario rexional da CNT. Nun soado discurso en Madrid, en 1919, deixou ditas estas palabras: "Unha Cataluña liberada do Estado español asegúrovos, amigos madrileños, que sería unha Cataluña amiga de todos os pobos da Península Hispánica e sospeito que os que agora pretenden presentarse como os líderes do catalanismo, temen un entendemento fraternal e duradeiro coas outras nacionalidades peninsulares." 

[2] Na valoración que ao día seguinte das eleccións fixo ICV-EUiA, destácase a necesaria unidade coas CUP porque se trataría dunha organización que defende unha política de esquerdas, non igual, mais moi semellante á de ICV-EUiA. [de feito, ofrecéronlle axuda para ter grupo parlamentar ás Candidaturas de Unidade Popular (CUP); nota de ÀRM]. Doutra banda, pódese observar que, a causa a actual lei electoral, a relación votos-deputados é moi desproporcionada. Os partidos que menos votos tiveron que conseguir por deputado son CiU (22.000) e ERC (23.000), e o que máis, case o dobre, precisamente as CUP (42.000). ICV-EUiA rolda os 32.000. [Na Galiza a proporción é moito máis lesiva. Téñase en conta que o PP perdeu en Galiza máis votos que CiU en Catalunya, sen ir máis lonxe; nota ÀRM].