24/03/2014

Reino de Espanha: Marchas da Dignidade em "terra de ninguém"?

Antoni Domènech, G. Buster e Daniel Raventós. Artigo tirado de Sin Permiso (aqui).

"O conceito de mal menor é um dos mais relativos. Enfrentados a um perigo maior que o que antes era maior, há sempre um mal que é ainda menor embora seja maior que o que antes era menor. Todo mau maior se faz menor em relacionamento com outro que é ainda maior, e assim até o infinito. Não se trata, pois, de outra coisa que da forma que assume o processo de adaptação a um movimento regressivo, cuja evolução está dirigida por uma força eficiente, enquanto a força antitética está resolvida a capitular progressivamente, a trechos curtos, e não inesperadamente, o que contribuiria, por efeito psicológico condensado, a dar a luz a uma força contracorrente ativa ou, se esta já existisse, à reforçar." [Antonio Gramsci, Quaderno, 16 (XXII)]





A entrada em Madrid das Marchas da Dignidade e o caloroso acolhimento popular convertida em uma "gigantesca manifestação" -como a qualificou Le Monde- que bloqueou todo o centro da cidade vieram em um momento que não podia ser mais oportuno. Em um momento de desgaste, de cansaço, de fartura e -sejamos claros- de desmoralização profunda e crescente de um povo trabalhador cruelmente castigado durante seis anos pela crise, um desemprego operário pior que o da Grande Depressão e umas pérfidas políticas procíclicas de ajuste fiscal, desvalorização salarial, contração sem precedentes da despesa social e contrarreforma reacionária do direito laboral democrático. O indubitável sucesso das marchas -às que não deixaram de fazer vazio e pôr vergonhosamente surdina os grandes meios de comunicação do Reino (todos em mãos da banca privada, todos financeiramente dependentes da publicidade institucional pública)- veio a recordar-nos a todos a enorme capacidade de mobilização solidária que ainda existe, o potencial de raiva, indignação e cólera popular que ainda é capaz de se expressar organizadamente na rua. O Manifesto das Marchas não podia o ter dito melhor: vivemos em "uma situação extremamente difícil, uma situação limite, de emergência social, que nos convoca a dar uma resposta coletiva e em massa da classe trabalhadora, a cidadania e os povos".

Essa convocação, como explicou em SP Carlos Martinez, um dos seus coordenadores andaluzes, nascia desde a confluência de experiências de combate muito variadas, como as marchas e ocupações de terras de jornaleiros da CUT, do Acampamento da Dignidade de Cáceres, das concentrações contra os desafiuzamentos da PAH, das marés cidadãs, das margens críticas e contestatários do movimento operário organizado mas em primeira linha da resistência social contra as políticas de ajuste. Superando as divergências inevitáveis que nascem de experiências tão diferentes e duras, de inveteradas confrontações setarias de pequenos aparelhos, minúsculas vaidades e ínfimas raposarias, os milhares de participantes das diferentes colunas das Marchas sobre Madrid vieram a converter em um catalisador euforizante para a mobilização de centos de milhares de pessoas que viraram nelas a sua solidariedade. Também -ou isso pode razoavelmente conjeturar-se- depositaram nelas renovadas esperanças em uma luta unida capaz de pôr travão e talvez começar a reverter as catastróficas políticas dimanantes do "Consenso de Bruxelas" às que -em aberta violação de todas as suas promessas eleitorais- terminaram subordinando-se o Governo de Rodríguez-Zapatero e Rubalcaba, primeiro, e o de Rajoy, depois.

Dessa capacidade de fermento e solidariedade, de posta em comum de lutas dispersas e ainda isoladas em um grande frente de resistência coordenada, depende em definitiva a existência de uma esquerda social e política organizada merecedora de tal nome. Uma esquerda social e política, por lembrar-nos de um clássico, "que realiza a sua agitação sem trégua nem descanso " (F. Lassalle). Convém recordá-lo especialmente agora que as esquerdas sociais se encontram no nosso país ante uma disjuntiva que ficou resumida nestes dias em duas imagens: a das Marchas da Dignidade, uma; e outra, a patética imagem -não há palavra mais certeira para a descrever- do encontro em Moncloa dos secretários confederais Cándido Méndez (UGT) e Ignacio Fernández Toxo (CC OO) com Rajoy e o representante da patronal para publicitar o "relançamento do diálogo social".

Uma disjuntiva não é necessariamente excluiente: é verdade que sem a solidariedade dos milhares de filiados de base de CCOO e UGT, e ainda dos próprios aparelhos sindicais, as Marchas da Dignidade não poderia chegar a Madrid nem ter sido acolhidas por centos de milhares de pessoas. Mas é uma disjuntiva que obriga a discutir que orientação política deve seguir o conjunto dos movimentos socialmente resistentes ao programa de contrarreformas "austeritárias" em curso. E que obriga a discutir em momentos de refluxo, fartura generalizada e desmoralização, já se disse; mas em portas, ademais, de um longo ciclo eleitoral que, após as europeias, autárquicas e autonómicas vindouras a partir de 25 de maio, e sem se esquecer do crucial referendo de autodeterminação convocado para o 9 de novembro próximo em Catalunya, fará coincidir no tempo as eleições gerais de 2015 com as eleições sindicais de 2015-16.

E como toda a discussão destas características, tem que partir de um balanço do ciclo das mobilizações contra as políticas de austeridade desde 2010, da estimativa da correlação de forças sociais e da ideação de perspetivas políticas. E não só no tocante ao Reino de Espanha, senão no enquadramento da União Europeia, que é onde se produz a confrontação politicamente determinante com os programas de contrarreforma autoritária dimanantes do "Consenso de Bruxelas".

Não parece que as diferenças se deem quanto à estimativa da capacidade de mobilização social. Constata-se, sim, a deslocação parcial do local da resistência social, desde os centros produtivos aos espaços da reprodução social, o que não é senão consequência natural de umas taxas de desemprego superiores a 26% -por volta de 60% entre os jovens-, da terciarização do mercado laboral, da enorme precarização e da crescente redução da negociação coletiva. A partir dos dados sobre conflitividade laboral do Ministério de Trabalho e da patronal CEOE, Daniel Lacalle e Miguel Sanz Alcántara, por reduzir-nos a dois autores, vieram a confirmar o que é uma experiência social coletiva, e é a saber: que os trabalhadores resistem ativamente; e que quando são convocados a isso de maneira coordenada, o fazem em massa. Os topos de atividade dessa resistência em 2010 e 2012 assim o constatam: quando, além de movimentos cidadãos como o 15-M, teve as greves gerais de setembro de 2010, e as de março e novembro de 2012, além das oito convocadas no País Basco desde 2009.

Ramón Górriz, secretário de ação sindical de CCOO, resumiu assim a atual posição do seu sindicato no "relançamento do diálogo social": "Uma estratégia com a que pretendemos atingir resultados e não nos ficar na mera contestação das políticas empresariais e governamentais". recordou que "os trabalhadores e trabalhadoras não podem esperar enquanto criticamos a ação do Governo só com mobilizações. Nós estamos na rua para fazer patente a nossa rejeição às políticas de recortes e reformas; mas também temos que procurar soluções aos problemas da gente e sobretudo para os coletivos que mais estão a sofrer os efeitos da crise".

E o órgão de CCOO, a Gaceta Sindical, voltava a dizê-lo com palavras não tão diferentes, mas servindo de uma metáfora reveladora: "Uns sindicatos sem capacidade de transformar em diálogo e acordo os seus processos de reivindicação e mobilização correm o risco de perder a sua condição de ferramenta útil para defender os interesses dos trabalhadores. Nesta terra de ninguém permaneceram o governo e os agentes sociais nos últimos quatro anos: uns governando de costas à imensa maioria dos cidadãos; outros ativando uma agenda de mobilização e ação reivindicativa, tão justa e necessária, sem resultados concretos".

No entanto, essa pretendida "terra de ninguém" já está precisamente ocupada pela iniciativa social e política da direita neoliberal de um PP que aplicou os termos do resgate do setor bancário e as políticas de austeridade com a determinação e a ferocidade dos convencidos, como recorda Rajoy quando se lhe acusa de atuar ao ditado da Troika. Se Rajoy convocou a CCOO e UGT à Moncloa o 18 de março, após ignorar a ambos sindicatos durante a primeira metade da legislatura -até o ponto de ter que atuar Merkel de mediadora para alentar os primeiros contactos- não é porque esteja disposto a fazer a menor concessão nas suas políticas de austeridade e contrarreformas, sobretudo quando a Troika (Comissão, BCE, FMI) lhe faz questão de uma "segunda volta de porca" para cumprir os objetivos do deficit marcados, senão porque está rearticulando a sua estratégia.

Ante o longo processo eleitoral que agora se abre, Rajoy precisa recuperar certa paz social que lhe permita dar verosimilhança à sua falsária e monolemática mensagem de "recuperação económica". E fazer chegar essa mensagem, sobretudo, àqueles setores sociais que, mais que por sofrer as consequências sociais da crise, possam estar prontos à ação por medo a essas consequências, por pânico a perder a proteção social que supõe o amparo da negociação coletiva. Os mais de 14 pontos perdidos pelo PP nas suas expectativas de voto, e a falta de horizontes reais de criação de emprego, para além da extensão da precariedade em um ou dois pontos do desemprego registado, não auguram precisamente uma recuperação política de maioria social conservadora. Mas um ou dois pontos sim podem determinar a política de alianças para um governo de coligação com outras forças políticas da direita, como UPyD e regionalistas vários. E podem, sobretudo, determinar qual seria a força maioritária em um governo do "Consenso de Bruxelas", um governo PP/PSOE capaz de bloquear qualquer possibilidade de transladar a um governo de coligação de esquerdas a resistência social acumulada neste período.

Por conseguinte, em resolução, a disjuntiva fundamental nesta discussão incoada, talvez mais tácita que explícita, tem que ver com perspetivas políticas, mais que com diferentes estimativas dos relacionamentos de força.

As Marchas da Dignidade, como os outros movimentos sociais que vieram desenvolvendo no nosso país desde o 15-M -incluídos os movimentos populares pelo "direito a decidir" de Catalunya e o País Basco- apontam claramente a uma estratégia de agregado de forças sociais que, de um ou outro modo, desembocaria em mudanças eleitorais bastante radicais e muito possivelmente em uma nova maioria de esquerdas. De safrar-se politicamente esta última, necessariamente abriria um lanho ruturista no statu quo político e económico herdado da Transição, incluídas os relacionamentos com Bruxelas e Berlim.

Em mudança, a recuperação do "diálogo social" proposta por CC OO e UGT depois da reunião do 18 de março é, inconfundivelmente, a enésima manobra tática do "mal menor": ganhar tempo e tentar frear alguns das feições mais agressivas da "segunda volta de porca" das devastadoras políticas de austeridade aproveitando na negociação a perentória necessidade de paz social neste longo ciclo eleitoral que tanto vai exigir ao PP. Agora bem; deixando de lado (por agora) as consequências mais desmoralizadoras para as suas próprias bases sociais e o provável aumento do descrédito público que vai acarretar às atuais direções dos sindicatos operários maioritários, há que saber que esta tática, de triunfar, não pode aferrar-se, e isso no melhor dos casos, a outra perspetiva política que a de um governo de Grande Coligação do bipartidismo dinástico que respeite no essencial o "Consenso de Bruxelas". Como a atual Grande Coligação na Alemanha.

Queridos e respeitados amigos, amigas, parceiras e colegas sindicalistas: voltem-no a pensar!

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