06/01/2014

2008-2013: cinco anos de queda da sociedade ocidental e o que não aprendemos da Crise Financeira Global de 2008

Randall Wray. Artigo traduzido para o castelhano por Miguel de Puñoenrostro desde http://www.economonitor.com/lrwray/ (15-12-2013) para SinPermiso (aqui) e traduzido desde lá por nós para À revolta entre a mocidade (05-01-2014). O autor do texto, Randall Wray, é um dos analistas económicos mais respeitados dos EUA. Escreve habitualmente em New Economic Perspectives e em Economonitor.com. Aliás, é professor de economia na University of Missouri-Kansas City e investigador no Center for Full Employment and Price Stability. Também foi presidente da Association for Institutionalist Thought (AFIT) e formou parte do comité de direção da Association for Evolutionary Economics (AFEE). Randall Wray consagrou muito tempo ao análise de problemas de política monetária, macroeconomia e políticas e pleno emprego sendo autor de numerosos livros: Understanding Modern Money: The Key to Full Employment and Price Stability (Elgar, 1998) ou Money and Credit in Capitalist Economies (Elgar, 1990).


Hoje falarei das lições que deveríamos ter aprendido da Crise Financeira Global (CFG) e não aprendemos. E assim estamos, com cinco anos de queda da sociedade ocidental às costas.

E sim, leram vocês bem. A crise financeira ficou atrás. Falarei disso nos próximos dias. Mas antes de falar do futuro, comecemos passando uma breve revista ao passado recente.

Para Washington e Wall Street (há alguma diferença?), a CFG não é mais que uma lembrança remota. As dezenas de biliões de dólares (sem o menor exagero) comprometidos pelo Tio Sam para resgatar aos bánksters constituíram, assegura-se-nos, um grande sucesso. A participação de Wall Street no conjunto dos benefícios empresariais volta a ser superior ao 40%. Aos ricos vai-lhes de maravilha, obrigado. A nossa classe na elite anda cheia de remunerações, benefícios, opções de ações e primas. De acordo com um novo estudo assinado por Andrew  Sum, Ishwar Khatiwada, Joseph McLaughlin e Sheila Palma (da Northeastern University), desde que começou a "recuperação" no segundo trimestre de 2009 os benefícios empresariais levaram-se o 88% do crescimento do rendimento nacional. E os trabalhadores? Bom, conseguiram captar mal um 1% desse crescimento, e ainda assim, só a conta da despesa assistencial (graças ao aumento dos custos da previdência!): os salários e as remunerações reais caíram por vez primeira em uma "recuperação", algo sem precedentes históricos. É superfluo dizer que se trata também de uma recuperação com desemprego: tampouco essa incapacidade para a criação de postos de trabalho tem exemplo histórico.

Mas tudo isto são coisas fáceis de passar por alto para Wall Street, porque as maiores entidades financeiras saíram do mau engole sem apenas um aranhuço e voltaram já às mesmas práticas -com idênticas recompensas- que causaram a CFG.  Por bem ou por mal, Wall Street conseguiu esquivar também o re-regulação, pois a flácida Lei Dodd-Frank evitou qualquer reforma fundamental. Em qualquer caso, os republicanos deixaram claro que não tolerarão mais financiamento para as agências públicas reguladoras, de maneira que inclusive as débeis regras previstas na Lei não entrarão nunca em vigor. E até agora -e bem que cruzam os dedos!- , nenhum dos ladrões de Wall Street foi processado penalmente por delitos maiores. Teve, é verdade, alguns pleitos civis, e sacrificou-se a alguma que outra peça criminosa, como Bernie Maddoff, mas todos os grandes bánksters andam, não só livres, senão dirigindo ainda as suas organizações criminosas (chamadas eufemíiticamente  "bancos escriturados" com patente pública), assessorando à Casa Branca e reunindo financiamento para a próxima campanha presidencial.

Isto é, que a reforma financeira está mais morrida que Elvis. Nada poderá se fazer até o próximo derrube causado por Wall Street. O que passa é que eu sou um otimista empedernido -a caída não demorará em chegar-, de maneira que é hora de inventariar as lições que deveríamos ter aprendido da CFG, a fim de preparar as reformas que deveriam se ter adotado.

1.- A Crise Financeira Global não foi uma "crise de liquidez"

Não o foi. Em um congresso recente, um dos servidores públicos que participaram no resgate me disse que a crise significou nem mais nem menos que um "incumprimento de pagamentos global". A conta corrente do mundo inteiro ficou curta por uns quantos dolarcimhos. O Tio Sam proporcionou a autorização de descobertos e resolveu o problema. Bem está, se bem acaba (o servidor público do Tesouro usou essas mesmas palavras). Como diria o meu avozinho, "pura tolice". O que realmente ocorreu é que as taxas de morosidade dos empréstimos hipotecários arriscados se dispararam drasticamente enquanto se reduziam bruscamente os preços imobiliários. Os megabancos jogaram uma vista de olhos aos seus balanços e repararam, não só de que eram tedores de produtos hipotecários lixo, senão também de montanhas de passivos de outras megaentidades financeiras. De repente deram-se conta de que todos os demais tinham provavelmente balanços tão maus como os seus, de maneira que se negaram a prorrogar esses passivos em curto prazo. E já que os Leviatães andavam supremamente interligados, quando deixaram de se prestar dinheiro uns a outros, colapsou toda a pirâmide do esquema Ponzi.

Chamar a isso uma crise de liquidez é néscio. Foi insolvência em massa a uma escala bíblica o que levou ao "pânico de liquidez" (em realidade, uma negativa a refinanciar aos colegas de feitorias: as empresas criminosas sempre se baseiam na confiança, já sabem). Os bancos não tinham bons ativos, só derivados lixo de bens raízes mais empréstimos de uns a outros, todos eles carentes de outro respaldo que o do nevoeiro do engano. Bastou com que um dos banqueiros desse casino mencionasse o farol. Todos os banqueiros procuravam a um Joãozinho ainda mais aparvado, a fim de refinanciar o lixo. Os únicos que ficavam à mão se sentavam (por assim o dizer) em Washington. E por isso se precisaram dezenas de biliões de empréstimo, despesas e garantias do lixo por parte de um Tio Sam, que atuou como Joãozinho de último recurso para frenar o talho. (Como sabe qualquer jogador, se não averiguaste quem é o Joãozinho da mesa depois de 5 minutos de jogo, o Joãozinho és tu!)

Todos os grandes bancos seguem sendo insolventes. O único que lhes mantém abertos é o respaldo fornecido por Tim Geithner e Ben Bernanke, bem como a política de "estender e pretender" [1] adotada pelos regulatórios. Como sabemos desde a crise das entidades de poupança e empréstimo nos EUA dos 80, deixar abertas instituições insolventes não faz senão aumentar o tamanho do lanho, sobretudo quando deixas aos gángsteres defraudadores nos seus cargos, de modo que possam levar a cabo o que o meu colega Bill Black chama um "fraude de controlo": o saque da instituição, a fim de pagar as suas ciclópicas primas aos executivos no topo. Soa-lhes familiar? Como diz o nosso filósofo Yogi, é déjà vu uma e outra vez. Mas o vu desta vez é incomparavelmente maior que o déjà.


2.- Deveríamos ter aprendido que as garantias importam


Isto é, o processo de determinar a fiabilidade creditícia do prestatário e a posta por obra de incentivos que assegurem que os pagamentos ir-se-ão fazendo devidamente ao seu vencimento. Todas as grandes instituições implicadas no financiamento imobiliário eliminaram esse processo na última década. A hipótese dos "mercados eficientes" dizia que não o precisas realmente, porque os mercados descobrirão por si mesmos os preços adequados dos empréstimos titularizados; e o empréstimo é bem mais fácil e barato, se não tens que te preocupar de averiguar a capacidade financeira do prestátario. Daí os Empréstimos do Mentiroso e os Empréstimos "NINJA" [nem rendimentos, nem trabalho, nem ativos, pelas suas siglas em inglês; T.]

Se se olha de perto as últimas crises financeiras, vê-se que a causa mais comum é o deterioro dos critérios de garantias. A disciplina de mercado não funciona, porque quando alguma classe de ativos se dispara à alça, os prestamistas esperarão que os preços desses ativos sigam subindo. Os prestamistas prestarão mais -em relacionamento com o valor, com o rendimento atual e com o fluxo presente de caixa-, porque a revalorização dos preços dos ativos fará bons os empréstimos. Se as coisas não vão bem, os empréstimos podem ser refinanciados, ou pode dispor-se do colateral vendendo-o. Tudo vai pedir de boca, até que alguém se pergunta pelo Novo Vestido do Imperador. A descoberta de que o ativo anda tão nu como o traseiro do Imperador causa a reversão da tendência e, a seguir, a queda dos preços, de modo que os prestatários ficam em quebra técnica e os prestamistas, em situação de insolvência.

Já me dou conta de que, conforme às aparências, diríase agora que os bancos se contraíram, põem em prática critérios mais severos e restringem o crédito a todo mundo, salvo os mais solventes. Aprenderam a lição? Isso sempre passa depois. Mas o assunto é que não houve reformas reguladoras e supervisoras significativas instituídas para brigar com o próximo auge eufórico. Por isso, pode-se predizer que os critérios de garantias voltarão a baixar a guarda -muito gradualmente ao começo, para desaparecerem depois- entre os prestamistas resolvidos a adotar os critérios "ganhadores" mais laxos. A disciplina de mercado é sempre perversa: não há empréstimos quando mais se precisam e não se exigem garantias quando mais se precisam.

3.- As entidades financeiras não reguladas nem supervisionadas publicamente evoluem de maneira natural para a fraude de controlo

Como disse Willy Sutton respondendo à pergunta de por que roubava bancos, "ali está o dinheiro". Claro que o seu era a pequena escala. De acordo com Bill Black, a melhor maneira de roubar um banco é possuí-lo. Bom, melhor ainda dirigí-lo: perguntem-lhe, se não, a Bob Rubin, ou a Hank Paulson, ou a Jamie Dimon, ou Lloyd Blankfein, o que "fazia o trabalho de Deus". A pistola alugada do diretor pode esquilmar ao banco bem mais eficazmente que qualquer dos seus proprietários: a soma com a que pode chegar-se a fazer um só alto executivo pode deixar pequenas as cifras totais somadas de todos os ladrões de bancos da história norte-americana recente.

E no entanto, não queremos reconhecer que há fraude por toda a parte, onde olhemos. Sabemos que os bancos cometeram fraude creditício a uma escala sem precedentes históricos (a melhor estimativa é que 80% de toda a fraude hipotecária foi cometido pelos prestamistas); sabemos que seguem cometendo fraude nos despejos (e que a sua criação, os MERS [Sistema de Registo Eletrónico Hipotecario, pelas suas siglas em inglês; T.], magoou irreversivelmente os registos nacionais da propriedade, no ponto que demorar-se-á uma década em sair da desordem); e sabemos que enganaram aos investidores para que comprassem títulos tóxicos de desperdício (se servindo de chamarizes: substituindo as piores hipotecas nos pacotes de títulos) para depois apostar eles mesmos contra os títulos fraudulentamente vendidos nos mercados de permuta de impagamentos credititos (CDs). Sempre que um pesquisador teve a coragem de perseguir até o final a um desses bancos passou o mesmo: descobriu-se fraude e chegou-se a um arranjo.

A fraude converteu-se na prática habitual nos negócios. Eu comparei a corrente trófica financeira com a cebolla de Shrek: todas e a cada uma das capas eram fraudulentas, desde os agentes imobiliários até os diretores empresariais e os notários que estampavam a sua assinatura na fraude, passando pelos taxadores e intermediários hipotecários que sobrestimavam o preço da propriedade e induziam aos prestatários a subscrever créditos que não podiam permitir-se, passando pelos bancos de investimento e as suas entidades filiais que titularizavam as hipotecas e passando, finalmente, pelos administradores hipotecários e os juízes que permitem aos bancos roubar moradas. Dizer que se trata do maior escândalo da história humana é ficar curto.

4. - O pior é o enmascaramento

Deveríamos saber desde os tempos do Watergate que o que realmente aproe é o emascaramento. Se pensam na corrente trófica dos bens raízes, tudo começa com algum pobre diabo que faz de intermediário hipotecário desde um escritório improvisado na garagem da sua casa. Diz-se-lhe que se pode superar e induzir aos prestatários a pedir créditos mais caros do que se podem permitir, verá incrementadas as suas recompensas. Os bancos de crédito criaram uns produtos orwellianamente chamados "produtos de asequibilidade" -aos que os inteirados chamavam bombas de neutrões hipotecárias (desenhadas para estourar, matar ao prestatário e deixar em pé a morada)- e instruíram aos intermediários para vendê-los e ignorar os documentos habitualmente exigíveis à hora de realizar um empréstimo (nóminas, estado das contas correntes, etc). Por que? Como deixou dito Ollie North, "plausibilidade da denegação". Contra! Não sabíamos que a este gajo desempregado podia resultar-lhe asequível uma casa de meio milhão de dólares em Brookside Acres graças a um explosivo empréstimo hipotecário a tipos variáveis pelo 120% do valor da propriedade! Este prestatário defraudou-nos! (acrescentem-se os oportunos sotaques para arredondar o efeito).

Uma vez realizaste o Empréstimo do Mentiroso, todos os passos seguintes na corrente do financiamento da morada têm que ficar salpicados. E isso significa que toda a transação, toda a valoração e toda a assinatura que apareça ao longo do caminho, até chegar à estampada pelo diretor do banco de investimento de turno é parte do enmascaramento. Por não falar do Presidente da Fed de Nova York (quê é que se terá feito dele?), que tinha acesso à contabilidade falseada dos bancos. E lembram-se vocês daqueles "testes de stress" que passaram todos os bancos, cujos balanços foram por isso mesmo certificados como excelentes pelas autoridades públicas? Quem foi o que assinou todo isso?

Não é necessário acusar a ninguém de conspiração. Basta apelar ao interesse próprio individual (conhecido também como "cobrir-se o cu"). As únicas questões que tinham que se propor todos os que operavam nessa corrente eram estas: como posso ganhar uns dolarzinhos? Como posso sair deste esquema Ponzi antes de que colapse? Como posso livrar do cárcere? Bom, ganharam os seus dolarzitos, a maioria não conseguiu sair antes do colapso, mas o Tio Sam cobriu-lhes as costas, e agora estão a esperar à prescripção legal dos delitos, enquanto os altos comandos da nação olham para outro lado. E o tempo corre...

Mas não aprendemos nenhuma destas lições. Não fizemos as reformas. Deixamos que continuasse o esquema Ponzi, dirigido, em cima, pelos mesmos malfeitores sandeus. Deixamos que contribuíssem com uns (estimados) 1000 milhões de dólares à campanha de reeleição do presidente Obama. E esperamos que a história não se repita. Não é isso a definição clínica mesma da loucura?

NOTAS: [1] "Estender e pretender" é a consigna favorita dos banqueiros quando procuram esconder o facto de que alguns grandes empréstimos concedidos a alguma grande empresa ou a algum Estado é convertido em "não-operativo". Em vez de admitir que perderam os seus fundos, concedem um segundo e ainda um terceiro ou um quarto empréstimo à parte efetivamente avariada. Assim, "estendem" os empréstimos e "pretendem" que o serviço dos mesmos está a funcionar e ao dia.

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